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segunda-feira, 29 de abril de 2019


Ambiência e stimmung em “A queda da casa de Usher”

Profa. Dra. Greicy Pinto Bellin

UNIANDRADE

 

Exaustivamente lido e relido ao longo dos anos como um clássico do conto de terror, “A queda da casa de Usher” foi adaptado para o cinema sob o título de La Chute de la Maison Usher por Jean Epstein em 1928, e ilustrado pelo britânico Harry Clarke, artista de grande destaque no movimento Arts and Crafts. Tanto as adaptações quanto as interpretações do conto acabam por circunscrevê-lo em um simulacro de horror, mistério e morte, só para citar a fórmula, em certa medida um clichê, que permeia a leitura crítica de Poe. Tal leitura, ainda que involuntariamente, negligencia aspectos materiais do conto que são fundamentais para a compreensão da temática e para a construção do próprio efeito de horror tão comentado e analisado pelos críticos. Com base nessa ideia, o objetivo desse artigo é propor uma leitura materialista de “A queda da casa de Usher” a partir dos conceitos de ambiência e stimmung desenvolvidos por Hans Ulrich Gumbrecht, a fim de dedicar uma maior atenção a esses elementos e revelar, sem exagero, o que se poderia chamar de faceta materialista de Edgar Allan Poe.

Em primeiro lugar, cabe uma definição dos conceitos que serão utilizados nessa análise, os quais encontram desenvolvimento em Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura, de Hans Ulrich Gumbrecht, publicado no Brasil no ano de 2014. Nele, o pesquisador alemão, conhecido por explorar as possibilidades de uma análise não-hermenêutica da literatura, as quais envolvem uma atenção maior dada à forma e à estrutura, propõe que os pesquisadores da literatura como um todo voltem seus olhos para o stimmung, isto é, para sensações específicas induzidas por aspectos materiais como a prosódia de um texto. A esse respeito, afirma Gumbrecht:

“Ler com a atenção voltada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem nossos corpos, enquanto realidade física - algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam necessariamente envolvidas. De outro modo, seria impensável que a declamação de um texto lírico, ou a leitura em voz alta de uma obra em prosa, com ênfase na componente rítmica, alcançasse e afetasse mesmo aqueles leitores ou ouvintes que não compreendem a língua das obras em questão. De fato, existe uma afinidade especial entre a performance e o Stimmung.  (GUMBRECHT, 2014, p. 14).               

           A proposta de Gumbrecht está relacionada a um questionamento do foco exclusivo no modelo de leitura que prioriza a interpretação nos textos literários, questionamento esse que, aliás, movimenta o campo não-hermenêutico como um todo e desestabiliza a ideia segundo a qual o texto literário seria, exclusivamente, produto de fatores sociais e culturais. Não se trata, todavia, de excluir tais fatores da análise literária, e sim de procurar outros enfoques e elementos que percebam o texto como produto um artístico, independente das condições que lhe deram origem. Nesse sentido, a ambiência, que corresponde, nas palavras de Gumbrecht, a “alguma coisa objetiva que está em volta das pessoas e sobre elas exerce uma influência física” (GUMBRECHT, 2014, p.12), também deve ser considerada, tendo em vista, até mesmo, a importância da caracterização do espaço na literatura. Tal ambiência é perceptível em “A queda da casa de Usher”, pois tanto a arquitetura da mansão em decadência quanto a atmosfera do dia outonal e sombrio em que o narrador chega ao solar são as responsáveis pela criação das sensações de horror nesse mesmo narrador, as quais passam a afetar o próprio leitor ao longo de toda a narrativa:

Durante todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando, sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher. Não sei como foi, mas ao primeiro olhar sobre o edifício invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável, digo insuportável porque o sentimento não era aliviado por qualquer dessas semi-agradáveis, porque poéticas, sensações com que a mente recebe comumente até mesmo as mais cruéis imagens naturais de desolação e terror. (POE, 2001, p. 244).
 
             É importante ressaltar que a sensação de melancolia e a “angústia insuportável” são causadas pelo “primeiro olhar sobre o edifício”, o que remete ao impacto de um componente arquitetônico sobre o espírito do narrador, impacto esse que será reforçado pela visão efetiva da casa de Usher:

Desembaraçando o espírito do que devia ter sido um sonho, examinei mais estreitamente o aspecto real do edifício. Sua feição dominante parecia ser a duma excessiva antiguidade. Fora grande o desbotamento produzido pelos séculos. Cogumelos miúdos se espalhavam por todo o exterior, pendendo das goteiras do telhado como uma fina rede emaranhada. Tudo isso, porém, estava fora de qualquer deterioração incomum. Nenhuma parte da alvenaria havia caído e parecia haver uma violenta incompatibilidade entre sua perfeita consistência de partes e o estado particular das pedras esfarinhadas. Isto me lembrava bastante a especiosa integridade desses velhos madeiramentos que durante muitos anos apodreceram em alguma adega abandonada, sem serem perturbados pelo hálito do vento exterior. Além deste índice de extensa decadência, porém, dava o edifício poucos indícios de fragilidade. Talvez o olhar dum observador minucioso descobrisse uma fenda mal perceptível que, estendendo-se do teto da fachada, ia descendo em ziguezague pela parede, até perder-se nas soturnas águas do lago. (POE, 2001, p. 246).
 
             Logo mais descobriremos que a decadência do edifício encontra-se em estreita e bizarra simbiose com a decadência da própria família, a qual apresenta um componente biológico expresso na existência de uma condição psiquiátrica peculiar, passada de geração em geração, e nas insinuações de consanguinidade e incesto, as quais, aliás, eram características das famílias aristocráticas europeias. A relação entre a arquitetura da mansão e a evocação de sensações peculiares no narrador pode ser novamente reforçada na passagem a seguir:

Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a transformar-se em qualquer coisa de sublime. Que era – parei para pensar – que era o que tanto me perturbava à contemplação do Solar de Usher? Era um mistério inteiramente insolúvel; e eu não podia apreender as ideias sombrias que se acumulavam em mim ao meditar nisso. Fui forçado a recair na conclusão insatisfatória de que, se há, sem dúvida, combinações de objetos muito naturais que têm o poder de assim influenciar-nos, a análise desse poder, contudo, permanece entre as considerações além da nossa argúcia. (POE, 2001, p. 244).
 
