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quinta-feira, 29 de junho de 2017

Considerações sobre VIAGENS, DESLOCAMENTOS, ESPAÇOS



                                        
          *Prof.ª. Dr.ª Sigrid Renaux

Recebemos, da colega Stelamaris Coser (UFES), um exemplar de Viagens, deslocamentos, espaços: conceitos críticos (Vitória: EDUFES, 2016), do qual é organizadora. Como consta em sua apresentação, “esta coletânea se apresenta como obra de referência e consulta voltada principalmente para professores e estudantes universitários, a partir da seleção, descrição e análise de termos críticos referentes a viagens, deslocamentos e espaços, com base em desenvolvimentos teóricos contemporâneos” (COSER: 2016, p.13). Esta objetividade na formulação, entretanto, não impede que, como Stelamaris finaliza,
Em lugar de conceitos fechados, entrecruzam-se, aqui, discussões e abordagens que aprofundam temas sem que se transformem em ensaios (...). Pensamos, ao invés disso, em articular na interdisciplinaridade saberes dispersos e diversos relacionados tanto a movimento quanto a lugar[1], na tentativa de iluminar questões de permanência e transitoriedade, conhecido e desconhecido, refúgio e desproteção – que constituem, afinal, questões da humanidade em todos os tempos – sempre trilhando o fascinante percurso temático do ser viajante, ou seja, de todos nós. (2016, p. 15)
A riqueza da obra encontra-se, portanto, não apenas nos 43 verbetes que apresentam conceitos críticos formulados por renomados professores e pesquisadores brasileiros e estrangeiros, mas pelo entrecruzamento que essas referências geográficas apresentam, ao abranger as relações entre cultura, geografia e história, levando a novas perspectivas de interdisciplinaridade.
Já nos títulos dos verbetes, apresentados em ordem alfabética, percebe-se a multiplicidade dos conceitos a serem desenvolvidos:  

APATRIDADE, APÁTRIDA; CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS; CASA, LAR; COSMOPOLITISMO; DESLOCAMENTO; DES-RE-TERRITORIALIZAÇÃO; DESVIO; DIÁSPORA; DISTÂNCIA, DISTANCIAMENTO; ENTRECRUZILHADA; ENTRELUGAR, LIMINARIDADE, TERCEIRO ESPAÇO; ESPAÇO; ESTADO-NAÇÃO; ESTRANGEIRO; EXÍLIO; EXOTISMO; EXTRATERRITORIALIDADE; FLÂNEUR, FLÂNERIE; FRONTEIRA; GLOBALIZAÇÃO; HABITAR, HABITABILIDADE; IMPERIALISMO; INSULARIDADE; LITERATURA DE VIAGEM; LUGAR, LOCALIZAÇÃO; METRÓPOLE; MIGRAÇÃO, MIGRÂNCIA; MOBILIDADE, MOVIMENTO, MOVÊNCIA; NÃO LUGAR; NÔMADE, NOMADISMO; OCIDENTALISMO, PÓS-OCIDENTALISMO; ORIENTALISMO; ORIGEM, COMEÇO; PERIFERIA, PERIFÉRICO; PERTENCIMENTO; PÓS-COLONIALISMO, COLONIALIDADE, DESCOLONIAL; PÓS-NACIONAL; RASTRO, TRAÇO; RUA; TRADUÇÃO; TRANSNACIONAL; VIAGEM; ZONA DE CONTATO.

