A
INOVAÇÃO A PARTIR DO ARTIFICIALISMO
Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
NA TV: MEU PEDACINHO DE CHÃO (2014)
Neste estudo, será
analisada a telenovela Meu pedacinho de
chão (2014), assinada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando
Carvalho, em parceria com Carlos Araújo. Exibida na faixa das 18h e com 96
capítulos, a novela ficou no ar desde 7 de abril até 1⁰
de agosto de 2014. Com base no conceito de verossimilhança e no formato
tradicional das telenovelas brasileiras, esta reflexão pretende demonstrar as
principais inovações que integram o projeto estético de Meu pedacinho de chão. Ao propor um mundo artificial,
aproximando-se da linguagem utilizada nos desenhos animados, a obra rompe com o
horizonte de expectativa do público televisivo, ao mesmo tempo em que
experimenta novos recursos, os quais, por sua vez, expandem as possibilidades
artísticas da telenovela. A produção exibida recentemente é a segunda versão da
novela, que foi ao ar pela primeira vez em 1971.
No remake, o factual é transmutado pela fantasia e pelo artificial,
elementos determinantes na obra, tendo em vista sua relação intermidiática com
os desenhos animados. Dessa forma, ao
privilegiar cenas não realistas, dando relevo ao artificialismo, a produção
televisiva em análise institui novas opções tecnoestéticas, as quais
influenciam decisivamente os processos de produção e recepção. De modo a exemplificar
as principais alterações na produção de Meu
pedacinho de chão (2014), imagens do figurino e do cenário demonstram a
ênfase a cores, formas e materiais que contribuem na artificialização dos
personagens, espaços e das cenas como um todo.
Figura 1: Cenário e figurinos da novela Meu
pedacinho de chão (2014)
Imagem disponível em:
<http://www.oficinadamoda.com.br>
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Nas imagens acima,
Juliana usa cabelo cor-de-rosa, vestido feito não apenas com tecido, mas também
com plástico, e colorido, com dois tons de rosa e de azul, além do vermelho e
do preto. O design da roupa e dos
acessórios é bastante significativo, já que é o grande diferencial,
considerando-se os modelos convencionais de roupas, usados hoje em dia.
Igualmente, Zelão utiliza o preto e as três cores puras e, por esse contraste,
inova no estilo caubói. O cavalo de carrossel infantil (ornado, colorido e com
tons parecidos aos da roupa do protagonista) e as flores de plástico, ao fundo,
também ajudam a consolidar a estética não realista da telenovela. Além disso,
há o espaço da venda, com queijos, presuntos e salames visivelmente
cenográficos. Até o espectador menos atento percebe que os queijos não passam
de peças de isopor pintadas, às vezes com imperfeição, afinal, a
artificialidade é a meta da equipe de produção.
A princípio, a narrativa parece verossímil, pelos
temas (diferenças familiares e políticas), pelos núcleos formados pelos
personagens (escola, igreja, família, etc.) e pelos espaços comuns (estação de
trem, venda, escola, etc.), mas o espectador percebe rapidamente uma ou outra
interferência de elementos estranhos nas cenas (um trem de brinquedo, um cavalo
falso, árvores com caules rendados e assim por diante). Sendo assim, no
primeiro momento, Meu pedacinho de chão (2014) mostra mais semelhança com o
fantástico. Porém, no maravilhoso, ao contrário do que muitos afirmam, é
possível existir um universo pretensamente real, assim como também é permitido
que o estranhamento apareça gradativamente, na história. O limite entre fantástico e maravilhoso, portanto, é
muito tênue, e o predomínio de um ou de outro depende do posicionamento dos
personagens diante de um evento considerado extraordinário: “Um segundo nível
de maravilhoso não tão radical permite que os seres humanos comuns convivam num
cotidiano aparentemente verossímil com seres sobrenaturais, com fantasmas ou
almas etc. Na medida em que esses seres não são questionados dentro do universo
narrativo, também o leitor os aceita, porque aceita a ficção e seus
pressupostos” (RODRIGUES, 1988, p. 56). Na versão de 2014 da telenovela em
questão, ocorria exatamente isso. Nenhum personagem estranhava as roupas de
plástico da professora, as galinhas de porcelana espalhadas pela fazenda ou o
capim multicolorido à beira das estradas. Essas diferenças de Meu pedacinho
de chão (2014) desempenharam pelo menos duas funções muito importantes para
a sociedade contemporânea. Elas permitiram a “ruptura no sistema de regras
preestabelecidas” (TODOROV, 1982, p. 86) na teledramaturgia e na realidade
cotidiana, proporcionando um novo formato de texto, que, por sua vez,
reorientava o comportamento do público e da crítica.