              O narrador atribui seu estado de espírito a “combinações de objetos muito naturais que têm o poder de assim influenciar-nos”, o que será reforçado paulatinamente na narrativa a partir da constatação do estado de espírito de Roderick Usher, expresso na descrição do físico decadente e assustador que serviria de base para a criação, anos depois, do herói Des Esseintes de Às avessas, de J. K. Huysmans:

Uma compleição cadavérica; um olhar amplo, líquido e luminoso, além de qualquer comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de uma curva extraordinariamente bela; nariz de delicado modelo hebraico, mas com uma amplidão de narinas incomum em tais formas; um queixo finamente modelado, denunciando, na sua falta de proeminência, a falta de energia moral; cabelos de mais tenuidade e maciez que fios de aranha; tais feições e um desenvolvimento frontal excessivo, acima das regiões das têmporas, compunham uma fisionomia que dificilmente se olvidava. E agora, pelo simples exagero dos característicos dominantes desses traços e da dança que não reconheci logo com quem falava. A lividez agora cadavérica da pele e o brilho sobrenatural do olhar, principalmente, me deixaram atônito e mesmo horrorizado. Também o cabelo sedoso crescera à vontade, sem limites; e como ele, na sua tessitura de aranhol, mais flutuava do que caía em torno da face, eu não podia, mesmo com esforço, ligar sua aparência estranha com a simples ideia de humanidade (POE, 2001, p. 247).

                 A descrição detalhada da aparência de Usher evoca a decadência e a fragilidade de toda uma estirpe, corroborando a atmosfera sobrenatural da narrativa, bem como o stimmung de desagregação evocado a partir da descrição da própria mansão, a qual, conforme descobriremos, mimetiza a personalidade de Usher e de sua irmã Madeline:

Impressionou-me logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência; e logo verifiquei que isso nascia de uma série de lutas fracas e fúteis para dominar uma perturbação habitual, uma excessiva agitação nervosa. Na verdade, eu me achava preparado para encontrar algo desta natureza, não só pela carta dele como por certas recordações de fatos infantis e por conclusões derivadas de sua conformação física e temperamento especiais. Seu modo de agir era alternadamente vivo e indolente. Sua voz variava, rapidamente, de uma indecisão trêmula (quando a energia animal parecia inteiramente ausente) àquela espécie de concisão enérgica, àquela abrupta, pesada, pausada e cavernosa enunciação, àquela pronúncia carregada, equilibrada e de modulação guturalmente perfeita que se pode observar no ébrio contumaz ou no irremediável fumador de ópio durante os períodos de sua mais intensa excitação. (POE, 2001, p. 248).
 
            É importante destacar, para a análise ora desenvolvida, a variação do tom de voz observada pelo narrador, outro componente material que remete à fragilidade e até mesmo, à histeria de Usher, atribuída, também, ao uso de ópio. O narrador acaba por descobrir que Lady Madeline padece do mesmo mal que acomete o irmão, sendo que sua presença física é causadora de sensações opressoras e desconfortáveis: 

Enquanto ele falava, Lady Madeline (pois era assim chamada) passou lentamente para uma parte recuada do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Olhei-a com extremo espanto não destituído de medo. E contudo achava impossível dar-me conta de tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia, enquanto meus olhos acompanhavam seus passos que se afastavam. Quando afinal se fechou sobre ela uma porta, meu olhar buscou (...) a fisionomia do irmão. Mas ele havia mergulhado a face nas mãos e apenas pude perceber que uma palidez bem maior do que a habitual se havia espalhado sobre os dedos emagrecidos, através dos quais se filtravam lágrimas apaixonadas. (POE, 2001, p. 248-249).

Com o desenrolar da narrativa, o narrador vem a descobrir que aspectos materiais e arquitetônicos conformam crenças sobrenaturais alimentadas por Roderick Usher, o que reforça a relevância da caracterização do espaço como criadora e propulsora da extrema sensitividade e sensibilidade do personagem:

Esta crença (...) estava ligada (...) às cinzentas pedras do lar de seus antepassados. As condições da sensitividade tinham sido aqui, imaginava ele, realizadas pelo método de colocação dessas pedras na ordem de seu arranjo, bem como na dos muitos fungos que as revestiam e das árvores mortas que se erguiam em redor, mas, acima de tudo, na longa e imperturbada duração deste arranjo e em sua reduplicação nas águas dormentes do lago. A prova (...) da sensitividade – haveria de ver-se, dizia ele (...) na gradual ainda que incerta condensação duma atmosfera que lhes era própria, em torno das águas e dos muros. O resultado era discernível, acrescentava ele, naquela influência silenciosa, embora importuna e terrível, que durante séculos tinha moldado os destinos de sua família, e fizera dele, tal como agora o via, o que ele era. (POE, 2001, p. 251).

            Alia-se a isso o que o narrador chama de “estado mórbido do nervo acústico”, condição peculiar experimentada por Usher e que o torna ainda mais suscetível às crenças no sobrenatural, em especial aquelas relacionadas a devaneios artísticos movidos a música, pintura e leitura de obras de filosofia, ciência e misticismo:

Foram talvez os estreitos limites a que ele assim se confinou na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico das suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus impromptus não podia ser assim explicada. Eles devem ter sido – e eram, nas notas bem como nas palavras de suas estranhas fantasias (pois ele frequentemente se acompanhava com improvisações verbais ritmadas) – o resultado daquela intensa concentração e recolhimento mental a que eu antes aludi, observados apenas em momento especiais da mais alta excitação artificial. (POE, 2001, p. 250).
 
