*Dr.ª Anna Stegh Camati
A comparação entre a poesia e
a pintura insere-se em uma longa tradição que, segundo Platão, remonta a Simônides
de Ceos (556 a.C. – 468 a.C.). A famosa frase atribuída ao poeta grego – “A
pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pintura que fala” – constitui
uma das primeiras reflexões sobre as relações entre a palavra e imagem. A partir dessa perspectiva, Horácio (65 a.C.
– 8 a.C), em sua Epístola aos Pisãos, atribui maior importância
às impressões visuais que seriam mais marcantes do que as auditivas. O mote de
Horácio, “Um poema é como uma pintura”, retomado pelos teóricos da Renascença,
está na origem da doutrina do Ut pictura
poesis. Na proposição de Horácio – “Um poema existe tal como um quadro” (Ut pictura poesis erit) – a pintura
constitui o referencial de comparação, sugerindo, assim, a superioridade da
imagem sobre a linguagem. Os teóricos renascentistas inverteram o sentido dessa
proposta: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo comparado,
submetendo a pintura às artes da linguagem (LICHTENSTEIN, 2005).
A mudança de entendimento da
máxima de Horácio – “A pintura é como um
poema” (Ut poesis pictura) – modificou
o estatuto da pintura, conferindo-lhe a mesma finalidade que Aristóteles
atribuía à poesia dramática, ou seja, de contar uma história. A partir de
então, a pintura e a poesia, apesar das rivalidades, foram chamadas de “artes
irmãs”: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a
narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos
revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN, 2005,
p. 13).
A controvérsia sobre a superioridade
da linguagem ou da imagem, resumida acima, foi retomada, sob diferentes
perspectivas, por Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que, em Laokoön, ou: sobre as fronteiras da
pintura e da poesia (1766), investigou as relações entre a literatura e a
pintura, tomando como base a midialidade. A teoria de Lessing, que ressalta a
espacialidade da pintura e a temporalidade da literatura, representou um avanço
teórico e lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de intermidialidade.
Sua visão de que toda arte se configura de acordo com sua midialidade específica
mostrou que a materialidade ou os suportes físicos são determinantes no momento
da criação, resultando em diferentes modalidades expressivas que podem (ou não)
produzir o mesmo efeito (MOSER, 2006).
O termo écfrase apareceu, pela
primeira vez, nos escritos atribuídos a Dionísio de Halicarnasso (c. 60 a.C. –
c. 7 a.C.), tornando-se, em seguida, uma prática discursiva utilizada nas escolas.
Segundo Peter Wagner, trata-se de um recurso retórico antigo que está sendo
retomado e redefinido por críticos contemporâneos. O vocábulo, formado pelo
prefixo “ek” ou “ec”, que significa “originário de” ou “dentre”, e a raiz phrasis, um sinônimo do grego lexis ou hermeneia e do
latim dictio e elocutio, originariamente significava
“uma descrição completa e vívida” (WAGNER, 1996).
A definição restritiva de écfrase,
que nasceu sob os auspícios do Ut pictura
poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade. No ensaio
intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representations of Non-Verbal
Texts” (2009), Claus Clüver criticou o
conceito de écfrase de James Heffernan (1993) – “representação verbal de uma
representação visual” – por exluir descrições ecfrásticas de pinturas e
esculturas não representacionais e de complexos arquitetônicos. No referido
artigo, Clüver amplia as fronteiras dessa prática discursiva ao formular a
seguinte definição: “Écfrase é a representação verbal de um texto real ou
fictício composto em sistemas de signos não verbais” (2009).
