SUA INCELENÇA, RICARDO III:
SHAKESPEARE
EM DIÁLOGO COM O IMAGINÁRIO CULTURAL NORDESTINO[i]
Anna Stegh Camati (UNIANDRADE) ⃰
Liana de Camargo Leão (UFPR) ⃰
O grupo de teatro potiguar[1] Clowns
de Shakepeare, com sede em Natal, Rio Grande do Norte, tem trabalhado de forma
colaborativa desde 1993. O nome da trupe foi inspirado no poema “Poética”, de
Manuel Bandeira, um manifesto da poesia modernista brasileira, no qual o “eu”
lírico confessa seu anseio pela liberdade de expressão exercida pelos clowns shakespearianos. Esse desejo de
romper com formas acadêmicas tradicionais torna-se a bandeira do grupo que decide
eleger o lirismo clownesco como elemento principal de suas montagens.
Sonho de uma noite de verão (1993), Noite de Reis (1994), A megera do nada (1996 – título proposto
para A megera domada) e Muito barulho por quase nada (2003 –
novo título para Muito barulho por nada)
fazem parte do repertório de apresentações do grupo Clowns. Em 2010, uma
releitura intercultural da peça Ricardo
III (1592-1593), rebatizada Sua Incelença, Ricardo III[2], foi
realizada como um projeto de risco, visto que as peças históricas têm a
reputação de serem pouco palatáveis para plateias populares no Brasil. No
entanto, essa produção, dirigida por Gabriel Villela, encenador conhecido e
premiado em âmbito nacional e internacional, foi muito bem sucedida,
proporcionando ao grupo reconhecimento por parte do público e da crítica.
Com a crescente valorização das linguagens artísticas populares, o grupo
Clowns de Shakespeare privilegia a estética de cena híbrida que combina e funde
o
lirismo da poesia dramática shakespeariana com música e dança. A música já é anunciada no título do espetáculo: o vocábulo “incelença”
encerra um trocadilho que o aproxima da tradição shakespeariana: além de remeter
aos tradicionais cantos fúnebres do sertão nordestino, também inclui o sentido
de Sua Excelência, título honorífico utilizado desde os tempos do Brasil
Império e até hoje empregado em nosso país para referir-se a autoridades,
generais e políticos do alto escalão.
O espetáculo é levado à cena em um picadeiro
de circo estilizado, montado em lugares públicos, com três carroças ciganas, utilizadas
como espaços de representação. Ao eleger uma arena circense, que permite a
introdução de elementos farcescos e grotescos no espetáculo – já configurados,
de uma maneira mais discreta, no texto de Shakespeare – o grupo Clowns consegue
estabelecer a atmosfera e o tom adequados para ambientar o “circo de horrores”
engendrado por Ricardo. O mote shakespeariano "O mundo todo é um palco" é transformado em “O mundo todo é um grande
picadeiro” (Figura 1).
¹O adjetivo
potiguar remete a pessoas que nasceram ou vivem no estado do Rio Grande do
Norte. A denominação remonta ao nome de uma tribo tupi que habitava regiões
litorâneas do Nordeste.
² A versão
completa e videoclips do espetáculo Sua
Incelença, Ricardo III estão disponíveis no acervo digital Global Shakespeares
http://globalshakespeares.mit.edu/ricardo-3-villela-gabriel-2011/
Figura 1 – O
picadeiro de circo estilizado montado na frente da Igreja da Ordem em Curitiba.
Fonte: Acervo das autoras – Estreia nacional do
espetáculo no 20º Festival de Curitiba
Entende-se por farsa uma forma de
comédia com a apresentação de situações que pendem para um cômico “grotesco e
bufão, um riso grosseiro e um estilo pouco refinado” (PAVIS 1999: p. 164).
Apesar de não ter escrito farsas, Shakespeare escreveu comédias que podem ser
encenadas de modo farcesco, dentre elas A
comédia dos erros (1594) e A megera
domada (1596). Nas peças históricas, o farcesco se manifesta na criação da
figura de Falstaff, um personagem glutão, fanfarrão e cheio de vícios e, em
menor escala na caracterização do personagem-título de Ricardo III, apontada por diversos críticos como derivada do Vício medieval ³.