            A audição enquanto componente material adquire ainda maior relevância quando Usher, após enterrar viva sua irmã Madeline, começa a ouvir barulhos sinistros emanados do local do sepultamento, os quais consistem em claros indícios de que ela havia sido enterrada ainda com vida. A intensidade dessas sensações atinge seu auge no trecho a seguir, no qual a ambiência tempestuosa funciona como complemento da angústia experimentada tanto pelo narrador quanto pelo próprio Usher: 

A fúria impetuosa da rajada que entrava quase nos elevou do solo. Era, na verdade, uma noite tempestuosa, embora asperamente bela, uma noite estranhamente singular, no seu terror e na sua beleza. Um turbilhão, aparentemente, desencadeara sua força na nossa vizinhança, pois havia frequentes e violentas alterações na direção do vento e a densidade excessiva das nuvens (que pendiam tão baixo como a pesar sobre os torreões da casa) não nos impedia de perceber a velocidade natural com que elas se precipitavam, de todos os pontos, umas contra as outras, sem se dissiparem na distância (...) as superfícies inferiores das vastas massas de vapor agitado, bem como todos os objetos terrestres imediatamente em torno de nós, estavam cintilando à luz sobrenatural de uma exalação gasosa, fracamente luminosa e distintamente visível, que pendia em torno da mansão, amortalhando-a. (POE, 2001, p. 254).


A audição é aspecto fundamental para a articulação do terror experimentado por ambos os personagens, especialmente a partir do momento em que o narrador inicia a leitura de Mad Trist, de Sir Launcelot Canning. Observam-se coincidências entre os tinidos do escudo de Etelredo, o herói que derrota o dragão na narrativa de Canning, e ecos esparsos que anunciam a volta de Lady Madeline, o que vai progressivamente reforçando a ambiência de horror, mistério e morte que o retorno da morta-viva é capaz de causar:

- Não o ouves? Sim, ouço-o, e tenho-o ouvido. Longamente... longamente... muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido, contudo não ousava...Oh, coitado de mim, miserável, desgraçado que sou! Não ousava... não ousava falar! Nós a pusemos viva na sepultura! Não disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixão. Ouvi-o faz muitos minutos, muitos dias, e contudo não ousei... não ousei falar! E agora, esta noite... Etelredo... ah, ah, ah!... o arrombamento da porta do eremita, e o estertor de agonia do dragão, e o retinir do escudo! Diga, antes, o abrir-se do caixão, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisão, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! Para onde fugirei? Não estará ela aqui, dentro em pouco? Não estará correndo a censurar-me por minha pressa? Não ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Não distingo aquele pesado e horrível bater de seu coração? Louco! (POE, 2001, p. 256-257).

Todas as sensações experimentadas por Usher estruturam-se em torno do exercício de uma audição aguda e extremamente ativa, a partir da qual ele identifica todos os movimentos envolvidos no retorno da irmã, o que lhe causa grande horror, pois ele fora o responsável pelo seu enterro prematuro. O ápice do terror se observa com o desabamento da estrutura arquitetônica que havia provocado a insanidade e os tormentos sobrenaturais de Usher, corroborando a relação simbiótica entre espaço, ambiência, stimmung e loucura absoluta:
 
Enquanto eu a olhava, aquela fenda rapidamente se alargou... sobreveio uma violenta rajada do turbilhão... o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista... meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem... houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes... e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do “Solar de Usher”. (POE, 2001 p. 257).

O desmoronamento da mansão é, por si só, um espetáculo material, conduzindo à destruição irremediável do clã dos Usher. Não seria exagerado, dessa maneira, afirmar que o conto de Poe, para além das leituras que o percebem como representativo de uma literatura de horror, possui uma faceta materialista cuja exploração se revela fundamental para a compreensão dos mecanismos de produção do próprio sentimento de horror e da criação deste mesmo horror ao longo do processo de leitura. Com base nessa ideia, também não seria equivocado afirmar que “A queda da casa de Usher” proporciona a experiência estética que não apenas remeteria à experiência fin-de-siècle que seria explorada pelo movimento decadentista, mas também à maestria do próprio Poe enquanto artista de vanguarda.

 

Referências
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência e stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

HUYSMANS, J. K. Às avessas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
POE, Edgar Allan. Obra completa. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

