*Prof.ª. Dr.ª Sigrid Renaux
Recebemos, da colega Stelamaris Coser (UFES), um
exemplar de Viagens, deslocamentos,
espaços: conceitos críticos (Vitória: EDUFES, 2016), do qual é
organizadora. Como consta em sua apresentação, “esta coletânea se apresenta
como obra de referência e consulta voltada principalmente para professores e
estudantes universitários, a partir da seleção, descrição e análise de termos
críticos referentes a viagens, deslocamentos e espaços, com base em
desenvolvimentos teóricos contemporâneos” (COSER: 2016, p.13). Esta
objetividade na formulação, entretanto, não impede que, como Stelamaris finaliza,
Em lugar de conceitos fechados, entrecruzam-se, aqui,
discussões e abordagens que aprofundam temas sem que se transformem em ensaios
(...). Pensamos, ao invés disso, em articular na interdisciplinaridade saberes
dispersos e diversos relacionados tanto a movimento
quanto a lugar[1],
na tentativa de iluminar questões de permanência e transitoriedade, conhecido e
desconhecido, refúgio e desproteção – que constituem, afinal, questões da
humanidade em todos os tempos – sempre trilhando o fascinante percurso temático
do ser viajante, ou seja, de todos nós. (2016, p. 15)
A riqueza da obra
encontra-se, portanto, não apenas nos 43 verbetes que apresentam conceitos
críticos formulados por renomados professores e pesquisadores brasileiros e
estrangeiros, mas pelo entrecruzamento que essas referências geográficas
apresentam, ao abranger as relações entre cultura, geografia e história,
levando a novas perspectivas de interdisciplinaridade.
Já nos títulos dos
verbetes, apresentados em ordem alfabética, percebe-se a multiplicidade dos
conceitos a serem desenvolvidos:
APATRIDADE, APÁTRIDA; CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS; CASA, LAR; COSMOPOLITISMO; DESLOCAMENTO; DES-RE-TERRITORIALIZAÇÃO; DESVIO; DIÁSPORA; DISTÂNCIA, DISTANCIAMENTO; ENTRECRUZILHADA; ENTRELUGAR, LIMINARIDADE, TERCEIRO ESPAÇO; ESPAÇO; ESTADO-NAÇÃO; ESTRANGEIRO; EXÍLIO; EXOTISMO; EXTRATERRITORIALIDADE; FLÂNEUR, FLÂNERIE; FRONTEIRA; GLOBALIZAÇÃO; HABITAR, HABITABILIDADE; IMPERIALISMO; INSULARIDADE; LITERATURA DE VIAGEM; LUGAR, LOCALIZAÇÃO; METRÓPOLE; MIGRAÇÃO, MIGRÂNCIA; MOBILIDADE, MOVIMENTO, MOVÊNCIA; NÃO LUGAR; NÔMADE, NOMADISMO; OCIDENTALISMO, PÓS-OCIDENTALISMO; ORIENTALISMO; ORIGEM, COMEÇO; PERIFERIA, PERIFÉRICO; PERTENCIMENTO; PÓS-COLONIALISMO, COLONIALIDADE, DESCOLONIAL; PÓS-NACIONAL; RASTRO, TRAÇO; RUA; TRADUÇÃO; TRANSNACIONAL; VIAGEM; ZONA DE CONTATO.
Nossa citação de todos os termos tem a função de revelar o universo de possibilidades do qual os leitores podem fazer uso, pois, certamente, em qualquer pesquisa ou análise literária, cultural e histórica, o locus geográfico é imprescindível, seja ele aparentemente estático (casa, lar, espaço, lugar, origem, entre outros), dinâmico (deslocamento, diáspora, literatura de viagem, migração, entre outros), ou ambos (entrelugar, exílio, zona de contato, entre outros), todos eles envolvendo, evidentemente, a relação temporal. Dizemos “aparentemente”, porque nos próprios verbetes, após o título e o autor, aparecem os títulos de outros verbetes, facilitando assim a percepção das relações e correlações que podem ser estabelecidas entre estaticidade e dinamismo. Como observa Heloisa Toller Gomes, no Prefácio, “os diferentes textos/verbetes oscilam entre uma (sempre precária) ideia de permanência – potencialmente sugerida, por exemplo, em ‘habitar’, ‘casa’, ‘pertencimento’ – e a dura consciência da instabilidade que todos vivemos, predominante em noções e conceitos como exílio, desvio, apátrida e diáspora.” (2016, p. 17).
