*Paulo
Sandrini
A obra ficcional “Sueños
digitales”, do boliviano Edmundo Paz Soldán[1], é uma
narrativa urbana, mas que se passa numa cidade-invenção: Río Fugitivo, na Bolívia.
O protagonista é Sebastian, ou Sebas, um exímio tratador e manipulador de
imagens digitais que, por esse mesmo motivo, acaba por chamar a atenção do
governo do velho ditador Montenegro. Reconvertido em presidente e na tentativa
de impor ao país falsos ares democráticos, o ditador deseja reconverter também
a História recente por meio da eliminação (ou alteração) do acervo de suas
imagens[2].
Maquear o mundo
que os cerca é a tônica da vida das personagens desse romance. O protagonista e
seu amigo Pixel se dedicam a organizar (falsamente, por meios digitais) os
exteriores de uma cidade problemática do interior boliviano para que essa se
assemelhe a uma cidade internacional e desenvolvida.
O romance agrega
duas realidades paradoxais: um mundo criado digitalmente, sobretudo por Sebas
(e isso se torna o conflito principal), e a vida íntima do protagonista em sua complexa
relação com Nikki.
No campo político,
é mostrada a corrupção de um governo aparentemente democrático, que deseja
apagar um passado ditatorial. Sebas se deixa comprar pelo dinheiro sujo do
governo de Montenegro e se põe a “organizar” o passado do ditador. Isso se dá por
meio do processo de modificar fotografias, eliminando dessas narcotraficantes e
corruptos que antes estiveram associados ao presidente. Nesse processo de
tratamento de imagens, Sebas substitui tais figuras por outras. Exemplo disso é
a manipulação de uma foto em que a figura do presidente é mostrada apertando a
mão de um morador de rua e de pessoas tidas por “decentes” em meio à sociedade.
Assim, são alterados, com habilidade técnica, as imagens negativas de
Montenegro e seu passado repressor, de modo que se instaure, por meio de novas
imagens, uma Idade de Ouro.
O romance de
Soldán, apesar dos traços políticos que contém, não deixa de ser uma narrativa
ao estilo McOndo, marcada essencialmente pela vida privada das personagens (suas
relações pessoais e afetivas) com o meio que as cerca. É recheado de
referências à cultura de massa e à cultura pop,
marcado pelos eventos tecnológicos contemporâneos, a evidenciar, dentro dos
próprios parâmetros do manifesto publicado na antologia McOndo (1996), um tempo de globalização, de acesso ao mundo virtual
e de aquisição de produtos de última geração.
Outro ponto a
ressaltar é que apesar de a obra de Soldán ser construída a partir de princípios
mcondistas ela não deixa de estabelcer uma evolução crítica em relação ao
sistema político e econômico latino-americano caso a comparemos, por
exemplo, com os próprios contos
publicados em “McOndo”.
“Sueños digitales”
registra a crítica ao proceso de alienação promovido pelo universo midiático.
Ella
le quitó el control y cambió a una película en blanco y negro en un canal de
clásicos […] Nikki era de esas personas con complejos de culpa por sus huecos
culturales e históricos, cada vez que hacía zapping
y se encontraba con un canal de noticias o documentales o clásicos, se sentía
obligada a quedarse ahí al menos unos minutos, por más que en realidad tuviera
prisa en llegar a su telenovela o a Bugs Bunny. El zapping convertía a muchos en seres culpables, incapaces de gozar
plenamente de su superficialidad, de admitir que les interesaba más enterarse
de los últimos chismes de Hollywood que de lo que ocurría en Bosnia o Ruanda.[3]
Este trecho atua
como reflexão sobre a condição do sujeito bombardeado pela cultura de massa,
algo tão comum na formação cultural e identitária latino-americana. A ironia
que o narrador do romance de Soldán usa em relação à formação cultural de Nikki
mostra um discurso voltado a problematizar os prejuízos e a alienação
promovidos pela indústria cultural.
