O NOVO
GÓTICO NA LITERATURA E NA TV
Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
Seguindo uma
tendência que se fez comum, na literatura, no fim dos anos 1990 e no início do
século XXI, Pedro Vieira, em Memórias desmortas de Brás Cubas,
revisita um clássico machadiano, recriando-o parodisticamente. Na versão
contemporânea, a história de Brás Cubas constitui o eixo narrativo, mas
personagens de outros textos de Machado de Assis interferem no enredo, ao
cruzarem o caminho de Brás, que agora é um zumbi, sedento por vingança. No
texto de Vieira, assim como nas paródias em geral, “a ironia é […] uma forma
sofisticada de expressão. A paródia é igualmente um gênero sofisticado […]. O
codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma sobreposição
estrutural de textos que incorpore o antigo no novo” (HUTCHEON, 1985, p. 50).
Essa dualidade constitutiva da paródia alinha-se perfeitamente às oposições que
caracterizam o resgate do gótico, conforme Dani Cavallaro apresenta em seu
livro, na categoria “Ideological connotations” (CAVALLARO, 2002, p. 8), e
também à hibridação que caracteriza a literatura weird: “[…] weird
fiction generates its own distinctive conventions and its own generic form, but
it remains an unstable construction” (NOYS; MURPHY, 2016, p. 117).
Combinando com a
escolha do zumbi como personagem, Vieira inclui, na lista de títulos dos
capítulos, vários filmes (como, por exemplo, Resident evil, Eu
sou a lenda e Avatar), o que consolida o perfil
interartístico e intermidiático do livro. A certa altura, o próprio Brás Cubas
informa o leitor sobre a novidade: “[…] não estranhe quando eu citar A
Madrugada dos Mortos ou Blade Runner. Foi-se o tempo
em que eu me importava em citar Virgílio ou Sêneca – este texto não é pra você,
intelectualóide de plantão […]” (VIEIRA, 2010, p. 20). Outra característica que
exemplifica o cruzamento da literatura com o cinema é o uso da estética trash:
“Deus, que estrago eu havia feito naquele crânio. Era um buraco enorme, com
massa cinzenta morta ainda escorrendo” (VIEIRA, 2010, p. 31). Além disso,
o trash é indissociável do exagero (SCONCE, 1995), que Dani
Cavallaro inclui em uma das categorias do gótico, e o horror, que sempre deve
vir associado ao terror: “No que tange à literatura gótica, e mesmo ao cinema que se utiliza da
herança dessa literatura, o horror enquanto técnica ficcional é muito atraente
porque é relativamente fácil e simples de ser construído: uma cena de horror
não precisa mais do que uma boa descrição de jorros de sangue ou de tomadas bem
feitas de pedaços de corpos” (ROSSI, 2014, p. 68). Apesar
de não ter estudado esse tipo específico de literatura, Aristóteles, em
sua Poética, faz uma observação relevante e aplicável ao presente
estudo: “[…] nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas
coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, animais ferozes e cadáveres”
(ARISTÓTELES, 1991, p. 203). Esse processo é também dual e antagônico, razão
pela qual Dani Cavallaro refere-se a ele como elemento-chave na literatura
gótica: “[The Gothic] examines the confluence of terror as a potent yet
indistinct apprehension of sublime dread and horror as a
physical manifestation of the inexplicable and the abnormal” (CAVALLARO,
2002, p. ix, grifo nosso).
Coerente com esse
argumento, vale lembrar a dualidade do zumbi, que, em sua condição de
morto-vivo, encarrega-se de introduzir o desconhecido na realidade cotidiana:
“Paradoxically, we need the consistent consciousness of death provided by the
Gothic in order to understand and want that life” (BRUHM, 2002, p. 274). De
acordo com Lovecraft: “A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a
espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT,
1987, p. 1). Conforme Bauman, há um processo humano e bastante comum: sempre
que a ideia da morte surge, nas situações de medo e violência, acabamos por
valorizar mais a vida: “A
advertência memento mori, lembrar-se da morte, […] é uma
afirmação do impressionante poder dessa promessa de lutar contra o impacto
imobilizante da iminência da morte. […]. Lembrar a iminência da morte mantém a
vida dos mortais no curso correto – dotando-a de um propósito que torna
preciosos todos os momentos vividos” (BAUMAN, 2008, p. 47).