Tecendo comentários
sobre um dos verbetes – ‘Deslocamento’, de Sandra Regina Goulart Almeida (UFMG)
– ressaltamos os seguintes aspectos:
Após remeter o
termo a uma relação espaço-temporal, Goulart afirma que, além desta relação, “o
conceito está inerentemente ligado à construção
identitária”, como conceito-chave para a psicanálise: para Freud, “o
deslocamento é um mecanismo essencial para a elaboração dos sonhos, sendo
também responsável por atos falhos, lapsos, sintomas através dos quais o
inconsciente se faz presente”, enquanto que Lacan “associa o deslocamento ao
processo linguístico da metonímia”(2016, p. 49).
Entretanto, como continua Goulart, “a
experiência do deslocamento cultural
pode ser pensada não apenas como uma condição subjetiva, geopolítica, cultural
ou histórico-temporal, mas sobretudo, como uma realidade intelectual (...) a realidade de ser um intelectual da
contemporaneidade” o que leva à presença do conceito de deslocamento “na
proposta de Ricardo Piglia para o novo milênio” (2016, p. 50). Como Goulart
argumenta, Piglia – complementando as propostas de Italo Calvino – concebe a
literatura como um lugar através do qual um
outro pode falar, o lugar de deslocamento em direção ao outro, o movimento em direção a outra enunciação. Daí (...) a importância da distância e do
deslocamento para a literatura no novo milênio (PIGLIA, citado em Goulart: 2001,
p. 3). A este deslocamento “para a literatura no novo milênio”, Goulart
acrescenta ainda “para a crítica cultural na contemporaneidade” (2016, p. 50),
ampliando, assim, sua abrangência e aplicação.
Após mencionar conceitos de Clifford, Hall e
Gilroy, Goulart se detém para apresentar as contradições levantadas por Marc
Augé, que “estão inerentemente imbricadas nas percepções dos trânsitos
contemporâneos”, quais sejam: os paradoxos 1) do espaço temporal; 2) da
perenidade do presente; 3) do espaço social; 4) da separação econômica entre
países; 5) da produção e distribuição desigual do conhecimento. A eles, Goulart
acrescenta um sexto paradoxo: “as hierarquias ainda predominantes de gênero,
classe, etnicidade” (2016, p. 51). Ao enfatizar a associação de todos esses
paradoxos “aos movimentos do trânsito e do deslocamento, embora não se
restrinjam a eles” Goulart evidencia, novamente, o entrecruzamento de conceitos
mencionado por Coser, acima.
Goulart apresenta ainda as propostas de dois
teóricos sobre o assunto: Arjun Appadurai e Walter Moser. O primeiro estabelece
cinco dimensões para os fluxos culturais globais – paisagens étnicas, mediáticas, tecnológicas,
financeiras e ideológicas – todas elas remetendo “à ideia de movimento e
deslocamento, embora em perspectivas distintas.” Moser, inspirado na proposta
de Appadurai, estabelece três categorias que se relacionam à mobilidade na
contemporaneidade e às quais estão expostos os sujeitos: a locomoção
(deslocamento físico, viagem, diáspora e migração); a mediamoção (deslocamento
virtual proporcionado por eventos midiáticos); e a artemoção (experiência
estética do movimento de obras de arte e instalações). A proposta de Moser
evidencia a utilidade que essas categorias apresentam para os estudiosos, pois
ela abrange tanto a mobilidade física como a intelectual e a artística às quais
estamos expostos, em nossa contemporaneidade, tornando-nos, assim,
participantes de um “conceito de deslocamento” que “pressupõe o enfrentamento
de vários impulsos críticos e teóricos que marcam de forma indelével nossa era”
(GOULART: 2016, p. 51-2).
Esta exposição
sobre ‘Deslocamento’, a fim de exemplificar o interesse e pertinência desta
obra de referência e consulta, demonstra claramente o “vigor crítico” com o
qual foi o livro foi composto, como ressalta Heloisa Toller Gomes (2016: p.18),
pois todos os verbetes, acompanhados de uma bibliografia teórica de apoio,
mantêm este padrão de excelência, satisfazendo, pela clareza das apresentações,
tanto a estudantes como a professores e pesquisadores.
* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
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