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quinta-feira, 4 de maio de 2017

“SUEÑOS DIGITALES”, DO BOLIVIANO EDMUNDO PAZ SOLDÁN





                                                                                                                         *Paulo Sandrini

A obra ficcional “Sueños digitales”, do boliviano Edmundo Paz Soldán[1], é uma narrativa urbana, mas que se passa numa cidade-invenção: Río Fugitivo, na Bolívia. O protagonista é Sebastian, ou Sebas, um exímio tratador e manipulador de imagens digitais que, por esse mesmo motivo, acaba por chamar a atenção do governo do velho ditador Montenegro. Reconvertido em presidente e na tentativa de impor ao país falsos ares democráticos, o ditador deseja reconverter também a História recente por meio da eliminação (ou alteração) do acervo de suas imagens[2].

Maquear o mundo que os cerca é a tônica da vida das personagens desse romance. O protagonista e seu amigo Pixel se dedicam a organizar (falsamente, por meios digitais) os exteriores de uma cidade problemática do interior boliviano para que essa se assemelhe a uma cidade internacional e desenvolvida.

O romance agrega duas realidades paradoxais: um mundo criado digitalmente, sobretudo por Sebas (e isso se torna o conflito principal), e a vida íntima do protagonista em sua complexa relação com Nikki.

No campo político, é mostrada a corrupção de um governo aparentemente democrático, que deseja apagar um passado ditatorial. Sebas se deixa comprar pelo dinheiro sujo do governo de Montenegro e se põe a “organizar” o passado do ditador. Isso se dá por meio do processo de modificar fotografias, eliminando dessas narcotraficantes e corruptos que antes estiveram associados ao presidente. Nesse processo de tratamento de imagens, Sebas substitui tais figuras por outras. Exemplo disso é a manipulação de uma foto em que a figura do presidente é mostrada apertando a mão de um morador de rua e de pessoas tidas por “decentes” em meio à sociedade. Assim, são alterados, com habilidade técnica, as imagens negativas de Montenegro e seu passado repressor, de modo que se instaure, por meio de novas imagens, uma Idade de Ouro.

O romance de Soldán, apesar dos traços políticos que contém, não deixa de ser uma narrativa ao estilo McOndo, marcada essencialmente pela vida privada das personagens (suas relações pessoais e afetivas) com o meio que as cerca. É recheado de referências à cultura de massa e à cultura pop, marcado pelos eventos tecnológicos contemporâneos, a evidenciar, dentro dos próprios parâmetros do manifesto publicado na antologia McOndo (1996), um tempo de globalização, de acesso ao mundo virtual e de aquisição de produtos de última geração.

Outro ponto a ressaltar é que apesar de a obra de Soldán ser construída a partir de princípios mcondistas ela não deixa de estabelcer uma evolução crítica em relação ao sistema político e econômico latino-americano caso a comparemos, por exemplo,  com os próprios contos publicados em “McOndo”.

“Sueños digitales” registra a crítica ao proceso de alienação promovido pelo universo midiático.

Ella le quitó el control y cambió a una película en blanco y negro en un canal de clásicos […] Nikki era de esas personas con complejos de culpa por sus huecos culturales e históricos, cada vez que hacía zapping y se encontraba con un canal de noticias o documentales o clásicos, se sentía obligada a quedarse ahí al menos unos minutos, por más que en realidad tuviera prisa en llegar a su telenovela o a Bugs Bunny. El zapping convertía a muchos en seres culpables, incapaces de gozar plenamente de su superficialidad, de admitir que les interesaba más enterarse de los últimos chismes de Hollywood que de lo que ocurría en Bosnia o Ruanda.[3]


Este trecho atua como reflexão sobre a condição do sujeito bombardeado pela cultura de massa, algo tão comum na formação cultural e identitária latino-americana. A ironia que o narrador do romance de Soldán usa em relação à formação cultural de Nikki mostra um discurso voltado a problematizar os prejuízos e a alienação promovidos pela indústria cultural.

“Sueños digitales”, por outro lado, não deixa de questionar (mesmo que em poucos trechos) as políticas econômicas instauradas na Bolívia e em grande parte da América Latina sobretudo nos anos 1990 e início do século XXI. A passagem que trata da Ponte dos Suicidas é significativa desse questionamento:



Los últimos meses había habido un recrudecimiento de suicidios: unos decían que la transición de un milenio a otro exacerbaba las tensiones y era la causa principal de esa oleada; otros, menos abstractos, culpaban a las salvajes políticas económicas de cuño neoliberal — entre ellas el desmantelamiento de los servicios públicos de asistencia social —, llevadas a cabo por los tres últimos gobiernos e intensificadas por Montenegro. Ambas teorías le daban lo mismo a Sebastián. No pudo evitar un estremecimiento al recordar a la mujer que se había tirado del puente una semana atrás. Treinta y cinco años, divorciada, tres hijos menores de diez años. La habían despedido de su trabajo de enfermera luego de que la clínica se enterara que ella cobraba unos pesos extra por limpiar las descuidadas habitaciones de los pacientes. ¿Ésa era razón suficiente…? Nunca lo entendería. Qué egoísmo el suyo, debía pensar en sus hijos. [4]

