Shakespeare com
sotaque brasileiro
Profª Célia Arns de Miranda
Se considerarmos a
frequência de encenações das peças shakespearianas que acontecem no mundo
inteiro, o grande número de filmes, pinturas, óperas, balés, composições
musicais e produções literárias que estabelecem uma relação intertextual com a
sua obra, não restam dúvidas de que Shakespeare é um poeta que continua a
dialogar com a atualidade. Dentro desse contexto, dá-se uma ênfase especial a um
dos maiores escritores da literatura brasileira, Machado de Assis, que
incorporou em sua ficção, com um destaque a Dom
Casmurro, elementos da dramaturgia shakespeariana, além de ele próprio ter sido
espectador e crítico teatral das representações empreendidas pelo famoso ator italiano
Ernesto Rossi, no Rio de Janeiro, em 1871. Esse grande intérprete foi um dos
responsáveis, juntamente com o ator brasileiro João Caetano, por disseminar
Shakespeare nos palcos nacionais, ao menos nas suas primeiras incursões.
Entretanto, vale reiterar que Caetano já havia representado O mercador de Veneza, Macbeth, Hamlet e Otelo décadas
antes da chegada do ator italiano no Brasil, ou seja, no período entre 1838 e
1860. Em que pese Barbara Heliodora (2008) ressaltar que as encenações por
Caetano foram, em grande parte, realizadas a partir das traduções francesas que
são consideradas mutiladoras e disciplinadas ao gosto do neoclassicismo francês,
é necessário enfatizar o grande mérito de Caetano como o primeiro ator de
Shakespeare no Brasil.
Como é que Shakespeare
está sendo representado no Brasil nos séculos XX e XXI? Centenas de livros,
artigos, traduções, resenhas, teses de doutoramento têm sido publicados anualmente
sobre esse dramaturgo, sobre o contexto político, ideológico, cultural da
Inglaterra elisabetana, entretanto, são as adaptações de sua obra para as
diversas mídias como, por exemplo, o cinema, teatro e televisão, que têm
despertado o maior interesse dos autores, diretores, intérpretes, público e críticos
de forma geral. A permanência de um clássico reside na sua capacidade de influenciar
e ser influenciado. No mundo dos estudos literários, a apropriação textual é um
processo necessário e inevitável: uma obra literária estará exercendo
influência, se as pessoas não deixarem de manifestar uma reação diante dela, ou
seja, se houver leitores que, novamente, se apropriem da obra do passado, ou
autores // recriadores que desejem retomá-la, atualizá-la e/ou
recontextualizá-la para o consumo contemporâneo. É por esse motivo que, apesar
de haver centenas de produções teatrais que foram realizadas a partir das peças
de Shakespeare, as potencialidades dos textos, que são infinitas, não se
esgotam. Cada produção provê apenas um insight
parcial e nenhuma produção pode realizar todas as potencialidades do texto.
Dentro desse amplo
contexto das adaptações, a convicção de que aquilo que um autor escreveu é uma
forma sagrada, que deve ser preservada, continua a dificultar, muitas vezes, o
trabalho teatral ainda hoje em dia. Sem dúvida nenhuma, essa postura torna-se ainda
mais irredutível quando os textos são considerados canônicos, como no caso de
Shakespeare, e as propostas de encenação das peças distanciam-se do consenso
estabelecido pela tradição teatral. Sob essa perspectiva, Felipe Hirsch, diretor
da Sutil Companhia de Teatro realizou em Curitiba no ano de 1997 uma versão
moderna do Hamlet shakespeariano,
intitulada Estou te escrevendo de um país
distante. Tendo sido descrita por Augusto Ceressa (1998) como uma “violenta
recriação de um clássico”, percebe-se, se colocarmos as duas peças, lado a lado,
que tudo é, ao mesmo tempo, muito semelhante e muito diferente: é uma
semelhança com diferença crítica. Tem-se a impressão de que é Shakespeare, que
grande parte dos episódios está lá, que a crítica social se repete, que os
personagens revelam a mesma motivação interna. Entretanto, na versão moderna, o
enfoque é outro: a radicalização, o grotesco, o travestimento e a paródia
evidenciam a quebra da ilusão, a linguagem choca, a concepção cênica exige que
o público participe como um observador atento a toda a evolução da ação – é
como se Hirsch colocasse uma lupa sobre o que é peculiar, ampliasse e
intensificasse os matizes da peça shakespeariana.
