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quinta-feira, 11 de abril de 2019

Shakespeare com sotaque brasileiro
 
Profª Célia Arns de Miranda
 

            Se considerarmos a frequência de encenações das peças shakespearianas que acontecem no mundo inteiro, o grande número de filmes, pinturas, óperas, balés, composições musicais e produções literárias que estabelecem uma relação intertextual com a sua obra, não restam dúvidas de que Shakespeare é um poeta que continua a dialogar com a atualidade. Dentro desse contexto, dá-se uma ênfase especial a um dos maiores escritores da literatura brasileira, Machado de Assis, que incorporou em sua ficção, com um destaque a Dom Casmurro, elementos da dramaturgia shakespeariana, além de ele próprio ter sido espectador e crítico teatral das representações empreendidas pelo famoso ator italiano Ernesto Rossi, no Rio de Janeiro, em 1871. Esse grande intérprete foi um dos responsáveis, juntamente com o ator brasileiro João Caetano, por disseminar Shakespeare nos palcos nacionais, ao menos nas suas primeiras incursões. Entretanto, vale reiterar que Caetano já havia representado O mercador de Veneza, Macbeth, Hamlet e Otelo décadas antes da chegada do ator italiano no Brasil, ou seja, no período entre 1838 e 1860. Em que pese Barbara Heliodora (2008) ressaltar que as encenações por Caetano foram, em grande parte, realizadas a partir das traduções francesas que são consideradas mutiladoras e disciplinadas ao gosto do neoclassicismo francês, é necessário enfatizar o grande mérito de Caetano como o primeiro ator de Shakespeare no Brasil.

            Como é que Shakespeare está sendo representado no Brasil nos séculos XX e XXI? Centenas de livros, artigos, traduções, resenhas, teses de doutoramento têm sido publicados anualmente sobre esse dramaturgo, sobre o contexto político, ideológico, cultural da Inglaterra elisabetana, entretanto, são as adaptações de sua obra para as diversas mídias como, por exemplo, o cinema, teatro e televisão, que têm despertado o maior interesse dos autores, diretores, intérpretes, público e críticos de forma geral. A permanência de um clássico reside na sua capacidade de influenciar e ser influenciado. No mundo dos estudos literários, a apropriação textual é um processo necessário e inevitável: uma obra literária estará exercendo influência, se as pessoas não deixarem de manifestar uma reação diante dela, ou seja, se houver leitores que, novamente, se apropriem da obra do passado, ou autores // recriadores que desejem retomá-la, atualizá-la e/ou recontextualizá-la para o consumo contemporâneo. É por esse motivo que, apesar de haver centenas de produções teatrais que foram realizadas a partir das peças de Shakespeare, as potencialidades dos textos, que são infinitas, não se esgotam. Cada produção provê apenas um insight parcial e nenhuma produção pode realizar todas as potencialidades do texto.

            Dentro desse amplo contexto das adaptações, a convicção de que aquilo que um autor escreveu é uma forma sagrada, que deve ser preservada, continua a dificultar, muitas vezes, o trabalho teatral ainda hoje em dia. Sem dúvida nenhuma, essa postura torna-se ainda mais irredutível quando os textos são considerados canônicos, como no caso de Shakespeare, e as propostas de encenação das peças distanciam-se do consenso estabelecido pela tradição teatral. Sob essa perspectiva, Felipe Hirsch, diretor da Sutil Companhia de Teatro realizou em Curitiba no ano de 1997 uma versão moderna do Hamlet shakespeariano, intitulada Estou te escrevendo de um país distante. Tendo sido descrita por Augusto Ceressa (1998) como uma “violenta recriação de um clássico”, percebe-se, se colocarmos as duas peças, lado a lado, que tudo é, ao mesmo tempo, muito semelhante e muito diferente: é uma semelhança com diferença crítica. Tem-se a impressão de que é Shakespeare, que grande parte dos episódios está lá, que a crítica social se repete, que os personagens revelam a mesma motivação interna. Entretanto, na versão moderna, o enfoque é outro: a radicalização, o grotesco, o travestimento e a paródia evidenciam a quebra da ilusão, a linguagem choca, a concepção cênica exige que o público participe como um observador atento a toda a evolução da ação – é como se Hirsch colocasse uma lupa sobre o que é peculiar, ampliasse e intensificasse os matizes da peça shakespeariana.