quinta-feira, 18 de abril de 2019


VAZIOS EM TEORIAS DA RECEPÇÃO: CONCEITOS POUCO DETERMINADOS EM ISER E GUMBRECHT
 Edson Ribeiro da Silva
Uniandrade
Ao se sair da leitura das obras produzidas por teóricos da Escola de Constança, definidores de um grande referencial terminológico voltado a explicar como o leitor recebe a obra literária, fica a sensação de que se está sempre vários degraus abaixo daquele ponto aonde pesquisas sobre a recepção da literatura poderiam nos levar.
Hans Robert Jauss sofre com uma atenção demasiada ao contexto histórico em que a recepção se dá, mas passa à margem daquelas pesquisas que poderiam realocar suas ideias na experiência do leitor. No entanto, é em Wolfgang Iser e em Hans Ulrich Gumbrecht que a lacuna emite um eco mais dissonante. Em Iser, existe uma intenção de entregar ao leitor algo lacunar porque ele precisaria conectar certos aspectos de seu pensamento às pesquisas mais definitivas na área, se decidisse fazer uso delas. Em Gumbrecht, fica evidente uma tentativa de apropriação de Heidegger, que ele mascara sem enganar seu leitor: aquelas ideias são apenas a resultante de uma simplificação do filósofo.
O próprio Iser nos autoriza a abordar o problema. Pois seu O ato da leitura remete a um conceito que extrapola a ideia de recepção, tal como formulada pelos teóricos da Estética da Recepção. Afinal, a separação entre os conceitos de recepção e de leitura é sintomática dos objetivos dessa escola: a atenção recai sobre uma estética, mas em um sentido que não é o de Kant nem o da tradição filosófica. Estética, no sentido kantiano, é a recepção empírica. Apreender o real, pelos sentidos, inclui a obra de arte. A tradição de obras sobre estética era fazer delas a tentativa de se definir o belo e de se chegar a uma reflexão que, via de regra, terminava por emitir juízos de valor sobre a natureza da arte. Uma estética, para tais teóricos, seria a definição de uma hermenêutica da leitura, evidente em Jauss, desnecessária em Gumbrecht, e que chamava a atenção de Iser no sentido fazer com que o teórico percorresse as teorias acerca da constituição do sentido através da leitura. Por isso, a palavra “leitura” no título de sua obra paradigmática sobre uma hermenêutica da recepção da obra literária. Iser aborda teorias díspares, como a psicanálise freudiana, os atos de fala e a semiótica de linha peirceana. Realmente, fica difícil, para o teórico, estabelecer um fio condutor, que possa evidenciar o processo de recepção da obra literária. De cada disciplina de pesquisa, fica um resquício, mas que não forma uma unidade heurística: a passagem do sentido inconsciente e da leitura como “retorno do recalcado” para a definição da obra literária como ato ilocucionário deixa um espaço imenso entre as abordagens. O ato de ler sai do domínio do inconsciente, do sentido que não pode ser compartilhado, para o das convenções que estabelecem que, para serem bem sucedidos, os atos de fala precisam corresponder às expectativas da situação convencional em que são produzidos. Assim, a obra literária fica sendo ação. Ao abordar a semiótica, Iser fala da obra de arte literária como sendo ícone. Extrai da leitura a sua condição peircena de legissigno, algo regido por convenções, e passa a ver nela algo que se realiza na sua própria constituição. Iser enfrenta, em suas abordagens seguintes, a tarefa de fazer com que esse signo que se autossignifica possa ser completado apenas através do processo de recepção. Sua demonstração, a partir de Fielding, é frustrante: o leitor que esperava uma fenomenologia dessa autossuficiência do texto literário encontra um exemplo bastante raso de como ela, na verdade, depende da recepção, do ato da leitura, para se completar. O exemplo aparece demasiadamente simplificado: o leitor precisa perceber elementos como a personalidade de uma personagem, que é construída ao longo de um romance, sem que o autor explicite no texto as conclusões a que, sem dúvida, o leitor precisa chegar para que sua leitura não seja equivocada. Se Iser saltasse da semiótica perciana para a greimasiana, veria que sua ideia é simplista: refere-se àquelas habilidades que se contentam com a compreensão do texto, mas não descem aos níveis mais profundos, razão de ser da obra de arte.
Seria mais proveitoso, para o teórico da recepção, se ele atentasse para os modelos de leitura elaborados pelas ciências que se dedicam a esse fenômeno, sem a definição da literatura como limite para que ele ocorra. Proveitoso, só que demasiadamente complexo. Demandaria a revisão de conceitos básicos da Estética da Recepção, como o de “leitor-ideal”.
As teorias cognitivistas da leitura têm obtido, de modo inegável, resultados mais bem delineados a respeito do que é o ato de ler. Ler qualquer coisa, inclusive obra literária. O processo fica mais claro. Os conceitos são obtidos de modo empírico: tanto a psicolinguística quanto a neurociência são instrumentais para que se saiba o que ocorre durante a leitura. Uma estética da recepção da obra literária, como área especializada, interessa-se pelos resultados de um processo de apreensão do texto reconhecido de antemão como literatura. Mas, evidentemente, essa particularidade não poderia ter fugido daqueles conhecimentos já definidos para o texto em geral, a leitura como ato cognitivo.
Um dos exemplos notórios de resultado das teorias psicolinguísticas está na definição dos tipos de leitura em descendente e ascendente. Tomemos Angela Kleiman (1997) como guia. O tipo descendente, ou top-down, é aquele em que o leitor parte dos aspectos gerais para os particulares do texto. Ou seja, ele o compreende, em princípio, como gênero textual, estabelece suas expectativas de leitura a partir das convenções estabelecidas no nível genérico, a partir do que a atenção recai sobre as particularidades daquele texto como unidade particular. As expectativas vão sendo confirmadas ou não ao longo da atenção para elementos exclusivos do texto. O tipo ascendente, ou bottom-up, é aquele em que o leitor precisa construir o sentido do texto a partir das particularidades para, apenas ao final, chegar aos aspectos gerais. Refere-se, sem dúvida, ao leitor menos familiarizado com a diversidade de gêneros textuais e com as convenções que os cristalizam. O leitor sem proficiência precisa da informação parcelada, que vai formando um conjunto a ser sequenciado para chegar ao sentido mais geral do texto. O cognitivismo sabe que a memória processa o texto por fatias e que apenas algumas permanecem ativas até o final da leitura.  
O leitor-ideal de Iser é aquele que faz uma leitura descendente. Basta pensar no modo como o teórico, em O ato da leitura, define dois planos para a leitura da obra literária. O primeiro plano corresponde ao diálogo do leitor com a tradição literária, sobretudo as características de gênero, contidas naquilo que chama de “repertório” (ISER, 1996, p. 101s), ou seja, o conhecimento literário acumulado. Nele estão as expectativas de leitura. O segundo plano corresponde ao reconhecimento das especificidades de cada obra durante a leitura, aqueles aspectos pelos quais ela rompe com essa tradição e elabora novas possibilidades de configuração do texto.
Trata-se, sem dúvida, de um tipo que definiria o leitor-ideal, profícuo, da literatura. Falta a Iser relacionar esse tipo aos modos como a obra literária tem como preenchidos seus lugares-vazios, suas indeterminações. Uma leitura construída a partir dessas indeterminações, como a que ele mostra para Tom Jones, seria formulada a partir do tipo ascendente: o leitor ficaria atento a elementos que iriam se acumulando até formar uma unidade de sentido em momento posterior. Haveria, sem dúvida, riscos de que a leitura falhasse, dados os limites da memória. Essa incompletude do texto faz com que ela dependa do leitor para se atualizar.  
O percurso de leitura estabelecido por Jauss também se constitui de um momento em que se atenta para o geral, como horizonte de expectativa, outro em que se realiza a leitura propriamente dita, como apreensão, e outro, em que se confere o resultado à expectativa. Jauss atenta em demasia para o contexto histórico da recepção, e ainda pouco para aquilo que Iser chama de repertório e os cognitivistas de “conhecimento prévio do leitor” (KLEIMAN, 1997, p. 13s) .
Afinal, a atenção para a leitura como processo ascendente é que leva Iser a buscar suportes para a constituição do sentido na psicanálise, nos atos de fala ou na semiótica. Quais seriam os elementos capazes de constituir o sentido global a partir de unidades, de fatias de compreensão? Seriam sentidos inconscientes, a imitação dos discursos usados no cotidiano ou os ícones que são imagens do real? Certamente, todos os elementos se aglutinam, mas mostrar o modo como isso se dá demandaria um fôlego que a Estética da Recepção tem procurado preservar. Por isso, as lacunas, a sensação de que o aspecto essencial da recepção, ou da leitura da obra literária, que atenta para os elementos que caracterizam o processo, não está suficientemente delineado.
