VAZIOS EM TEORIAS DA RECEPÇÃO:
CONCEITOS POUCO DETERMINADOS EM ISER E GUMBRECHT
Ao se sair da leitura das obras
produzidas por teóricos da Escola de Constança, definidores de um grande
referencial terminológico voltado a explicar como o leitor recebe a obra
literária, fica a sensação de que se está sempre vários degraus abaixo daquele
ponto aonde pesquisas sobre a recepção da literatura poderiam nos levar.
Hans Robert Jauss sofre com uma
atenção demasiada ao contexto histórico em que a recepção se dá, mas passa à
margem daquelas pesquisas que poderiam realocar suas ideias na experiência do leitor.
No entanto, é em Wolfgang Iser e em Hans Ulrich Gumbrecht que a lacuna emite um
eco mais dissonante. Em Iser, existe uma intenção de entregar ao leitor algo
lacunar porque ele precisaria conectar certos aspectos de seu pensamento às
pesquisas mais definitivas na área, se decidisse fazer uso delas. Em Gumbrecht,
fica evidente uma tentativa de apropriação de Heidegger, que ele mascara sem
enganar seu leitor: aquelas ideias são apenas a resultante de uma simplificação
do filósofo.
O próprio Iser nos autoriza a abordar
o problema. Pois seu O ato da leitura remete
a um conceito que extrapola a ideia de recepção,
tal como formulada pelos teóricos da Estética da Recepção. Afinal, a separação
entre os conceitos de recepção e de leitura é sintomática dos objetivos dessa
escola: a atenção recai sobre uma estética, mas em um sentido que não é o de
Kant nem o da tradição filosófica. Estética, no sentido kantiano, é a recepção
empírica. Apreender o real, pelos sentidos, inclui a obra de arte. A tradição
de obras sobre estética era fazer delas a tentativa de se definir o belo e de
se chegar a uma reflexão que, via de regra, terminava por emitir juízos de
valor sobre a natureza da arte. Uma estética, para tais teóricos, seria a
definição de uma hermenêutica da leitura, evidente em Jauss, desnecessária em
Gumbrecht, e que chamava a atenção de Iser no sentido fazer com que o teórico
percorresse as teorias acerca da constituição do sentido através da leitura.
Por isso, a palavra “leitura” no título de sua obra paradigmática sobre uma
hermenêutica da recepção da obra literária. Iser aborda teorias díspares, como
a psicanálise freudiana, os atos de fala e a semiótica de linha peirceana. Realmente,
fica difícil, para o teórico, estabelecer um fio condutor, que possa evidenciar
o processo de recepção da obra literária. De cada disciplina de pesquisa, fica
um resquício, mas que não forma uma unidade heurística: a passagem do sentido
inconsciente e da leitura como “retorno do recalcado” para a definição da obra
literária como ato ilocucionário deixa um espaço imenso entre as abordagens. O
ato de ler sai do domínio do inconsciente, do sentido que não pode ser
compartilhado, para o das convenções que estabelecem que, para serem bem
sucedidos, os atos de fala precisam corresponder às expectativas da situação
convencional em que são produzidos. Assim, a obra literária fica sendo ação. Ao
abordar a semiótica, Iser fala da obra de arte literária como sendo ícone. Extrai
da leitura a sua condição peircena de legissigno, algo regido por convenções, e
passa a ver nela algo que se realiza na sua própria constituição. Iser
enfrenta, em suas abordagens seguintes, a tarefa de fazer com que esse signo
que se autossignifica possa ser completado apenas através do processo de
recepção. Sua demonstração, a partir de Fielding, é frustrante: o leitor que
esperava uma fenomenologia dessa autossuficiência do texto literário encontra
um exemplo bastante raso de como ela, na verdade, depende da recepção, do ato
da leitura, para se completar. O exemplo aparece demasiadamente simplificado: o
leitor precisa perceber elementos como a personalidade de uma personagem, que é
construída ao longo de um romance, sem que o autor explicite no texto as
conclusões a que, sem dúvida, o leitor precisa chegar para que sua leitura não
seja equivocada. Se Iser saltasse da semiótica perciana para a greimasiana,
veria que sua ideia é simplista: refere-se àquelas habilidades que se contentam
com a compreensão do texto, mas não descem aos níveis mais profundos, razão de
ser da obra de arte.