O romance de Soldán, tratando agora de sua construção de linguagem, surge com aquele tão trivial narrador de fora, que sabe praticamente tudo de suas personagens. É o narrador-deus, que controla passado, presente e pode até mesmo determinar o futuro das figuras humanas e dos eventos inseridos na obra. Ou seja, o narrador fala muito mais que as personagens — e essas, quando se expressam, o fazem de modo, na maioria das vezes, tímido, com pouco espaço para desenvolver um discurso mais particularizado em relação ao narrador externo.
Ao longo da narrativa, Soldán maneja o foco oscilando entre onisciência e discurso direto, por vezes chega a usar o indireto livre. O que dá ao romance um certo ar contemporâneo. Fato é que, apesar disso, o livro se arrasta em uma sequência bastante convencional, sem novidades enquanto linguagem e arquitetônica ou algo que nos faça, como leitores, nos surpreender com ele. Desse modo, o leitor mais atento e crítico pode chegar à conclusão de que certos romances atuais, que trazem consigo o modo “alfaguarizado” de escrita não têm muito a contribuir para o acúmulo de repertório inventivo da literatura latino-americana contemporânea.
Ao construir sua ficção sob a perspectiva de uma sociedade dominada pelo capitalismo neoliberal mesclado a um sistema ditatorial que tenta se disfarçar para fazer crer que se vivem tempos democráticos, Soldán não perde oportunidade de reduzir os indivíduos (personagens) de classe média do romance à condição de objetos, seres sem autonomia; por outro lado, desconsidera que esse mesmo sistema capitalista[5] é também aquele “que provoca a maior estratificação social e o maior número de conflitos da história da sociedade, gerando vozes e consciências que resistem a tal redução”[6].
Além disso, a obra reduz seu mundo ao universo dos sujeitos de classe média globalizados, com acesso à educação e informações que circulam pelo mundo, salvo em alguns poucos trechos — por exemplo, a narrativa sobre o suicídio de um líder operário que pula de uma ponte na capital do país e o da mulher que se suicida na ponte de Río Fugitivo por sua condição de miséria material. Contudo, a ficção de Soldán não nos permite verificar uma preocupação aguçada com os conflitos humanos e sociais engendrados pelo sistema que cerca, encarcera e esmaga as personagens. As variadas formas de violência (econômica, política e ideológica) são pouquíssimas vezes questionadas pelas personagens, que seguem submissas à repressão que assola o país, seja por parte do capitalismo neoliberal ou por parte do sistema político ditatorial. Para além de queremos afirmar que escrever contra o sistema político, econômico ou social seja um dever de Paz Soldán, faz-se necessário argumentar que ao terminarmos a leitura de “Sueños digitales”, temos a impressão de que esse romance aponta para um livro com potencial questionador muito maior. É um livro que nos dá a sensação de que irá se desenrolar em uma direção menos convencional, afastando-se fórmula do thriller. No entanto, isso não ocorre e a ficção de Soldán cai no lugar comum.




                                                                                        Figura 1: Edmundo Paz Soldán.
                                  Imagem disponível em <http://www.latamrob.com/archives/988>




[1] Escritor nascido em Cochabamba, em 1967, um dos destaques da chamada Geração McOndo. É autor do romance “Días de papel” e do livro de contos “Las máscaras de la nada”, entre outros.
[2] FERRERO, Aránzazu. Sueños digitales: Edmundo Paz Soldán.  Disponível em versão digital em: http://www.bibliopolis.org/resenas/rese0412.htm. Acesso em 15 de dezembro de 2012

[3] SOLDÁN, Edmundo Paz. Sueños digitales. Madrid: Alfaguara, 2000, p.49.

[4] Ibidem, pp 29-30.
[5] Apesar de o contexto capitalista observado por Bakhtin ser o do século retrasado, não podemos deixar de entender que a obra de Soldán se encaixa dentro de um contexto de forças neoliberais, privatistas, obviamente capitalistas, e que produz ainda uma grande estratificação social, principalmente em países desiguais como os latino-americanos, fato que engendra vozes discordantes, antagônicas e conflituosas dentro desse mesmo universo regido pelo capitalismo — e isso, acreditamos, deixa de ser explorado em “Sueños digitales”.
[6] BEZERRA, Paulo. Polifonia. Op. Cit. p. 193.      
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* Professor do curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE

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