TECNOLOGIA
DIGITAL E INOVAÇÃO ESTÉTICA NO CINEMA
E
NA LITERATURA
Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
Filme Ela, de Spike Jonze
Ela
conta
a história de Theodore, que, recém-separado, resolve aderir à tecnologia para
fugir da solidão. Ele compra um sistema operacional (“OS1”), que, no
computador, ganha uma voz feminina e o nome de Samantha. A partir de então,
Theodore consegue preencher a falta de uma mulher em sua vida. Samantha pode
ver, falar e ouvir, afinal o OS1 “não é só um sistema operacional; é uma consciência”
(ELA, 2013). Portanto, no filme, Samantha é uma personagem incorpórea, mas que
tem papel fundamental no enredo. O fato de Theodore se relacionar com um
sistema operacional modifica as noções de personagem e representação. Na
maioria das cenas de Ela, Theodore é
visto sozinho.
Figura 1: Cenas que mostram Theodore sozinho,
interagindo apenas com a voz de Samantha, por meio do smartphone. Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br>
e <http://daskaminzimmer.blogspot.com>
|
Porém, não se trata de
um monólogo; as falas dele fazem parte das conversas que ele tem com Samantha.
É exatamente nesse ponto que o filme subverte conceitos que são tradicionais no
teatro, no cinema ou na TV. Segundo Patrice Pavis: “É através do uso de pessoa em gramática que a persona adquire pouco a pouco o
significado de ser animado e de pessoa, que a personagem teatral passa a ser
uma ilusão de pessoa humana” (PAVIS, 1999, p. 285, grifo no original). Esse
processo não se consolida em Ela,
porque Samantha não tem corpo. Como sistema operacional, ela existe
fisicamente, mas de modo parcial. A existência dela está condicionada a uma
máquina e a Theodore, que, além de comprar o sistema, também precisa
instalá-lo, formatá-lo e habilitá-lo, em seu computador e no smartphone.
Com base nos estudos de
Cândida Gancho, um personagem existe quando “participa efetivamente do enredo
[...], age ou fala” (GANCHO, 2006, p. 14). Samantha preenche todos esses
requisitos, afinal o filme conta a história do relacionamento amoroso vivido entre
Theodore e seu sistema operacional. Aliás, ela não age apenas sob o comando de
seu dono, mas também à revelia dele,
demonstrando um comportamento condizente com a função de uma protagonista e
revelando a complexidade que caracteriza os personagens redondos, os quais
apresentam “várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o
leitor [...], constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares
do ser humano” (BRAIT, 2006, p. 1). Samantha faz o possível para parecer humana
e assim acaba envolvendo não apenas seu parceiro, mas também o espectador.
Entretanto, Theodore, em uma discussão, irrita-se com essa mania dela e dá
início ao seguinte diálogo:
THEODORE: Você suspira enquanto fala. Isso parece estranho. [...].
SAMANTHA: [...]. Sinto muito. Não sei. Talvez seja um costume que aprendi com você.
THEODORE: Você não precisa de oxigênio.
SAMANTHA: Acho que tentava me comunicar. É assim que as pessoas falam. [...].
THEODORE: Pessoas precisam de oxigênio. Você não é uma pessoa. [...].
SAMANTHA: Acha que não sei que não sou uma pessoa? O que está fazendo?
THEODORE: Acho que não devemos fingir que você é algo que não é.
SAMANTHA: Vai se foder. Não estou fingindo. [...]. No momento, não gosto de quem sou. Preciso de um tempo para pensar. (ELA, 2013)
THEODORE: Você suspira enquanto fala. Isso parece estranho. [...].
SAMANTHA: [...]. Sinto muito. Não sei. Talvez seja um costume que aprendi com você.
THEODORE: Você não precisa de oxigênio.
SAMANTHA: Acho que tentava me comunicar. É assim que as pessoas falam. [...].
THEODORE: Pessoas precisam de oxigênio. Você não é uma pessoa. [...].
SAMANTHA: Acha que não sei que não sou uma pessoa? O que está fazendo?
THEODORE: Acho que não devemos fingir que você é algo que não é.
SAMANTHA: Vai se foder. Não estou fingindo. [...]. No momento, não gosto de quem sou. Preciso de um tempo para pensar. (ELA, 2013)
Portanto, sob as
perspectivas da narrativa e do perfil psicológico, não restam dúvidas de que
Samantha encaixa-se na categoria de personagem. Apesar de a voz não ser algo
visível, ela contribui para o aspecto corpóreo
de Samantha, já que é a partir da fala que o texto escrito ganha forma, nas
mídias audiovisuais. Samantha nunca é vista, mas pode ser ouvida, o que
exemplifica a técnica conhecida como voz over (DOANE, 1983, p.
467). Conforme
Silvia Davini: “Cada momento de fala implica a justaposição simultânea de
várias instâncias, ao nível da contracena [...] e da cena” (DAVINI, 1998, p.
41), que a autora define respectivamente como: “plano da relação entre os
atores” e “plano da relação dos atores com a audiência” (DAVINI, 1998, p. 41). De
acordo com a definição de contracena apresentada nessas citações, que prevê a
“relação entre os atores”, percebe-se a inovação do filme em análise, tal como
demonstrado nas cenas da Fig. 1.