Seria mais proveitoso, para o teórico
da recepção, se ele atentasse para os modelos de leitura elaborados pelas
ciências que se dedicam a esse fenômeno, sem a definição da literatura como
limite para que ele ocorra. Proveitoso, só que demasiadamente complexo.
Demandaria a revisão de conceitos básicos da Estética da Recepção, como o de
“leitor-ideal”.
As teorias cognitivistas da leitura
têm obtido, de modo inegável, resultados mais bem delineados a respeito do que
é o ato de ler. Ler qualquer coisa, inclusive obra literária. O processo fica
mais claro. Os conceitos são obtidos de modo empírico: tanto a psicolinguística
quanto a neurociência são instrumentais para que se saiba o que ocorre durante
a leitura. Uma estética da recepção da obra literária, como área especializada,
interessa-se pelos resultados de um processo de apreensão do texto reconhecido
de antemão como literatura. Mas, evidentemente, essa particularidade não
poderia ter fugido daqueles conhecimentos já definidos para o texto em geral, a
leitura como ato cognitivo.
Um dos exemplos notórios de resultado
das teorias psicolinguísticas está na definição dos tipos de leitura em
descendente e ascendente. Tomemos Angela Kleiman (1997) como guia. O tipo
descendente, ou top-down, é aquele em
que o leitor parte dos aspectos gerais para os particulares do texto. Ou seja,
ele o compreende, em princípio, como gênero textual, estabelece suas
expectativas de leitura a partir das convenções estabelecidas no nível genérico,
a partir do que a atenção recai sobre as particularidades daquele texto como
unidade particular. As expectativas vão sendo confirmadas ou não ao longo da
atenção para elementos exclusivos do texto. O tipo ascendente, ou bottom-up, é aquele em que o leitor
precisa construir o sentido do texto a partir das particularidades para, apenas
ao final, chegar aos aspectos gerais. Refere-se, sem dúvida, ao leitor menos
familiarizado com a diversidade de gêneros textuais e com as convenções que os
cristalizam. O leitor sem proficiência precisa da informação parcelada, que vai
formando um conjunto a ser sequenciado para chegar ao sentido mais geral do
texto. O cognitivismo sabe que a memória processa o texto por fatias e que
apenas algumas permanecem ativas até o final da leitura.
O leitor-ideal de Iser é aquele que
faz uma leitura descendente. Basta pensar no modo como o teórico, em O ato da leitura, define dois planos
para a leitura da obra literária. O primeiro plano corresponde ao diálogo do
leitor com a tradição literária, sobretudo as características de gênero, contidas
naquilo que chama de “repertório” (ISER, 1996, p. 101s), ou seja, o
conhecimento literário acumulado. Nele estão as expectativas de leitura. O segundo
plano corresponde ao reconhecimento das especificidades de cada obra durante a
leitura, aqueles aspectos pelos quais ela rompe com essa tradição e elabora
novas possibilidades de configuração do texto.
Trata-se, sem dúvida, de um tipo que
definiria o leitor-ideal, profícuo, da literatura. Falta a Iser relacionar esse
tipo aos modos como a obra literária tem como preenchidos seus lugares-vazios,
suas indeterminações. Uma leitura construída a partir dessas indeterminações,
como a que ele mostra para Tom Jones,
seria formulada a partir do tipo ascendente: o leitor ficaria atento a
elementos que iriam se acumulando até formar uma unidade de sentido em momento
posterior. Haveria, sem dúvida, riscos de que a leitura falhasse, dados os
limites da memória. Essa incompletude do texto faz com que ela dependa do
leitor para se atualizar.
O percurso de leitura estabelecido por
Jauss também se constitui de um momento em que se atenta para o geral, como
horizonte de expectativa, outro em que se realiza a leitura propriamente dita,
como apreensão, e outro, em que se confere o resultado à expectativa. Jauss
atenta em demasia para o contexto histórico da recepção, e ainda pouco para
aquilo que Iser chama de repertório e os cognitivistas de “conhecimento prévio
do leitor” (KLEIMAN, 1997, p. 13s) .
Afinal, a atenção para a leitura como
processo ascendente é que leva Iser a buscar suportes para a constituição do
sentido na psicanálise, nos atos de fala ou na semiótica. Quais seriam os
elementos capazes de constituir o sentido global a partir de unidades, de
fatias de compreensão? Seriam sentidos inconscientes, a imitação dos discursos
usados no cotidiano ou os ícones que são imagens do real? Certamente, todos os
elementos se aglutinam, mas mostrar o modo como isso se dá demandaria um fôlego
que a Estética da Recepção tem procurado preservar. Por isso, as lacunas, a
sensação de que o aspecto essencial da recepção, ou da leitura da obra
literária, que atenta para os elementos que caracterizam o processo, não está
suficientemente delineado.