            Dentre as numerosas encenações de Hamlet, não podemos deixar de dar um destaque especial ao espetáculo realizado pelo Teatro do Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno que, em 1948, estreou no Rio de Janeiro, um Hamlet brasileiro que teve o ator Sérgio Cardoso interpretando o protagonista da tragédia. Essa produção tornou-se um dos maiores acontecimentos do teatro brasileiro e transformou-se na revelação do desempenho excepcional de Sérgio Cardoso que, anos mais tarde, tornou-se também diretor de uma nova produção de Hamlet (1956) e da comédia Sonhos de uma noite de verão (1956). Ainda dentro do universo das retomadas do Hamlet shakespeariano, vale lembrar a montagem que foi realizada em Curitiba pelo encenador Marcelo Marchioro. Esse espetáculo, juntamente com a encenação de Sonho de uma noite de verão também realizada por ele, fazia parte do projeto cultural “Shakespeare no parque”. Essa adaptação cênica estreou no dia 20 de agosto de 1992, às vésperas do impeachment do Presidente Collor de Melo. É preciso reconhecer que a escolha feita por Marchioro para representar essa peça específica e naquele exato momento quando o país estava tomado pelas manifestações de rua do povo, foi muito apropriada. Sob esse prisma, Marchioro com a sua adaptação coloca em jogo duas historicidades: a da obra no seu próprio contexto e a do espectador nas circunstâncias em que assiste ao espetáculo (Pavis, 1999).

            Como as adaptações cênicas das tragédias, comédias e peças históricas escritas por Shakespeare multiplicam-se pelo nosso país, seria impossível apresentarmos um panorama aproximado da grande produção de espetáculos que acontecem no Brasil. Nessa semana, por exemplo, no dia 28 de maio, ocorreu a estreia em São Paulo da tragédia Hamlet, o “quase-herói” shakespeariano, pelo Grupo Clowns de Shakespeare, sob a direção de Marcio Aurélio. Essa estreia marca a data comemorativa dos 20 anos de trajetória do grupo. Esse grupo teatral também realizou em 2010 o espetáculo, Sua Incelença, Ricardo III, uma adaptação da tragédia shakespeariana Ricardo III. Dessa vez, sob a direção de Gabriel Villela, a encenação ganha as ruas das cidades por onde passa, agregando o público que é atraído pelo despojamento circense, músicas típicamente nordestinas (as incelenças) que são mescladas ao rock clássico inglês – esse teatro de rua faz uma referência direta ao teatro popular medieval e elisabetano na Inglaterra onde o povo de todas as classes sociais participava. Em 2006/2007, foi realizado o teatro musical Otelo da Mangueira pelo diretor carioca Daniel Herz, que é uma transposição do Otelo, o Mouro de Veneza de Shakespeare para o universo tradicional brasileiro das escolas de samba cujos desfiles atraem, todo ano, milhares de turistas do mundo inteiro. O texto do espetáculo, escrito por Gustavo Gasparani, transporta os principais personagens do enredo shakespeariano para uma disputa pela consagração do samba-enredo no morro da Mangueira no carnaval carioca de 1940, ano em que o samba foi alçado à categoria de ritmo nacional. O Otelo de Shakespeare também é transposto para o palco pelo Grupo Folias D’Arte em 2003. Nessa encenação o diretor, Marco A. Rodrigues, através da inserção das canções New York, New York (Frank Sinatra) e The End (The Doors), que desempenham uma função de enquadramento épico e de comentário crítico da ação, identifica o referente contemporâneo ao estabelecer o diálogo intermidiático entre a literatura, o cinema e as artes cênicas.

            Quando Anne Ubersfeld (2002), lança a pergunta, “como assegurar a permanência do texto clássico?”, afirma que o desmantelamento dos textos clássicos já é um fato incontestável e que a ênfase nas produções cênicas deve ser colocada no heterogêneo e na descontinuidade. Dentro desse pressuposto, sabe-se que se a visão tradicionalista tivesse predominado ao longo destes 450 anos, certamente, cada produção shakespeariana seria um transplante inanimado da página para o palco, e a originalidade e talento que a mente contemporânea traz para os conceitos tradicionais seria menor, senão inexistente.

 Publicado no Caderno G da Gazeta do Povo no dia 30 de maio de 1014.

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