Edson Ribeiro da Silva*
Figura 1: Kasimir Malevich: “Suprematism with blue triangle and black square” Ano: 1915 Localização: Stedelijk Museum, Amsterdã, Holanda. Dimensões: 66.5 x 57 cm Técnica: óleo sobre tela Fonte: <http://artemodernaartistas.blogspot.com.br/2012/04/kasimir-malevich-1878-1935.html> |
Candeeiro de vovó
Vige, Minha Nossa Senhora
Cadê o candeeiro de vovó
Seu troféu lá de Angola
Cadê o candeeiro de vovó
Era lindo e iluminava
Os caminhos de vovó
Sua luz sempre firmava
Os pontos de vovó
Quando veio de Angola
Era livre na Bahia
Escondia o candeeiro
Dia, noite, noite e dia
Mas um golpe traiçoeiro
Do destino a envolveu
Até hoje ninguém sabe
Como o candeeiro desapareceu
Vovó chorou, de cortar o coração
Não tem mais o candeeiro
Pra enfrentar a solidão
Vovó chorou, chorou
Como há tempos não se via
Com saudades de Angola
E sua mocidade na Bahia
Cadê o candeeiro de vovó
Seu troféu lá de Angola
Cadê o candeeiro de vovó
Era lindo e iluminava
Os caminhos de vovó
Sua luz sempre firmava
Os pontos de vovó
Quando veio de Angola
Era livre na Bahia
Escondia o candeeiro
Dia, noite, noite e dia
Mas um golpe traiçoeiro
Do destino a envolveu
Até hoje ninguém sabe
Como o candeeiro desapareceu
Vovó chorou, de cortar o coração
Não tem mais o candeeiro
Pra enfrentar a solidão
Vovó chorou, chorou
Como há tempos não se via
Com saudades de Angola
E sua mocidade na Bahia
Fonte: Dona Ivone Lara: “Candeeiro de vovó”. In: Sambabook Dona Ivone Lara. Vol. 1. Santo
Amaro/SP: Novodisc Mídia Digital, 2015.
Figura 2: Eva Hesse: “Hang Up” Ano: 1966 Localização: The Art Institute of Chicago, Chicago, EUA Dimensões: 182.9 x 213.4 x 198.1 cm Técnica: Acrylic on cord and cloth, wood, and steel Fonte: <http://artchive.com/artchive/H/hesse.html> |
As obras acima referem-se a três modos
diferentes de expressão artística. Pintura, música e escultura são artes
reconhecidas também por fazerem uso de linguagens reconhecíveis pela tradição,
dentro e fora das especulações sobre estética. Elas são protoartes: dão origem
a expressões artísticas diversas, como a literatura e o cinema.
Seriam, portanto, expressões artísticas
simples? Ou estariam em um nível de elaboração que as faria mais simples em
relação a suas derivadas, como a literatura? A simplicidade estaria atrelada apenas
à aceitação de modelos estéticos já reconhecidos? Seria essa aceitação do já
assimilado, pelas expressões estéticas mais simples, uma das causas de as
expressões complexas serem objeto de culto artístico? São questões que ocupam
teóricos da arte, artistas, e pensadores preocupados com a formação daqueles
valores estéticos que sustentam o cânone, o mercado da arte, e até mesmo o
gosto do público. Preocupam, também, aos teóricos da recepção; compreender a
produção da obra é parte da compreensão das regras que o jogo estético
estabelece.
Mas, afinal, o que seria a simplicidade em
arte? Há modos de ela ser reconhecida? Evidentemente, a simplicidade costuma
ser aproximada daquelas formas artísticas espontâneas, identificadas ao
popular, ao que pode ser definido como artesanato mas não como arte, ao que
pode ser definido como kitsch ou
comercial. Tal simplicidade é reconhecida, por exemplo, na repetição de modelos
já assimilados, aprovados, que não geram estranhamento ou recusa por parte de
quem os apreende. Pelo menos, não daquele que a procura.
O fato é que, a partir do momento em que as
expressões artísticas populares começaram a ser vistas como espontâneas, formas
menos elaboradas que a arte canônica, e as criações da indústria cultural foram
sendo vistas como elaboradas, sem espontaneidade, mas fingindo um resultado
simples para corresponder ao já reconhecido e assimilado, a tendência de
separação entre essas duas expressões foi se acentuando. A arte que parte do
povo e a que para ele se destina são medidas pelo critério da relação entre a
simplicidade e a complexidade. No entanto, definir o que seja a simplicidade em
uma obra de arte é algo problemático: há os que atentam para o resultado
obtido; há os que atentam para a elaboração dela. Ou para ambos os elementos.