NO
CINEMA: SIN CITY (2005)
Na presente análise, um
breve comparativo entre a série Sin city,
de Frank Miller, e o filme Sin city — A
cidade do pecado, de Robert Rodriguez, objetiva demonstrar como o formato
da graphic novel e a tecnologia
digital foram decisivos para uma revolução na estética cinematográfica. No
projeto do diretor, percebe-se que o destaque vai para a estética do desenho,
colocando a sétima arte em segundo plano: “[...] pensei em transformar o filme
em livro. As mídias são semelhantes. São fotografias de movimento” (SIN CITY,
2005). A
interface digital também contribui para a semelhança entre os desenhos da graphic novel e as cenas do filme, além
de oferecer novas possibilidades à linguagem cinematográfica. Em suma, a
remixagem e a proximidade com a arte de Frank Miller deram um novo estilo ao
filme de Rodriguez e ao cinema como um todo. As cenas de Sin city fizeram uso do chroma-key,
o que significa dizer que foram filmadas em um espaço todo verde, sem cenário
de fundo (o único cenário real é o bar da cidade do pecado). Apenas
posteriormente os cenários virtuais, em 3D, e que tinham como base os desenhos
de Miller eram acrescentados às cenas. Dessa forma, cena e cenário passavam por
processos independentes, para só depois se transformarem em componentes do
mesmo filme.
Um ponto a ser
verificado, no processo de adaptação, diz respeito à cor. Apesar de Frank
Miller usar apenas o branco e o preto, no filme também aparece o cinza. Apesar
das dificuldades, Rodriguez recorreu também à luz negra para garantir que a
estética de Miller pudesse predominar no longa-metragem. Isso ocorreu em duas
situações: nas cenas com sangue branco, que “não
pôde ser produzido de forma convincente nos sets de filmagens. Desta forma foi
usado um líquido vermelho fluorescente, que foi filmado com uma luz negra.
Posteriormente a cor deste líquido foi alterada para branco” (ADORO CINEMA,
2018); e nos curativos de Marv, em tom quase brilhante de branco, para acentuar
o contraste com o preto, como comprovam as imagens a seguir:
Figura 2: Marv, em desenho de
Frank Miller (à esq.) e em cena do filme Sin
city (2005) (à dir.)
Imagens disponíveis em:
<http://www.deviantart.com> e <http://www.tumbrl.com>
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Considerando
a parte estética, uma técnica usual de Miller é vazar uma imagem e depois
preenchê-la com a cor branca. Robert Rodriguez utiliza esse artifício no final
d o filme. A estratégia funciona como diferencial no processo de tradução
intraimagética, afinal, na concepção da cena, o diretor recusa por completo a
verossimilhança, que poderia ser facilmente alcançada pelos efeitos
cinematográficos, para dar destaque ao pictórico e ao artificial:
Figura 3: A morte de Hartigan: na
graphic novel de Frank Miller, à
esquerda (MILLER, 2005, p. 223); e em cena do filme, à direita (SIN CITY, 2005)
|
Tal
proximidade entre as artes encontra respaldo no processo de remediação, que, de
acordo com Bolter e Grusin, pode resultar na reconfiguração das artes: “O objetivo da remediação é remodelar ou
reabilitar outras mídias. Além disso, como todas as mediações são reais e
mediações do real, a remediação também pode ser entendida também como um
processo de reforma da realidade” (BOLTER;
GRUSIN, 2000, p. 56). De fato, o filme reformula a outra mídia, por apresentar
os desenhos da graphic novel no
formato cinematográfico e também para o público da sétima arte, mais numeroso,
porque inclui também leigos, cinéfilos, leitores e não- leitores das histórias
de Frank Miller. Sendo assim, o texto-base do longa-metragem passa por um
processo de aprimoramento, que envolve maior repercussão e mais desenvolvimento
técnico. Além disso, é importante ressaltar que Jay Bolter e Richard Grusin
associam a remediação à reforma da realidade. Robert Rodriguez exemplifica isso
quando recusa o padrão realista e decide promover a suprarrealidade,
característica inerente ao formato da graphic
novel. Dessa forma, o diretor consegue mostrar que os efeitos de ilusão
realística do cinema podem ser substituídos, para dar outra feição ao filme.
REFERÊNCIAS
ADORO CINEMA. Sin
city - A cidade do
pecado. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-56067/curiosidades/>.
Acesso em: 1 ago. 2018.
BOLTER, J. D.;
GRUSIN, R. Remediation:
understanding new media. Cambridge: MIT, 2000.
MEU
PEDACINHO DE CHÃO. Texto de Benedito Ruy Barbosa. Direção de Luiz Fernando Carvalho. BRA: Rede
Globo,
2014. Telenovela (96 capítulos); son.
MILLER, F. That yellow bastard. Sin city. Vol. 4. Oregon: Dark
Horse Books, 2005.
RODRIGUES,
S. C. O fantástico. São Paulo:
Ática, 1988.
SIN
CITY: A cidade do pecado. Direção de Robert
Rodriguez, Frank Miller e Quentin Tarantino. EUA: Elizabeth
Avellan, Frank Miller e Robert Rodriguez; Dimension
Films, Miramax Films e Buena Vista International, 2005. 1 DVD (126 min); son.
TODOROV,
T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva: 1982.
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*
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso
de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu
Este
artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em
Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da
Profa. Dra. Patrícia Cardoso.
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