E seriam necessários conceitos das teorias cognitivistas, como aqueles que explicitam como os sistemas de memória trabalham durante a leitura, conforme demonstrado por Smith (1989, p.112s). Afinal, é nesses sistemas que está a explicação para o preenchimento dos lugares-vazios. Ou seja: como a minha memória de trabalho, enquanto leio, preenche as indeterminações do texto com informações da minha memória como conhecimento, inclusive literário? Por que o leitor saberia que a personagem de Fielding não é o que parece sem que o autor o diga e poderia, em momento posterior, checar o sucesso de sua apreensão do texto? Os nossos esquemas que a memória retém do real também se aplicam à nossa compreensão usada naquele nível A de leitura. Uma teoria sobre a recepção teria que especificá-lo.
Quanto a Gumbrecht, sua noção de “presença” (2010) parte de Heidegger. O autor faz questão de não se definir como heideggeriano em Produção de presença, talvez até como ironia. Trata-se de um modo de parecer não assimilar demais uma ideia cara a Heidegger, em seu A caminho da linguagem. A diferença entre o filósofo e o teórico é que Heidegger estava preocupado com questões metafísicas e Gumbrecht, com a recepção do texto literário. A ideia custou a Heidegger a pecha de uma visão otimista da linguagem literária, sobretudo da poesia, que a sublimava, mas se chocava com as ideias da segunda metade do século XX, que faziam dela instrumento de trocas sociais coletivas, sem a possibilidade de gerar sentidos individualizados.
Para Heidegger, o ser é presença. Dasein, ou ser-aí, ou ainda ser-presente. Não pode ser mais que isso: manifestar-se. A sua adoção do conceito de Kant do ser como não sendo um predicado real, mas tão-somente a manifestação do ente, como presença a ser apreendida pelos sentidos e compreendida pela razão, leva Heigegger a fazer da presentificação a única possibilidade de um ser poder ser identificado. E, no entanto, Heidegger acredita na possibilidade de construção de sentido para um ser, no caso, humano, como pessoa única. A percepção desse sentido, construído no tempo, não se dá na forma de apreensão lógica. Retomando Kant, Heidegger considera a possibilidade de uma “unidade sintética da apercepção” (HEIDEGGER, 1996, p. 236), que define como o ápice da compreensão. Por ser sintética, mão pode ser analítica. Não há como se transformar em explicitação lógica, através da linguagem, essa apercepção sintética. Remete ao ilogismo da experiência mística. Heidegger se depara com o fracasso da linguagem: essa apercepção, que ele define como “acontecimento-apropriação” (HEIDEGGER, 1996, p. 180), não pode ser formulada através da linguagem lógica. O ser-autêntico é aquele que se libertou do nivelamento, do cuidado com o cotidiano, é livre. Mas a linguagem é convencional, sobretudo a da lógica. Em A caminho da linguagem, Heidegger faz da linguagem literária, sobretudo poética, a possibilidade de libertação em relação às convenções e ao nivelamento da linguagem ordinária. A poesia possibilitaria aquilo que a lógica jamais conseguiria: a expressão do ser, como acontecimento-apropriação, ou unidade sintética de apercepção. O ser está ali, e não pode ser reduzido a explicações lógicas.
Gumbrecht formula sua noção de presença como materialidade da obra. Modelo fenomenológico, herdado de Kant, desenvolvido por Heidegger: o ser se manifesta como posição, ou seja, manifestação para os sentidos. Insere-se no espaço e no tempo. A materialidade da obra, em Gumbrecht, retoma a presentificação do ser heideggeriano. É fácil perceber que o teórico da recepção está pensando no que o filósofo disse da linguagem literária e no que Kant disse sobre a apreensão sintética. Resultado: o conceito de “epifania” como modelo de recepção. O acontecimento-apropriação, de Heidegger, assume aqui contornos tomistas. Mas Heidegger, assim como Kant, via nessa apropriação sintética uma compreensão efetiva do ser. Em Gumbrecht, essa experiência permanece no nível da percepção, da recepção como experiência sensível mas não ainda transcendental. O teórico iria contra a tradição pós-moderna e passaria a acreditar em unidade do ser, em identidade, termos que soam extemporâneos. Se o teórico insiste em ver na falência das teorias sobre a identidade um mau aspecto da pós-modernidade, essa retomada da metafísica existencialista, como possibilidade de um ser se constituir como indivíduo, é feita por ele de um modo um tanto velado. Talvez por isso a tentativa de se desvencilhar de Heidegger. Presença e epifania são, respectivamente, modos de constituição da obra de arte e de recepção da mesma. Gumbrecht fica na sensação provocada pela obra. Para Heidegger, haveria a possibilidade de se aprendê-la, em sua totalidade, sem palavras que a explicassem. Mas a compreensão dela está lá. Em Gumbrecht, a epifania é uma descida de um degrau: trata-se de fruição, no sentido de prazer, ou de compreensão da obra como tal? Estamos no nível do gosto ou do valor?
Na verdade, Gumbrecht está mais próximo de Nietzsche, de sua crítica ao apolíneo na literatura, que de Heidegger. O acontecimento-apropriação é o ápice das possibilidades de conhecimento. A epifania é uma experiência mais próxima do dionisíaco: é sensação. Se a obra literária pode ser recebida como sensação, é uma concessão que se faz ao leitor. Ao mesmo tempo, é uma desistência de se explicitarem exatamente aqueles processos que podem rastrear a experiência estética com o texto literário. Heidegger acreditava na possibilidade de a linguagem literária manifestar-se como acontecimento-apropriação: ela se presentificaria, mesmo que não pudesse ser submetida a procedimentos lógicos, convencionados. Para o filósofo, a manifestação do ser importava mais que a recepção dele. A literatura daria as condições para isso. Falta a Gumbrecht um modelo recepcional que passe da constituição da obra literária à sua recepção como presença e epifania. Há modelos de recepção epifânica?
A epifania é algo que sublima a arte e a retira do conceito mais geral de texto. É como se a literatura já não precisasse do fatiamento, da relação entre estrutura aparente e estrutura profunda, termos aplicados por Frank Smith e por Angela Kleiman. Sobretudo, o conceito de leitura metacognitiva é essencial para que se defina a recepção da obra literária. Existe a leitura cognitiva, aquela que busca somente o sentido. Seria sobretudo a leitura da linguagem transparente, não-artística. A leitura metacognitiva checa a todo instante seu próprio desempenho porque trabalha com a linguagem opaca. E explica ao leitor as causas do êxito ou do fracasso. Ler pela leitura demanda a compreensão daquelas particularidades do texto que o constituem, sua opacidade. É o segundo plano, de Iser, tão atrelado ao leitor-ideal, aquele que lê para perceber na obra suas especificidades, sua relação com o patrimônio literário, suas inovações. A abordagem dessa metacognição ainda é uma demanda para os teóricos da recepção. Quem tem atentado para ela é Paul Ricoeur, filósofo da literatura, a partir de suas mímesis. Há sintomas dela em Luiz Costa Lima.
Dessa forma, a sensação de que teóricos da recepção não compõem um modelo heurístico se intensifica, pois fica evidente que a complexidade da relação entre a linguagem da literatura e um tipo de recepção que a especifique ainda não foi discutida. O cognitivismo seria, sem dúvida, um lugar de onde se parte, pois os estudos sobre a leitura incluem a do texto literário. No entanto, a Estética da Recepção parece preferir partir do conceito de literário, sem atentar devidamente para o que se chama de texto. Por isso, a atenção para teorias da leitura que servem como instrumental para outros objetivos que não o texto ou a recepção em si.  
REFERÊNCIAS
GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2010.
HEIDEGGER, M. A tese de Kant sobre o ser. In: Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
_______. Sobre a essência da verdade. In: Conferência e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Volume 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.
KLEIMAN, A. Texto & leitor: aspectos cognitivos da leitura. 9ª ed., Campinas, SP: Pontes, 1997.
SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. Tradução de Daise Batista. Porto Alegre: Artmed, 1989.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Shakespeare com sotaque brasileiro
 