E seriam necessários conceitos das
teorias cognitivistas, como aqueles que explicitam como os sistemas de memória
trabalham durante a leitura, conforme demonstrado por Smith (1989, p.112s).
Afinal, é nesses sistemas que está a explicação para o preenchimento dos
lugares-vazios. Ou seja: como a minha memória de trabalho, enquanto leio,
preenche as indeterminações do texto com informações da minha memória como
conhecimento, inclusive literário? Por que o leitor saberia que a personagem de
Fielding não é o que parece sem que o autor o diga e poderia, em momento
posterior, checar o sucesso de sua apreensão do texto? Os nossos esquemas que a
memória retém do real também se aplicam à nossa compreensão usada naquele nível
A de leitura. Uma teoria sobre a recepção teria que especificá-lo.
Quanto a Gumbrecht, sua noção de “presença”
(2010) parte de Heidegger. O autor faz questão de não se definir como
heideggeriano em Produção de presença,
talvez até como ironia. Trata-se de um modo de parecer não assimilar demais uma
ideia cara a Heidegger, em seu A caminho
da linguagem. A diferença entre o filósofo e o teórico é que Heidegger
estava preocupado com questões metafísicas e Gumbrecht, com a recepção do texto
literário. A ideia custou a Heidegger a pecha de uma visão otimista da
linguagem literária, sobretudo da poesia, que a sublimava, mas se chocava com
as ideias da segunda metade do século XX, que faziam dela instrumento de trocas
sociais coletivas, sem a possibilidade de gerar sentidos individualizados.
Para Heidegger, o ser é presença. Dasein, ou ser-aí, ou ainda
ser-presente. Não pode ser mais que isso: manifestar-se. A sua adoção do
conceito de Kant do ser como não sendo um predicado real, mas tão-somente a
manifestação do ente, como presença a ser apreendida pelos sentidos e
compreendida pela razão, leva Heigegger a fazer da presentificação a única
possibilidade de um ser poder ser identificado. E, no entanto, Heidegger
acredita na possibilidade de construção de sentido para um ser, no caso, humano,
como pessoa única. A percepção desse sentido, construído no tempo, não se dá na
forma de apreensão lógica. Retomando Kant, Heidegger considera a possibilidade
de uma “unidade sintética da apercepção” (HEIDEGGER, 1996, p. 236), que define
como o ápice da compreensão. Por ser sintética, mão pode ser analítica. Não há
como se transformar em explicitação lógica, através da linguagem, essa
apercepção sintética. Remete ao ilogismo da experiência mística. Heidegger se
depara com o fracasso da linguagem: essa apercepção, que ele define como
“acontecimento-apropriação” (HEIDEGGER, 1996, p. 180), não pode ser formulada
através da linguagem lógica. O ser-autêntico é aquele que se libertou do
nivelamento, do cuidado com o cotidiano, é livre. Mas a linguagem é
convencional, sobretudo a da lógica. Em A
caminho da linguagem, Heidegger faz da linguagem literária, sobretudo
poética, a possibilidade de libertação em relação às convenções e ao
nivelamento da linguagem ordinária. A poesia possibilitaria aquilo que a lógica
jamais conseguiria: a expressão do ser, como acontecimento-apropriação, ou
unidade sintética de apercepção. O ser está ali, e não pode ser reduzido a
explicações lógicas.