Nossa citação de todos os termos tem a função de revelar o universo de possibilidades do qual os leitores podem fazer uso, pois, certamente, em qualquer pesquisa ou análise literária, cultural e histórica, o locus geográfico é imprescindível, seja ele aparentemente estático (casa, lar, espaço, lugar, origem, entre outros), dinâmico (deslocamento, diáspora, literatura de viagem, migração, entre outros), ou ambos (entrelugar, exílio, zona de contato, entre outros), todos eles envolvendo, evidentemente, a relação temporal. Dizemos “aparentemente”, porque nos próprios verbetes, após o título e o autor, aparecem os títulos de outros verbetes, facilitando assim a percepção das relações e correlações que podem ser estabelecidas entre estaticidade e dinamismo. Como observa Heloisa Toller Gomes, no Prefácio, “os diferentes textos/verbetes oscilam entre uma (sempre precária) ideia de permanência – potencialmente sugerida, por exemplo, em ‘habitar’, ‘casa’, ‘pertencimento’ – e a dura consciência da instabilidade que todos vivemos, predominante em noções e conceitos como exílio, desvio, apátrida e diáspora.” (2016, p. 17).
Tecendo comentários sobre um dos verbetes – ‘Deslocamento’, de Sandra Regina Goulart Almeida (UFMG) – ressaltamos os seguintes aspectos:
Após remeter o termo a uma relação espaço-temporal, Goulart afirma que, além desta relação, “o conceito está inerentemente ligado à construção identitária”, como conceito-chave para a psicanálise: para Freud, “o deslocamento é um mecanismo essencial para a elaboração dos sonhos, sendo também responsável por atos falhos, lapsos, sintomas através dos quais o inconsciente se faz presente”, enquanto que Lacan “associa o deslocamento ao processo linguístico da metonímia”(2016, p. 49).
 Entretanto, como continua Goulart, “a experiência do deslocamento cultural pode ser pensada não apenas como uma condição subjetiva, geopolítica, cultural ou histórico-temporal, mas sobretudo, como uma realidade intelectual (...) a realidade de ser um intelectual da contemporaneidade” o que leva à presença do conceito de deslocamento “na proposta de Ricardo Piglia para o novo milênio” (2016, p. 50). Como Goulart argumenta, Piglia – complementando as propostas de Italo Calvino – concebe a literatura como um lugar através do qual um outro pode falar, o lugar de deslocamento em direção ao outro, o movimento em direção a outra enunciação. Daí (...) a importância da distância e do deslocamento para a literatura no novo milênio (PIGLIA, citado em Goulart: 2001, p. 3). A este deslocamento “para a literatura no novo milênio”, Goulart acrescenta ainda “para a crítica cultural na contemporaneidade” (2016, p. 50), ampliando, assim, sua abrangência e aplicação.
 Após mencionar conceitos de Clifford, Hall e Gilroy, Goulart se detém para apresentar as contradições levantadas por Marc Augé, que “estão inerentemente imbricadas nas percepções dos trânsitos contemporâneos”, quais sejam: os paradoxos 1) do espaço temporal; 2) da perenidade do presente; 3) do espaço social; 4) da separação econômica entre países; 5) da produção e distribuição desigual do conhecimento. A eles, Goulart acrescenta um sexto paradoxo: “as hierarquias ainda predominantes de gênero, classe, etnicidade” (2016, p. 51). Ao enfatizar a associação de todos esses paradoxos “aos movimentos do trânsito e do deslocamento, embora não se restrinjam a eles” Goulart evidencia, novamente, o entrecruzamento de conceitos mencionado por Coser, acima.
 Goulart apresenta ainda as propostas de dois teóricos sobre o assunto: Arjun Appadurai e Walter Moser. O primeiro estabelece cinco dimensões para os fluxos culturais globais –  paisagens étnicas, mediáticas, tecnológicas, financeiras e ideológicas – todas elas remetendo “à ideia de movimento e deslocamento, embora em perspectivas distintas.” Moser, inspirado na proposta de Appadurai, estabelece três categorias que se relacionam à mobilidade na contemporaneidade e às quais estão expostos os sujeitos: a locomoção (deslocamento físico, viagem, diáspora e migração); a mediamoção (deslocamento virtual proporcionado por eventos midiáticos); e a artemoção (experiência estética do movimento de obras de arte e instalações). A proposta de Moser evidencia a utilidade que essas categorias apresentam para os estudiosos, pois ela abrange tanto a mobilidade física como a intelectual e a artística às quais estamos expostos, em nossa contemporaneidade, tornando-nos, assim, participantes de um “conceito de deslocamento” que “pressupõe o enfrentamento de vários impulsos críticos e teóricos que marcam de forma indelével nossa era” (GOULART: 2016, p. 51-2).
Esta exposição sobre ‘Deslocamento’, a fim de exemplificar o interesse e pertinência desta obra de referência e consulta, demonstra claramente o “vigor crítico” com o qual foi o livro foi composto, como ressalta Heloisa Toller Gomes (2016: p.18), pois todos os verbetes, acompanhados de uma bibliografia teórica de apoio, mantêm este padrão de excelência, satisfazendo, pela clareza das apresentações, tanto a estudantes como a professores e pesquisadores.
* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE







[1] Todos os negritos são nossos.



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