Dentre as numerosas
encenações de Hamlet, não podemos
deixar de dar um destaque especial ao espetáculo realizado pelo Teatro do
Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno que, em 1948, estreou no Rio de
Janeiro, um Hamlet brasileiro que
teve o ator Sérgio Cardoso interpretando o protagonista da tragédia. Essa
produção tornou-se um dos maiores acontecimentos do teatro brasileiro e
transformou-se na revelação do desempenho excepcional de Sérgio Cardoso que,
anos mais tarde, tornou-se também diretor de uma nova produção de Hamlet (1956) e da comédia Sonhos de uma noite de verão (1956). Ainda
dentro do universo das retomadas do Hamlet
shakespeariano, vale lembrar a montagem que foi realizada em Curitiba pelo
encenador Marcelo Marchioro. Esse espetáculo, juntamente com a encenação de Sonho de uma noite de verão também
realizada por ele, fazia parte do projeto cultural “Shakespeare no parque”. Essa
adaptação cênica estreou no dia 20 de agosto de 1992, às vésperas do impeachment do Presidente Collor de
Melo. É preciso reconhecer que a escolha feita por Marchioro para representar
essa peça específica e naquele exato momento quando o país estava tomado pelas
manifestações de rua do povo, foi muito apropriada. Sob esse prisma, Marchioro
com a sua adaptação coloca em jogo duas historicidades: a da obra no seu
próprio contexto e a do espectador nas circunstâncias em que assiste ao
espetáculo (Pavis, 1999).
Como as adaptações cênicas das
tragédias, comédias e peças históricas escritas por Shakespeare multiplicam-se
pelo nosso país, seria impossível apresentarmos um panorama aproximado da
grande produção de espetáculos que acontecem no Brasil. Nessa semana, por
exemplo, no dia 28 de maio, ocorreu a estreia em São Paulo da tragédia Hamlet, o “quase-herói” shakespeariano, pelo Grupo Clowns de Shakespeare,
sob a direção de Marcio Aurélio. Essa estreia marca a data comemorativa dos 20
anos de trajetória do grupo. Esse grupo teatral também realizou em 2010 o
espetáculo, Sua Incelença, Ricardo III,
uma adaptação da tragédia shakespeariana Ricardo
III. Dessa vez, sob a direção de
Gabriel Villela, a encenação ganha as ruas das cidades por onde passa, agregando
o público que é atraído pelo despojamento circense, músicas típicamente
nordestinas (as incelenças) que são mescladas ao rock clássico inglês – esse
teatro de rua faz uma referência direta ao teatro popular medieval e
elisabetano na Inglaterra onde o povo de todas as classes sociais participava. Em
2006/2007, foi realizado o teatro musical Otelo
da Mangueira pelo diretor carioca Daniel Herz, que é uma transposição do Otelo, o Mouro de Veneza de Shakespeare
para o universo tradicional brasileiro das escolas de samba cujos desfiles
atraem, todo ano, milhares de turistas do mundo inteiro. O texto do espetáculo,
escrito por Gustavo Gasparani, transporta os principais personagens do enredo
shakespeariano para uma disputa pela consagração do samba-enredo no morro da Mangueira
no carnaval carioca de 1940, ano em que o samba foi alçado à categoria de ritmo
nacional. O Otelo de Shakespeare
também é transposto para o palco pelo Grupo Folias D’Arte em 2003. Nessa encenação o diretor, Marco A. Rodrigues, através da inserção das
canções New York, New York (Frank
Sinatra) e The End (The Doors), que desempenham uma
função de enquadramento épico e de comentário crítico da ação, identifica o referente
contemporâneo ao estabelecer o diálogo intermidiático entre a literatura, o
cinema e as artes cênicas.
Quando
Anne Ubersfeld (2002), lança a pergunta, “como assegurar a permanência do texto
clássico?”, afirma que o desmantelamento dos textos clássicos já é um fato incontestável
e que a ênfase nas produções cênicas deve ser colocada no heterogêneo e na
descontinuidade. Dentro desse pressuposto, sabe-se que se a visão
tradicionalista tivesse predominado ao longo destes 450 anos, certamente, cada
produção shakespeariana seria um transplante inanimado da página para o palco,
e a originalidade e talento que a mente contemporânea traz para os conceitos
tradicionais seria menor, senão inexistente.
Publicado no Caderno G da Gazeta do Povo no dia 30 de maio de 1014.
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