***
Esta análise objetiva
discutir o novo gótico na minissérie Vade
retro, exibida na Rede Globo, em 11 capítulos, no período de 20 de abril a
29 de junho de 2017. Com texto de Fernanda Young e Alexandre Machado e direção
geral de Mauro Mendonça Filho, Vade retro
mistura o fantástico com a estética gótica, por privilegiar o “dualismo” do
“bem contra o mal” (JACKSON, 1981, p. 49). A história envolve a protagonista
Celeste (advogada de vida comum, noiva e que mora com a mãe) e o antagonista
Abelardo Zebul (ou, simplesmente, Abel Zebul, rico empresário, palestrante
motivacional, casado com Lucy, com quem cria dois filhos, Damian e Carrie).
No que se refere à
temática, as minisséries tradicionalmente elegem assuntos pertinentes à
“realidade brasileira, sintonizando assim com as expectativas da faixa de
audiência mais sofisticada a que se destinam” (MELO, 1988, p. 33). Com relação
a essas características, constata-se que Vade
retro faz uso da realidade nacional, mas tangendo-a de modo sutil, porque
utiliza os personagens Abel e Celeste para construir a alegoria do diabo contra
a menina que tinha fama de santa, por ter sido beijada pelo Papa. Porém,
considerando a estrutura dos núcleos comandados pela protagonista e pelo
antagonista, percebe-se a família como base. Abel é casado com Lucy e com ela
cria o filho Damian e a enteada Carrie; e Celeste mora com a mãe e é noiva de
Davi, com quem pretende formar uma família. Segundo Lovecraft, essa
configuração é necessária também na literatura gótica: “Uma história de
fantasma [...] deve ter um cenário familiar na época moderna, para estar mais
próxima da esfera da experiência do leitor. Além do mais, os fenômenos
espectrais devem ser maléficos e não propícios; pois é o medo a emoção primária a ser suscitada” (LOVECRAFT, 1987, p. 100). Na
minissérie Vade retro, o protagonista
é o próprio diabo, característica que estabelece simultaneamente o fantástico e
o novo gótico. Conforme postula Rossi: “O gótico chega, então, ao século XXI já
transformado e adaptado à miríade dos novos padrões culturais, mas sem perder
sua essência: a escuridão, a noite, o Mal, o terror e o horror, a psicologia do
medo, a instauração de impasses na racionalidade da lógica” (ROSSI, 2008, p.
75). Nesse comentário, o autor menciona o terror, trazendo à tona um gênero que
apresenta inúmeras coincidências em relação ao fantástico e ao gótico. A
citação a seguir corrobora esse cruzamento:
Um evento estranho e inesperado desperta
a mente, e mantém isso na continuidade; e onde a agência de seres invisíveis é
introduzida, de "formas não vistas, poderosas e distantes de nós",
nossa imaginação, enquanto se lança adiante, explora com êxtase o mundo novo
que lhe é exposto, e se enaltece com a expansão de seus poderes. Paixão e
fantasia cooperando elevam a alma a seu patamar mais alto; e a dor do terror é
perdida em assombro.