Acreditamos ser provável que a ênfase no farcesco na composição do Ricardo
brasileiro se originou a partir desse tipo de comentários da crítica
shakesperiana.
³Bernard Shaw (1906) e outros críticos, como A. P. Rossiter (1961) e Bernard Spivack (1958), apontaram que a peça histórica de Shakespeare se aproxima da comédia farcesca, em virtude do caráter caricato de Ricardo, derivado do Vício medieval. Shaw comparou Ricardo com Punch, um fantoche do tradicional teatro popular de marionetes "Punch e Judy” que diverte a plateia, mas é incapaz de atingir a profundidade e o pathos exigidos de um protagonista trágico (SHAW, 2013, p. 130-131).
O grupo Clowns de Shakespeare objetiva desmistificar e
popularizar Shakespeare no espaço da rua, um locus privilegiado para reciclagens e negociações culturais.
Nesse sentido, para adequar seus espetáculo a plateias
que transitam em espaços públicos, a trupe potiguar trabalha com gêneros,
formas e estilos variados, como as gags e
as grotesquerias do circo e do circo-teatro; as máscaras e as técnicas
farcescas herdadas da commedia dell’arte;
a apropriação e a reinvenção cênica do cordel; a mímica e o teatro de bonecos; a
adaptação de técnicas experimentais mais sofisticadas herdadas de teatrólogos
como Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski, Augusto Boal e Eugenio Barba; a reconfiguração
de convenções cênicas elisabetanas, dentre elas o travestimento; e a
musicalização da cena que assume importantes funções expressivas e
narrativas na transposição cênica. Essas estratégias são
enriquecidas pela estética barroca de Villela que prima pelo excesso e o
contraste de cores encontrado nos inúmeros objetos de cena, nos adereços, nos
figurinos e nos cenários. Deste modo, Villela propõe um diálogo profícuo entre
os bordados e apliques do interior de Minas Gerais, estado onde nasceu; o couro
e os elementos do cangaço do sertão nordestino, região a que pertence o grupo
de atores; e a cultura pop dos óculos ray ban do mundo contemporâneo. É na
arena estilizada do circo que estes elementos díspares se encontram e festejam
a liberdade da criação teatral.
Neste ensaio, com
base em postulados teóricos contemporâneos, discutiremos o abrasileiramento de Ricardo III, visto ser Sua Incelença, Ricardo III uma apropriação
regional realizada pela trupe Clowns de Shakespeare, por meio da inserção na cena
de elementos do imaginário cultural do sertão nordestino, dentre eles o cangaço,
a literatura de cordel e as incelenças. Objetivamos, ainda, evidenciar que a
trupe utiliza unicamente o texto Ricardo
III, traduzido por Anna Amélia Carneiro de Mendonça, como base do roteiro
cênico. Apesar de algumas passagens terem sido substituídas por músicas do pop
rock inglês ou do cancioneiro popular nordestino, e outras traduzidas em versos
de cordel, aproximadamente 30% do texto de Shakespeare é mantido, com falas
encurtadas ou sincopadas. As 3.609 linhas da peça
histórica são reduzidas a cerca de 1.000 linhas, porém os principais
solilóquios de Ricardo são preservados quase na íntegra, como veremos mais
adiante. Em nossa análise da musicalização da cena, ilustraremos
como se dá a integração entre texto, música e mise en scène.
Referências
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Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
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Incelença, Ricardo III. 2011. Gravação em vídeo do espetáculo. Disponível
em: <http://globalshakespeares.mit.edu/ricardo-3-villela-gabriel-2011/>.
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[1] A versão completa desse artigo foi publicado na revista Scripta
Uniandrade, v. 16, n. 3, p. 230-251, 2018.
Disponível em: https://uniandrade.br/revistauniandrade/index.php/ScriptaUniandrade/article/view/1055/940
⃰ Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Professora do
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR.
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