Profª Célia Arns de Miranda
 

            Se considerarmos a frequência de encenações das peças shakespearianas que acontecem no mundo inteiro, o grande número de filmes, pinturas, óperas, balés, composições musicais e produções literárias que estabelecem uma relação intertextual com a sua obra, não restam dúvidas de que Shakespeare é um poeta que continua a dialogar com a atualidade. Dentro desse contexto, dá-se uma ênfase especial a um dos maiores escritores da literatura brasileira, Machado de Assis, que incorporou em sua ficção, com um destaque a Dom Casmurro, elementos da dramaturgia shakespeariana, além de ele próprio ter sido espectador e crítico teatral das representações empreendidas pelo famoso ator italiano Ernesto Rossi, no Rio de Janeiro, em 1871. Esse grande intérprete foi um dos responsáveis, juntamente com o ator brasileiro João Caetano, por disseminar Shakespeare nos palcos nacionais, ao menos nas suas primeiras incursões. Entretanto, vale reiterar que Caetano já havia representado O mercador de Veneza, Macbeth, Hamlet e Otelo décadas antes da chegada do ator italiano no Brasil, ou seja, no período entre 1838 e 1860. Em que pese Barbara Heliodora (2008) ressaltar que as encenações por Caetano foram, em grande parte, realizadas a partir das traduções francesas que são consideradas mutiladoras e disciplinadas ao gosto do neoclassicismo francês, é necessário enfatizar o grande mérito de Caetano como o primeiro ator de Shakespeare no Brasil.

            Como é que Shakespeare está sendo representado no Brasil nos séculos XX e XXI? Centenas de livros, artigos, traduções, resenhas, teses de doutoramento têm sido publicados anualmente sobre esse dramaturgo, sobre o contexto político, ideológico, cultural da Inglaterra elisabetana, entretanto, são as adaptações de sua obra para as diversas mídias como, por exemplo, o cinema, teatro e televisão, que têm despertado o maior interesse dos autores, diretores, intérpretes, público e críticos de forma geral. A permanência de um clássico reside na sua capacidade de influenciar e ser influenciado. No mundo dos estudos literários, a apropriação textual é um processo necessário e inevitável: uma obra literária estará exercendo influência, se as pessoas não deixarem de manifestar uma reação diante dela, ou seja, se houver leitores que, novamente, se apropriem da obra do passado, ou autores // recriadores que desejem retomá-la, atualizá-la e/ou recontextualizá-la para o consumo contemporâneo. É por esse motivo que, apesar de haver centenas de produções teatrais que foram realizadas a partir das peças de Shakespeare, as potencialidades dos textos, que são infinitas, não se esgotam. Cada produção provê apenas um insight parcial e nenhuma produção pode realizar todas as potencialidades do texto.