Gumbrecht formula sua noção de
presença como materialidade da obra. Modelo fenomenológico, herdado de Kant,
desenvolvido por Heidegger: o ser se manifesta como posição, ou seja,
manifestação para os sentidos. Insere-se no espaço e no tempo. A materialidade
da obra, em Gumbrecht, retoma a presentificação do ser heideggeriano. É fácil
perceber que o teórico da recepção está pensando no que o filósofo disse da
linguagem literária e no que Kant disse sobre a apreensão sintética. Resultado:
o conceito de “epifania” como modelo de recepção. O acontecimento-apropriação,
de Heidegger, assume aqui contornos tomistas. Mas Heidegger, assim como Kant,
via nessa apropriação sintética uma compreensão efetiva do ser. Em Gumbrecht,
essa experiência permanece no nível da percepção, da recepção como experiência
sensível mas não ainda transcendental. O teórico iria contra a tradição
pós-moderna e passaria a acreditar em unidade do ser, em identidade, termos que
soam extemporâneos. Se o teórico insiste em ver na falência das teorias sobre a
identidade um mau aspecto da pós-modernidade, essa retomada da metafísica
existencialista, como possibilidade de um ser se constituir como indivíduo, é
feita por ele de um modo um tanto velado. Talvez por isso a tentativa de se
desvencilhar de Heidegger. Presença e epifania são, respectivamente, modos de
constituição da obra de arte e de recepção da mesma. Gumbrecht fica na sensação
provocada pela obra. Para Heidegger, haveria a possibilidade de se aprendê-la,
em sua totalidade, sem palavras que a explicassem. Mas a compreensão dela está
lá. Em Gumbrecht, a epifania é uma descida de um degrau: trata-se de fruição,
no sentido de prazer, ou de compreensão da obra como tal? Estamos no nível do
gosto ou do valor?
Na verdade, Gumbrecht está mais
próximo de Nietzsche, de sua crítica ao apolíneo na literatura, que de
Heidegger. O acontecimento-apropriação é o ápice das possibilidades de
conhecimento. A epifania é uma experiência mais próxima do dionisíaco: é
sensação. Se a obra literária pode ser recebida como sensação, é uma concessão
que se faz ao leitor. Ao mesmo tempo, é uma desistência de se explicitarem
exatamente aqueles processos que podem rastrear a experiência estética com o
texto literário. Heidegger acreditava na possibilidade de a linguagem literária
manifestar-se como acontecimento-apropriação: ela se presentificaria, mesmo que
não pudesse ser submetida a procedimentos lógicos, convencionados. Para o
filósofo, a manifestação do ser importava mais que a recepção dele. A
literatura daria as condições para isso. Falta a Gumbrecht um modelo
recepcional que passe da constituição da obra literária à sua recepção como
presença e epifania. Há modelos de recepção epifânica?
A epifania é algo que sublima a arte e
a retira do conceito mais geral de texto. É como se a literatura já não
precisasse do fatiamento, da relação entre estrutura aparente e estrutura
profunda, termos aplicados por Frank Smith e por Angela Kleiman. Sobretudo, o
conceito de leitura metacognitiva é essencial para que se defina a recepção da
obra literária. Existe a leitura cognitiva, aquela que busca somente o sentido.
Seria sobretudo a leitura da linguagem transparente, não-artística. A leitura
metacognitiva checa a todo instante seu próprio desempenho porque trabalha com
a linguagem opaca. E explica ao leitor as causas do êxito ou do fracasso. Ler
pela leitura demanda a compreensão daquelas particularidades do texto que o
constituem, sua opacidade. É o segundo plano, de Iser, tão atrelado ao
leitor-ideal, aquele que lê para perceber na obra suas especificidades, sua
relação com o patrimônio literário, suas inovações. A abordagem dessa
metacognição ainda é uma demanda para os teóricos da recepção. Quem tem
atentado para ela é Paul Ricoeur, filósofo da literatura, a partir de suas
mímesis. Há sintomas dela em Luiz Costa Lima.
Dessa forma, a sensação de que teóricos
da recepção não compõem um modelo heurístico se intensifica, pois fica evidente
que a complexidade da relação entre a linguagem da literatura e um tipo de
recepção que a especifique ainda não foi discutida. O cognitivismo seria, sem
dúvida, um lugar de onde se parte, pois os estudos sobre a leitura incluem a do
texto literário. No entanto, a Estética da Recepção parece preferir partir do
conceito de literário, sem atentar devidamente para o que se chama de texto.
Por isso, a atenção para teorias da leitura que servem como instrumental para
outros objetivos que não o texto ou a recepção em si.
REFERÊNCIAS
GUMBRECHT,
H. U. Produção de presença: o que o
sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro:
Contraponto; Editora PUC-Rio, 2010.
HEIDEGGER,
M. A tese de Kant sobre o ser. In: Conferências
e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
_______.
Sobre a essência da verdade. In: Conferência
e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
ISER,
W. O ato da leitura: uma teoria do
efeito estético. Volume 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora
34, 1996.
KLEIMAN,
A. Texto & leitor: aspectos
cognitivos da leitura. 9ª ed., Campinas, SP: Pontes, 1997.
SMITH,
F. Compreendendo a leitura: uma
análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. Tradução de Daise
Batista. Porto Alegre: Artmed, 1989.
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