“Sueños digitales”, por outro lado, não deixa de
questionar (mesmo que em poucos trechos) as políticas econômicas instauradas na
Bolívia e em grande parte da América Latina sobretudo nos anos 1990 e início do
século XXI. A passagem que trata da Ponte dos Suicidas é significativa desse
questionamento:
Los últimos meses había habido un recrudecimiento de suicidios: unos
decían que la transición de un milenio a otro exacerbaba las tensiones y era la
causa principal de esa oleada; otros, menos abstractos, culpaban a las salvajes
políticas económicas de cuño neoliberal — entre ellas el desmantelamiento de
los servicios públicos de asistencia social —, llevadas a cabo por los tres
últimos gobiernos e intensificadas por Montenegro. Ambas teorías le daban lo
mismo a Sebastián. No pudo evitar un estremecimiento al recordar a la mujer que
se había tirado del puente una semana atrás. Treinta y cinco años, divorciada,
tres hijos menores de diez años. La habían despedido de su trabajo de enfermera
luego de que la clínica se enterara que ella cobraba unos pesos extra por
limpiar las descuidadas habitaciones de los pacientes. ¿Ésa era razón
suficiente…? Nunca lo entendería. Qué egoísmo el suyo, debía pensar en sus
hijos. [4]
O
romance de Soldán, tratando agora de sua construção de linguagem, surge com
aquele tão trivial narrador de fora, que sabe praticamente tudo de suas
personagens. É o narrador-deus, que controla passado, presente e pode até mesmo
determinar o futuro das figuras humanas e dos eventos inseridos na obra. Ou
seja, o narrador fala muito mais que as personagens — e essas, quando se
expressam, o fazem de modo, na maioria das vezes, tímido, com pouco espaço para
desenvolver um discurso mais particularizado em relação ao narrador externo.
Ao longo da narrativa, Soldán maneja o foco oscilando entre onisciência e
discurso direto, por vezes chega a usar o indireto livre. O que dá ao romance
um certo ar contemporâneo. Fato é que, apesar disso, o livro se arrasta em uma
sequência bastante convencional, sem novidades enquanto linguagem e
arquitetônica ou algo que nos faça, como leitores, nos surpreender com ele. Desse modo, o leitor mais atento e
crítico pode chegar à conclusão de que certos romances atuais, que trazem
consigo o modo “alfaguarizado” de escrita não têm muito a contribuir para o
acúmulo de repertório inventivo da literatura latino-americana contemporânea.
Ao construir sua ficção sob a perspectiva de uma sociedade dominada pelo
capitalismo neoliberal mesclado a um sistema ditatorial que tenta se disfarçar para
fazer crer que se vivem tempos democráticos, Soldán não perde oportunidade de reduzir
os indivíduos (personagens) de classe média do romance à condição de objetos,
seres sem autonomia; por outro lado, desconsidera que esse mesmo sistema
capitalista[5]
é também aquele “que provoca a maior estratificação social e o maior número de
conflitos da história da sociedade, gerando vozes e consciências que resistem a
tal redução”[6].
Além disso, a obra reduz seu mundo ao universo dos sujeitos de classe
média globalizados, com acesso à educação e informações que circulam pelo mundo,
salvo em alguns poucos trechos — por exemplo, a narrativa sobre o suicídio de
um líder operário que pula de uma ponte na capital do país e o da mulher que se
suicida na ponte de Río Fugitivo por sua condição de miséria material. Contudo,
a ficção de Soldán não nos permite verificar uma preocupação aguçada com os
conflitos humanos e sociais engendrados pelo sistema que cerca, encarcera e
esmaga as personagens. As variadas formas de violência (econômica, política e
ideológica) são pouquíssimas vezes questionadas pelas personagens, que seguem submissas
à repressão que assola o país, seja por parte do capitalismo neoliberal ou por
parte do sistema político ditatorial. Para além de queremos afirmar que
escrever contra o sistema político, econômico ou social seja um dever de Paz
Soldán, faz-se necessário argumentar que ao terminarmos a leitura de “Sueños
digitales”, temos a impressão de que esse romance aponta para um livro com
potencial questionador muito maior. É um livro que nos dá a sensação de que irá
se desenrolar em uma direção menos convencional, afastando-se fórmula do
thriller. No entanto, isso não ocorre e a ficção de Soldán cai no lugar comum.
[1] Escritor nascido em Cochabamba, em
1967, um dos destaques da chamada Geração McOndo. É autor do romance “Días de
papel” e do livro de contos “Las máscaras de la nada”, entre outros.
[2] FERRERO, Aránzazu. Sueños digitales: Edmundo Paz Soldán. Disponível em versão digital em: http://www.bibliopolis.org/resenas/rese0412.htm. Acesso
em 15 de dezembro de 2012
[3] SOLDÁN, Edmundo Paz. Sueños digitales. Madrid: Alfaguara,
2000, p.49.
[4] Ibidem,
pp 29-30.
[5] Apesar de o
contexto capitalista observado por Bakhtin ser o do século retrasado, não
podemos deixar de entender que a obra de Soldán se encaixa dentro de um
contexto de forças neoliberais, privatistas, obviamente capitalistas, e que
produz ainda uma grande estratificação social, principalmente em países
desiguais como os latino-americanos, fato que engendra vozes discordantes,
antagônicas e conflituosas dentro desse mesmo universo regido pelo capitalismo
— e isso, acreditamos, deixa de ser explorado em “Sueños digitales”.
[6] BEZERRA, Paulo. Polifonia. Op. Cit. p.
193.
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* Professor do curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE
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