            Dentro desse amplo contexto das adaptações, a convicção de que aquilo que um autor escreveu é uma forma sagrada, que deve ser preservada, continua a dificultar, muitas vezes, o trabalho teatral ainda hoje em dia. Sem dúvida nenhuma, essa postura torna-se ainda mais irredutível quando os textos são considerados canônicos, como no caso de Shakespeare, e as propostas de encenação das peças distanciam-se do consenso estabelecido pela tradição teatral. Sob essa perspectiva, Felipe Hirsch, diretor da Sutil Companhia de Teatro realizou em Curitiba no ano de 1997 uma versão moderna do Hamlet shakespeariano, intitulada Estou te escrevendo de um país distante. Tendo sido descrita por Augusto Ceressa (1998) como uma “violenta recriação de um clássico”, percebe-se, se colocarmos as duas peças, lado a lado, que tudo é, ao mesmo tempo, muito semelhante e muito diferente: é uma semelhança com diferença crítica. Tem-se a impressão de que é Shakespeare, que grande parte dos episódios está lá, que a crítica social se repete, que os personagens revelam a mesma motivação interna. Entretanto, na versão moderna, o enfoque é outro: a radicalização, o grotesco, o travestimento e a paródia evidenciam a quebra da ilusão, a linguagem choca, a concepção cênica exige que o público participe como um observador atento a toda a evolução da ação – é como se Hirsch colocasse uma lupa sobre o que é peculiar, ampliasse e intensificasse os matizes da peça shakespeariana.

            Dentre as numerosas encenações de Hamlet, não podemos deixar de dar um destaque especial ao espetáculo realizado pelo Teatro do Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno que, em 1948, estreou no Rio de Janeiro, um Hamlet brasileiro que teve o ator Sérgio Cardoso interpretando o protagonista da tragédia. Essa produção tornou-se um dos maiores acontecimentos do teatro brasileiro e transformou-se na revelação do desempenho excepcional de Sérgio Cardoso que, anos mais tarde, tornou-se também diretor de uma nova produção de Hamlet (1956) e da comédia Sonhos de uma noite de verão (1956). Ainda dentro do universo das retomadas do Hamlet shakespeariano, vale lembrar a montagem que foi realizada em Curitiba pelo encenador Marcelo Marchioro. Esse espetáculo, juntamente com a encenação de Sonho de uma noite de verão também realizada por ele, fazia parte do projeto cultural “Shakespeare no parque”. Essa adaptação cênica estreou no dia 20 de agosto de 1992, às vésperas do impeachment do Presidente Collor de Melo. É preciso reconhecer que a escolha feita por Marchioro para representar essa peça específica e naquele exato momento quando o país estava tomado pelas manifestações de rua do povo, foi muito apropriada. Sob esse prisma, Marchioro com a sua adaptação coloca em jogo duas historicidades: a da obra no seu próprio contexto e a do espectador nas circunstâncias em que assiste ao espetáculo (Pavis, 1999).

            Como as adaptações cênicas das tragédias, comédias e peças históricas escritas por Shakespeare multiplicam-se pelo nosso país, seria impossível apresentarmos um panorama aproximado da grande produção de espetáculos que acontecem no Brasil. Nessa semana, por exemplo, no dia 28 de maio, ocorreu a estreia em São Paulo da tragédia Hamlet, o “quase-herói” shakespeariano, pelo Grupo Clowns de Shakespeare, sob a direção de Marcio Aurélio. Essa estreia marca a data comemorativa dos 20 anos de trajetória do grupo. Esse grupo teatral também realizou em 2010 o espetáculo, Sua Incelença, Ricardo III, uma adaptação da tragédia shakespeariana Ricardo III. Dessa vez, sob a direção de Gabriel Villela, a encenação ganha as ruas das cidades por onde passa, agregando o público que é atraído pelo despojamento circense, músicas típicamente nordestinas (as incelenças) que são mescladas ao rock clássico inglês – esse teatro de rua faz uma referência direta ao teatro popular medieval e elisabetano na Inglaterra onde o povo de todas as classes sociais participava. Em 2006/2007, foi realizado o teatro musical Otelo da Mangueira pelo diretor carioca Daniel Herz, que é uma transposição do Otelo, o Mouro de Veneza de Shakespeare para o universo tradicional brasileiro das escolas de samba cujos desfiles atraem, todo ano, milhares de turistas do mundo inteiro. O texto do espetáculo, escrito por Gustavo Gasparani, transporta os principais personagens do enredo shakespeariano para uma disputa pela consagração do samba-enredo no morro da Mangueira no carnaval carioca de 1940, ano em que o samba foi alçado à categoria de ritmo nacional. O Otelo de Shakespeare também é transposto para o palco pelo Grupo Folias D’Arte em 2003. Nessa encenação o diretor, Marco A. Rodrigues, através da inserção das canções New York, New York (Frank Sinatra) e The End (The Doors), que desempenham uma função de enquadramento épico e de comentário crítico da ação, identifica o referente contemporâneo ao estabelecer o diálogo intermidiático entre a literatura, o cinema e as artes cênicas.