No livro Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film
(2008), Laura M. Sager Eidt investiga o tratamento ecfrástico ao qual são
submetidos quadros de diversos pintores em textos narrativos e fílmicos. Ela
afirma que, enquanto a tradição restringia a écfrase a poemas que descrevem ou
analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito e se aplica a todos
os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o ensaio, estendendo-se,
também, ao cinema e à música (EIDT, 2008). Dentre os críticos que alargaram o
âmbito da écfrase, além de Claus Clüver, Eidt cita Tamar Yacobi e Siglind Bruhn. Ela argumenta que Yacobi, em
“Verbal Frames and Ekphrastic Figuration” (1997) e em “The Ekphrastic Model:
Forms and Functions (1998), demonstra que a écfrase pode ser constituída por
uma breve alusão a um “modelo ecfrástico” ou “simile ecfrástica”, e que esse referente, da mesma forma que a
alusão literária, é um mecanismo capaz de ativar o texto pictural como um todo,
produzindo múltiplas conexões e sentidos (EIDT, 2008). Acrescenta, ainda, que
no ensaio “A Concert of Paintings: ‘Musical Ekphrasis’ in the Twentieth
Century” (2001), Siglind Bruhn introduz perspectivas ainda mais radicais do que
as encontradas na reconsideração do
conceito por Clüver e Yacobi ao postular
que, em relação à “écfrase musical”, a mídia recriadora pode ser qualquer outra
forma artística ou midiática diferente daquela em que o texto-fonte foi
plasmado, não necessitando ser verbal (EIDT, 2008).
Em seu artigo mais recente, intitulado “A New Look at an Old Topic: Ekphrasis Revisited” (2017), Claus Clüver apresenta ao leitor uma visão abrangente sobre a poesia ecfrástica e seus desdobramentos na contemporaneidade. Argumenta que a definição restritiva de écfrase, a qual Heffernan continuou defendendo em seu artigo “Ekphrasis: Theory” (2015), tornou-se ainda mais inviável em face de novas tendências surgidas nas artes plásticas nos séculos XX e XXI. No referido artigo, Clüver também faz restrições à sua própria definição formulada em 2009, principalmente no que diz respeito a textos “compostos em sistemas de signos não verbais”. O crítico acredita que essa colocação, inclusiva demais, oportunizou o uso do termo éfrase para representações de configurações em qualquer mídia que emprega sistemas de signos e códigos diversos, como a música, a dança, a pantomima, as artes performáticas, o cinema e outras, tornando o conceito impreciso. Assim, em sua revisão crítica de 2017, Clüver oferece uma visão atualizada das práticas discursivas ecfrásticas em geral, ressaltando que “a écfrase crítica contemporânea e o discurso circundante se voltaram contra o modelo de um paragone baseado na representação”. Além disso, sustenta que “a visão dominante que considera a écfrase um exemplo primário de transposição intermidiática é questionável e deveria ser substituída pelo reconhecimento de que ela verbaliza, primeiramente, o encontro de um espectador com configurações visuais não cinéticas” (CLÜVER, 2017, p. 42).
Referências
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do visível: Ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006.
BRUHN, Siglind. A Concert of Painting: “Musical
Ekphrasis” in the Twentieth Century. 2001. Disponível em:
<http://www.eunomios.org/contrib/bruhn1/bruhn1.html> Acesso em: 20 jun.
2013.
CLÜVER, Claus. A New Look at an Old Topic: Ekphrasis Revisited. Todas as Letras, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 30-44, jan./abr. 2017.
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ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível:
Ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 107-166.
_____. Ekphrasis Reconsidered: On Verbal
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Rodopi, 1997, p. 19-33.
EIDT, Laura M. Sager. Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film.
Amsterdam and New
York, Rodopi, 2008.
HEFFERNAN, James. Ekphrasis:
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Image – Sound – Music. Handbooks of English and American Studies. Berlin;
Boston: De Gruyter, 2015. v. 1, p. 35-49.
_____. Museum of Words: The Poetics of Ekphrasis from Homer to
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LICHTENSTEIN, Jacqueline. O paralelo das artes. In:
___. (org.) A pintura – O paralelo
entre as artes. Vol. 7. Coordenação
da trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 9-16.
MOSER, Walter. As relações
entre as artes: Por uma arqueologia da intermidialidade. AletriA: Revista de estudos de literatura, Belo Horizonte, v. 6, 1998-1999, p. 42-65.
YACOBI, Tamar. Verbal Frames and Ekphrastic
Figuration. In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans, HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics: Essays on the
Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and London: Rodopi, 1997, p.
35-46.
_____. The Ekphrastic Model: Forms and Functions. In:
ROBILLARD, Valerie; JONGENEEL, Els (eds.). Pictures into Words: Theoretical and
Descriptive Approaches to Ekphrasis. Amsterdam: VU University Press, 1998, p.
21-34.
* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
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