Olhar para o resultado final significa, tantas
vezes, perceber que o simples é resultado de uma elaboração complexa ou, pelo
menos, de uma concepção mais complexa de arte. As vanguardas modernas são
exemplos evidentes dessa relação. Um movimento como o Suprematismo, aqui
ilustrado pela pintura de Malevich (Fig. 1), considerava como condição suprema
da obra a síntese resultante da economia de recursos. A figura geométrica seria,
portanto, aquela possibilidade de o desenho não resultar de um esforço de
elaboração do artista. É reconhecível; está pronta. Da mesma forma, o uso da
cor em estado puro facilita ao pintor, que assim não precisa elaborar os tons
que vai usar. No entanto, é preciso que se entenda que um movimento estético
como o Suprematismo só é possível dentro de um contexto em que vanguardas
dialogam entre si, negando-se ou complementando-se. O que parece ser uma
ruptura com a tradição da pintura canônica, ocidental, pode ser facilmente
assimilado quando inserido em um período em que a ruptura passara a ser procedimento
banalizado. Malevich está rompendo com padrões, modelos já assimilados e,
portanto, causando estranheza, ou adequado a um contexto onde o estranho estava
normatizado? Trata-se, sem dúvida, de uma questão cuja resposta exige um
posicionamento menos extremista: está-se na confluência de fatores, como a
necessidade de se causar estranhamento, mas também de se ter acesso a locais
procurados por um público específico, que reconhece a complexidade na obra aparentemente
simples. Sem tal reconhecimento, a recepção da obra falharia. A valorização,
pela crítica e pelo mercado, também.
O mesmo pode ser dito em relação à obra de
Hesse (Fig. 2), que é definida como escultura, mas sabendo que essa definição é
mais problema que solução. Seria uma instalação, entendendo-se como tal a
colagem de materiais já prontos? O resultado estético, em termos categoriais,
ou seja, de apreensão pelos sentidos, dá conta de uma obra simples. Ela também
faz uso de poucos elementos e faz pensar em uma elaboração também simples
quanto ao trabalho da artista. No entanto, é resultante de um conceito complexo
de arte. O Minimalismo, a que a artista se filia, é possível porque o público
conhece as possibilidades do complexo, de uma arte que resulta de um trabalho
exaustivo de elaboração. Na obra de Hesse, a simplicidade é resultante de uma
ruptura com a tradição que valoriza o trabalho, a elaboração demorada e
cuidadosa, mas também com a ideologia mais comum sobre o belo como agradável
aos sentidos. A recepção da obra necessita de um certo nível de compreensão das
ideologias estéticas que resultaram em sua elaboração. Ela é feita para um
público que sabe por onde a linha evolutiva da arte passou. Trata-se de uma
simplicidade que não é a resultante de trabalho individual, mas da criação
coletiva de parâmetros estéticos em dado momento histórico. Esses parâmetros
são possíveis apenas através da comparação com a tradição artística.
Em relação à letra de música de Dona Ivone
Lara, constata-se uma simplicidade que é resultado de um esforço de síntese. As
frases curtas, em que prevalece a narração sobre o comentário, a escolha de
palavras coloquiais e a brevidade do relato formam um conjunto que, aparentemente,
parece espontâneo, sem muito esforço de elaboração. No entanto, quando a letra
é ouvida na sua conformação sonora, constata-se a filiação da música ao samba
de roda, às sonoridades vindas desse gênero popular, espontâneo, em que a letra
necessita de brevidade para estar adequada ao ritmo dançante. A escolha de um
relato feito por uma personagem, neta da avó a que a narrativa se refere, faz
com que a compositora opte por dar à letra o discurso típico da moça das
classes populares, descendente de escravos, e que fala de modo passional de
alguém a quem se liga afetivamente. Essa aparente simplicidade mostra elementos
da cultura negra no país, como a religiosidade sincrética, ou da condição
social do negro, que tem para si apenas um objeto trazido do país de origem.
Trata-se de uma simplicidade obtida pela elaboração a partir de elementos
complexos. O texto de Dona Ivone Lara pertence a uma tradição musical atrelada
ao popular mas que, no caso, também se filia a uma tradição de compositores
marcados pela elaboração cuidadosa de letras e sonoridades. E essa elaboração,
ao contrário do que ocorre no kitsch,
não finge estar perfeitamente adequada a modelos. Ao contrário, ela precisa
deixar as pistas de que se trata de uma resistência ao kitsch como produto para o mercado. O popular como fonte, seja na
discursividade, na temática, na musicalidade, é forma de romper com o produto
da indústria cultural; ele se torna complexo por ser um popular não espontâneo,
mas que finge sê-lo. Mesmo que as ideologias sobre o real que transparecem do
texto sejam transparentes, usuais, a elaboração faz com que o texto seja
falsamente simples. Assim ele pode agradar a críticos e se inserir em um cânone
musical exigente.