            Quando Anne Ubersfeld (2002), lança a pergunta, “como assegurar a permanência do texto clássico?”, afirma que o desmantelamento dos textos clássicos já é um fato incontestável e que a ênfase nas produções cênicas deve ser colocada no heterogêneo e na descontinuidade. Dentro desse pressuposto, sabe-se que se a visão tradicionalista tivesse predominado ao longo destes 450 anos, certamente, cada produção shakespeariana seria um transplante inanimado da página para o palco, e a originalidade e talento que a mente contemporânea traz para os conceitos tradicionais seria menor, senão inexistente.

 Publicado no Caderno G da Gazeta do Povo no dia 30 de maio de 1014.

quinta-feira, 4 de abril de 2019


COMO ESCREVER ROTEIROS?

MANDAMENTOS DE ROBERT MCKEE

 

Brunilda T. Reichmann, PhD[*]

 
Como escrever um roteiro é uma das várias ideias exploradas na adaptação de The Orchid Thief [O ladrão de orquídeas], livro de Susan Orlean, publicado em 1998, e adaptado para o cinema em 2002, por Charles Kaufman, com o título Adaptation [Adaptação]. Considerando a metaficcionalidade do filme – a ansiedade que toma conta do personagem roteirista ao tentar adaptar para o cinema um livro “sobre flores” – e parodiando Harold Bloom, poderíamos sugerir a expressão “The Anxiety of Adaptation” como um título bastante apropriado para o filme, pois revelaria a moldura externa e grande parte do enredo; no entanto, podemos argumentar também que o título empregado está de bom tamanho, pois é mais abrangente, expandindo assim a expectativa do receptor. O fato é que o título do filme é apenas Adaptação, mas narrativiza no cinema, não apenas o texto de O ladrão de orquídeas, mas o angustioso processo pelo qual passa o roteirista ao tentar adaptar artisticamente um texto para a tela.
A Charles Kaufman [roteirista norte-americano, interpretado por Nicholas Cage], protagonista do filme, homônimo do roteirista norte-americano, é oferecida a tarefa de adaptar para o cinema o livro O ladrão de orquídeas, de Susan Orlean [escritora norte-americana, interpretada por Meryl Streep]. Outro roteiro de Kaufman, Being John Malkovich [Quero ser John Malkovich], estava sendo filmado com relativo sucesso, mas, ao tentar adaptar O ladrão de orquídeas, Kaufman, o protagonista  e roteirista fictícios, passa horas diante da máquina de escrever olhando para uma folha em branco, tomado pela paralisante ansiedade de querer adaptar um livro “sobre flores” para o cinema, sem utilizar fórmulas feitas ou clichês da indústria cinematográfica, menosprezados por ele como the Hollywood “thing”. No desenrolar da trama do filme, o irmão gêmeo do protagonista, Donald Kaufman, também interpretado por Nicholas Cage, decide que irá escrever um roteiro e o faz sem grandes dificuldades depois de frequentar um minicurso de três dias, intitulado “Como escrever roteiros”, oferecido por Robert McKee. Donald adere totalmente aos dez mandamentos do professor do minicurso e aos modelos dos filmes de sucesso de Hollywood. Oito dos dez mandamentos podem ser lidos antes de serem arrancados, por Charlie, da parede sobre sua escrivaninha onde Donald os afixara. A linguagem é arcaica, imitando assim o estilo dos mandamentos bíblicos. Diferentemente dos mandamentos bíblicos, no entanto, os mandamentos do roteirista contêm apenas três proibições, os outros cinco mandamentos visualizados são afirmativos:

1.   Você deve respeitar sua audiência.

2.   Você deve pesquisa sobre o assunto.

3.   Você deve dramatizar a exposição.

4.   Você deve colocar um assunto em cada texto.

5.   Você deve criar personagens complexos, ao invés de meramente complicar a história.

6.   Você não deve usar mistério artificial nem surpresa banal.

7.   Você não deve usar deus ex-machina para chegar ao seu final.

8.   Você não deve facilitar a vida para o/a protagonista.

 
Esses mandamentos são uma “reedição” dos mandamentos que McKee, conhecido professor de roteiros norte-americano, utiliza em suas aulas. Ainda outros mandamentos são explicitamente abordados pelo professor, no filme, ao falar sobre a criação de uma narrativa: não usar o recurso de voice over para revelar pensamentos de personagens (recurso utilizado desde o início do filme Adaptação) e não criar um protagonista apático (que estaria vinculado ao 5º mandamento e seria a característica primordial do protagonista de Adaptação). Os dez mandamentos de McKee são elaborados da maneira que segue:
 

1.   Você não deve tirar a crise/o ponto culminante das mãos do protagonista. O mandamento anti-deus ex-machina.

2.   Você  não  deve  facilitar  a  vida para o/a protagonista. Não há progresso em história sem conflito.

3.   Você não deve incluir exposição pela exposição. Dramatize-a. Converta exposição em munição.

4.   Você não deve usar mistério artificial ou surpresa banal.

5.   Você deve respeitar sua audiência. O mandamento “anti-picaretagem”.

6.   Você deve conhecer seu mundo como Deus conhece o nosso. O mandamento pró-pesquisa.

7.   Você não deve complicar, mas sim tornar mais complexo. Não multiplique as complicações em um único nível. Use todos os três: intrapessoal, interpessoal e extrapessoal.

8.   Você deve atingir o fim da linha, levando as personagens aos conflitos mais longínquos e profundos imagináveis dentro do reino da probabilidade da história.

9.   Você não deve escrever “nas coxas”. Insira um subtexto em cada texto.

10.   Você deve reescrever.

Donald, o escritor fictício que segue os mandamentos do professor, discute, várias vezes, sobre as técnicas que utilizará para escrever seu roteiro com o irmão Charlie, que o critica severamente. O roteiro de Donald, The 3, no entanto, ao ser finalizado e entregue ao produtor de Charlie, é elogiado e indicado para ser produzido. Possivelmente os mandamentos de McKee ainda continuem fazendo sucesso entre espectadores...

 


[*] Brunilda Reichmann, PhD, é Professora Titular da Pós-Graduação em Letras da UNIANDRADE.