Videopoema Sou volúvel, de
Arnaldo Antunes
Associado ao computador
e ao espaço cibernético, o videopoema escolhido para análise, neste trabalho,
corresponde ao formato “usado, no Brasil e em Portugal, desde os anos [19]80,
[...], viabilizando as primeiras obras poéticas que se valem da exploração de
novas tecnologias e reiterando a busca de um movimento que vá além da
bidimensionalidade da página impressa” (GUIMARÃES, 2007, p. 51-52). Conforme
Arlindo Machado: “Na tela do vídeo ou do computador, as palavras se encontram
livres das amarras tradicionais, podendo, portanto, ser articuladas através de
procedimentos sintáticos jamais sequer imaginados nos modelos convencionais de
escritura” (MACHADO, 2003, p. 219).
No
texto de Arnaldo Antunes, a videografia e o espaço virtual disponibilizam
recursos que modificam completamente a expressão literária. Essa nova
característica é dada pela passagem do texto da página impressa para a tela do
computador. Dessa forma, os vídeos do poeta podem ser qualificados como “obras
que se movimentam” (BARRET, 2000, p. 188), exemplificando um desdobramento da
arte cinética. Os videopoemas apresentam elementos visuais dispostos na tela,
caracterizando-se também pela espacialidade. Essa particularidade coincide com
a estética da Poesia Concreta, considerada como o “produto de uma evolução
crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso”, porque
privilegiava o “espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado:
estrutura espácio-temporal” (CAMPOS et al.,
2014, p. 156). Denise Guimarães, ao avaliar a fusão ente palavra e imagem nos
poemas visuais e ao comentar a influência do Concretismo sobre esse tipo de
produção poética, afirma: “[...] constata-se que a cronossintaxe [...] é
substituída por uma topossintaxe; [...] dessa forma, a justaposição das
unidades verbais passa a ser percebida como integrada a outro sistema sígnico”
(GUIMARÃES, 2018, p. 139).
No videopoema Sou volúvel, temos: “De onde a ideia vai sair? / Por onde vai
andar? / Onde o pensamento vai chegar? / Acho que ele pode atravessar um
território perigoso” (ANTUNES, 2016). Esses versos servem de ponto de partida
para o vídeo,
que ressalta a volubilidade da palavra, fazendo-a voar,
literalmente, em várias cenas, para depois se desfazer e, ao final, poder ser
apreendida e registrada. Os frames abaixo representam essas três etapas do
cibertexto em questão:
Figura 2: Sequência de frames
do videopoema Sou volúvel, de Arnaldo
Antunes
Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs
|
O texto confere
movimento real à palavra e ao texto literário, ao mesmo tempo em que as imagens
criadas no vídeo ampliam o sentido do texto escrito (letra da música de mesmo
título), oferecendo-lhe novas molduras formal e semântica. Nesse caso, a
releitura do texto escrito é aperfeiçoada tanto pelas imagens como pelo movimento.
Esse enriquecimento de forma e sentido foi possibilitado pelas características
inerentes ao formato escolhido para o cibertexto, já que o vídeo concretiza o
movimento, fazendo uso de uma base cronotópica, porque associa espaço e tempo:
“[...] a transformação temporal mais fundamental que irá se operar na passagem
do cinema ao vídeo encontra-se no movimento real, mudança, alteração,
deslocamento de formas, de cores, de intensidade luminosa inscritos na
morfogênese mesma da imagem videográfica” (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 77).
O
caráter cinético do texto excede a mera sugestão da literatura tradicional e dá
vida aos versos. A palavra fugidia, que só pode ser apreendida quando
registrada, em forma de escrita ou áudio, não está mais associada ao plano
simbólico. A palavra, no videopoema em análise, é personagem: “O texto se
expande, contrai-se, dá voltas. As palavras pulsam, esticam-se e encolhem,
[...] aproximando-se de uma escritura ergódica, aquela que demanda esforços
não-triviais de produção e configurações alternativas das próprias mídias
utilizadas” (BEIGUELMAN, 2003, p. 39-40). Por fim, importa destacar esta
afirmação de Lars Elleström: “[...] uma mídia representa de novo, mas de forma
diferente, algumas características que já foram representadas por outro tipo de
mídia” (ELLESTRÖM, 2017, p. 204), para demonstrar que o aperfeiçoamento
resultante da adaptação é uma das metas da transmidiação.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, A. Sou volúvel. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs>. Acesso em: 30 set. 2016.
BARRET, C. Arte cinética. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000, p. 184-195.
BEIGUELMAN, G. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003.
BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CAMPOS, H.; CAMPOS, A. de; PIGNATARI, D. Teoria da poesia concreta. São Paulo:Ateliê, 2014.
DAVINI, S. O jogo da palavra. Brasília: UnB, 1998.
DOANE, M. A. A voz no cinema: a articulação entre corpo e espaço. In: XAVIER, I. (Org). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 457-475.
ELA. Direção de Spike Jonze. EUA: Annapurna Pictures; Sony Pictures, 2013. 1 DVD (126 min); son.
ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Porto:
EDIPUCRS, 2017.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2006.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
_____. Tipo/icono/grafia poética em cartazes de cinema. Curitiba: Appris, 2018.
MACHADO, A. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2003.
PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
<https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs>. Acesso em: 30 set. 2016.
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MACHADO, A. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2003.
PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
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Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso
de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes).
E-mail: veronica.kobs@fae.edu
Este
artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em
Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da
Profa. Dra. Patrícia Cardoso.
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