(AIKIN;
AIKIN, 2018, grifo no original, tradução nossa)
Na
estrutura, Vade retro adota uma
estrutura mais complexa. Entre as 14 variações de enredo adequadas à literatura
de horror e citadas por Carroll, constata-se que a minissérie utiliza a forma mais completa, que
inclui “desagradável / descoberta / confirmação / confrontação" (CARROLL,
1990, p. 116, tradução nossa). O enredo da minissérie também recorre aos
clichês do terror. Embora isso não seja verossímil, no sentido popular do
termo, já que realça a presença do sobrenatural na narrativa, Aumont esclarece
que a verossimilhança vai muito além da proximidade com a realidade. Segundo
ele: “O verossímil diz respeito, simultaneamente, à relação de um texto com a
opinião comum, à sua relação com outros textos, mas também ao funcionamento
interno da história que ele conta” (AUMONT, 1995, p. 141). Por conta dessa
necessidade, de apresentar várias das características típicas do terror, Vade retro usou cenas como as
reproduzidas a seguir, que, por sua vez, concretizam esta afirmação de Jackson:
A topografia do fantástico moderno sugestiona
uma preocupação com problemas de visão e visibilidade e para isso estruturou
uma imagem espectral ao redor: é notável quantas fantasias introduzem espelhos,
óculos, reflexões, retratos, olhos - que veem coisas de modo míope ou
distorcido, como se estivessem fora de foco - para efetuar uma transformação do
familiar para aquilo que não é familiar (JACKSON, 1981, p. 43, tradução nossa)
Figura 1: Mensagem escrita para Celeste, no vidro do
box, e cruz refletida no olhar do homem que se apresenta como tio do filho de
Abel e Celeste (VADE, 2017).
De
fato, na cena de Celeste, a mensagem aparece escrita em um box de vidro. Na imagem do suposto irmão de
Abel, destacam-se os olhos em close-up e a cruz refletida neles. Para ampliar a dualidade do novo gótico, bem como
para aumentar a etapa da confrontação entre o bem e o mal, a minissérie inclui
a encenação de um julgamento, no episódio final. Com disso, a narrativa acumula
as linguagens da Ciência Jurídica e da Física em sua estrutura híbrida, nas
argumentações de Celeste. Ela relembra o confronto final com Abel e defende que
Abel era o próprio diabo. O discurso da personagem, marcado pela ironia e pela
complementaridade entre o sério e o cômico, aprofunda a dualidade do novo
gótico, representada pela tentação do diabo, pela fragilidade do humano e pelo
conflito do bem contra o mal, que, no enredo, reencenam os problemas de medo,
insegurança e alteridade do mundo real.
REFERÊNCIAS
AIKIN, J; AIKIN, A. L. Pleasure derived from objects of terror,
with Sir Bertrand, a fragment. Disponível em:
<http://www.searchengine.org.uk/ebooks/87/77.pdf>. Acesso em: 10 abr.
2018.
ARISTÓTELES. Poética. São
Paulo: Nova Cultural, 1991.
AUMONT,
J. et al. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995.
BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRUHM, S.
The contemporary Gothic: why we need it. In: HOGLE. J. E. (Ed.). The
Cambridge Companion to Gothic Fiction.
London: Cambridge University,
2002, p. 259-276.
CARROLL, N. The philosophy of horror or paradoxes of the heart. New York; London: Routledge, 1990.
CAVALLARO,
D. Gothic vision. Three centuries of horror, terror and
fear. London:
Continuum, 2002.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Ensinamentos
das formas de arte do século XX. Rio de Janeiro: Edições 70,
1985.
JACKSON, R. Fantasy: the literature of subversion. London: Methuen, 1981.
LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em
literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
MELO,
J. M. de. As telenovelas da Globo: produção e exportação. São Paulo: Summus, 1988.
NOYS, B.;
MURPHY, T. S. Old and new weird. Genre: forms of discourse and
culture, v. 49, n. 2, 2016, p. 117-134.
ROSSI, A. D. Manifestações e configurações do
gótico nas literaturas inglesa e norte-americana: um panorama. Ícone, v. 2, jul. 2008, p. 55-76.
SCONCE,
J. Trashing the academy: taste, excess, and an emerging politics of cinematic
style. Screen, v. 36, 1995, p.371-393.
VADE
retro. Texto de Fernanda
Young e Alexandre
Machado. Direção de André Felipe Binder, Rodrigo Meirelles e Mauro
Mendonça Filho. BRA: Rede Globo, 2017. Minissérie (11 capítulos); son.
VIEIRA, P. Memórias desmortas de Brás Cubas.
São Paulo: Tarja, 2010.
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