Afinal, da observação dessas três obras não se
pode ainda chegar a uma conclusão sobre o que seria a simplicidade na arte. Trata-se
de três obras apreendidas por públicos diversos, através de suportes diversos,
e que são vistas pela crítica como exemplo de arte complexa, ou seja, aquela
que tem na elaboração e na sua conceituação elementos que apontam para uma
composição menos espontânea e mais criteriosa, mesmo que o resultado categorial
seja a simplicidade.
Essa relação entre o simples e o complexo é o
critério principal adotado por Affonso Romano de Sant’Anna, em Análise estrutural de romances brasileiros.
A diferença ali apontada por Sant’Anna entre obras literárias simples e
complexas pode ser estendida às demais artes. Desde que não se incorra na
redução a categorias extremas, ou se delimite um único critério para se chegar
à definição de simples ou complexo. Por exemplo, tanto o resultado categorial
quanto o esforço de elaboração devem ser vistos como critérios. Além, é claro,
daquilo que o poeta e teórico ali chama de complexidade: a ruptura com os
modelos validados pela tradição, já assimilados, e que correspondem a uma
ideologia que enxerga a representação estética como transparente: não somente a
arte representaria o real tal qual ele é reconhecido ou visto por ideologias
dominantes, como o faria através da adoção de procedimentos estéticos já
validados, reconhecidos. A resultante desses procedimentos é a transparência da
obra de arte, que não causa estranhamento nem em relação ao real representado
nem aos mecanismos estéticos usados para representá-lo. A obra de arte
transparente é simples, no sentido de estar atrelada às ideologias dominantes. Ela
adota caminhos já percorridos e que deixam suas receitas para quem quer
segui-los. Seria essa transparência uma das causas para se agruparem obras de
artes em períodos, em estilos de época, o que resulta em comparações baseadas
mais na identidade que na diferença. Esta última, para o poeta, é que seria
causa de estranhamento e de quebra de paradigmas. Romper com as ideologias que
tornam uma obra de arte atrelável ao já feito é causa de complexidade; as
grandes obras de arte teriam esse pressuposto. Este também acaba por tornar
canonizáveis obras reconhecidas como complexas, por desvinculá-las, tantas
vezes, do consumo a que se destina a obra kitsch,
seja o romance, a música, a tela, a escultura.
É ainda uma separação perigosa. Simples, para
Sant’Anna, não é o resultado categorial. Não se pode chamar de simples as três
obras colocadas acima, a partir do critério de Sant’Anna. A simplicidade delas
não resulta da adequação a modelos estéticos, nem a modos convencionais de se
reconhecer o real. A ideologia que dá origem a cada uma delas, embora diferente
uma da outra, faz com que elas adotem a opacidade como forma de recepção. O
público precisa atentar para sua elaboração, para o modo como elas destoam dos
modelos consagrados em suas esferas, pelo menos naqueles aspectos que respondem
por uma complexidade constatável. O resultado pode ser a simplicidade
categorial, aspectual, mas ela resulta de elaboração e de reflexão, de
posicionamento em relação ao que é produzido como arte e já é reconhecido como
tal. Está-se, ainda assim, numa relação complexa em que, em cada obra, a
complexidade, que é critério de valor, repousará sobre um ou outro aspecto
predominante. Ou com mais de um. Seja a ruptura com o real ou com o modo de
representá-lo, o receptor necessita estar de posse daqueles elementos que
caracterizam cada obra como uma linguagem estética específica. Sem o
reconhecimento desses elementos, não existe possibilidade de transparência ou
de opacidade, do simples ou do complexo. Saber que cada arte não apenas
representa o real, mas é formada por elementos, como cor, linha, volume, ritmo,
e que estes devem ser apreendidos como constituintes da arte, o seu real
anterior a toda coisa representada.
Essa relação torna reconhecível a complexidade
dos contos de Hemingway ou de Dalton Trevisan, da poesia de Orides Fontela ou
de Manuel Bandeira. A complexidade das alegorias de Kafka ou do fantástico de
Murilo Rubião também se apoiam nela. Explica como a simplicidade de Vidas secas e de demais obras de
Graciliano Ramos é resultante de constantes revisões e reescritas. São
simplicidades que diferem daquela dos modelos em que a linguagem já se tornou
transparente.
A complexidade, aqui, se afasta do simples
quando este é reconhecido como de baixa elaboração ou correspondendo a
ideologias estéticas que aceitam o já assimilado como padrão para o novo.
Apostar na insegurança, no trabalho de elaboração que pode resultar em obra
recusada pelo público acaba por tornar-se, como consequência, mais um critério
para a valorização da obra de arte. Elaborar arte torna-se, a priori, elemento
de valorização estética, mesmo quando a estranheza afasta o público. A aposta
no valor estético faz da obra objeto de culto.
* Professor do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
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