Morgan Lloyd Malcolm dá vida à Dark Lady de Shakespeare.
Mail Marques de Azevedo
Contratada
pela diretoria artística do Globe Theatre para escrever uma peça sobre a
intrigante Emilia Bassano, que poderia ter sido a Dark Lady dos sonetos de
Shakespeare, a dramaturga e scriptwriter Morgan Lloyd Malcolm dá vida à
personagem em Emília, encenada em
setembro de 2018. A análise do processo da construção da peça e de sua
protagonista constituiu a base do trabalho que apresentamos ao seminário
Shakespeare and Cultural Appropriation, durante a 47ª reunião anual da
Shakespeare Association of America, de 17 a 20 de abril, em Washington D.C. O estudo
põe em destaque o sucesso da concepção e execução da peça como libelo contra a
discriminação do “outro” – a mulher e o estrangeiro – e o eco desses
preconceitos em obras literárias posteriores.
São escassas as informações sobre a
Emília Bassano histórica: viveu de 1569 a 1645, era filha de um músico italiano
da corte; foi mãe e professora e, fato inédito na época, publicou um livro de
poesia em seu próprio nome. Lloyd Malcolm faz dela uma protofeminista em luta
pelos direitos da mulher, num espetáculo que congrega comédia, drama, teatro
musical e paródia. O elenco, exclusivamente feminino, compõe-se de treze elementos
que representam mais de um papel. A cor dos trajes, vermelhos para os homens e
azuis para as mulheres, ajudam a definir quem é quem (Fig
1).
Três
atrizes representam o papel título como Emilia1 Emilia2 Emilia3, em três
períodos temporais (Fig 2).
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No
prólogo, Emília3, a personagem em idade madura, lê fragmentos do diário do
astrólogo Simon Forman, seu contemporâneo, única informação direta disponível
sobre Emília Bassano Lanier, a quem o diarista acusa levianamente “... ela é ou
será uma prostituta” e acrescenta palavra contemporânea de baixo calão. Movendo
apenas os lábios, Emilia3 traduz a palavra desconhecida para a plateia e, a
seguir, anuncia que o título da peça, Emilia,
lhe fora sugerido em sonhos. Em one fell
swoop, como diria Shakespeare, Lloyd Malcolm transfere a autoria para sua
personagem e introduz o tema da misoginia: uma mulher que fora amante de um
nobre e está no momento destituída de recursos, deve, certamente, viver da
prostituição. Na esperança de reverter a visão negativa, Lloyd Malcolm publica
os poemas de Bassano juntamente com a peça, a fim de “expô-los através de uma
lente diferente”, em suas próprias palavras.
Decorrem daí as linhas diretivas
deste trabalho, que examina como Lloyd Malcolm chama a atenção do público não
apenas para a poesia de Bassano, mas para os obstáculos que enfrentou no
contexto sociocultural da Renascença na Inglaterra. Focalizam-se, portanto,
dois aspectos relevantes da peça: 1) a relação entre os sexos como reflexo da
inferioridade social da mulher; 2) a apropriação do Shakespeare histórico como
amante de Emilia e porta-voz das normas que regulam o comportamento feminino na
sociedade elisabetana. Avançando um passo no terreno da ficção, como a
personagem-título fica arrasada ao descobrir que seu amado introduzira na fala
de seus personagens expressões de carinho dos momentos íntimos dos dois e, até
mesmo, passagens escritas por ela (Fig. 3).
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Emília2 não encontra a tão sonhada alma
gêmea no Will Shakespeare criado por Lloyd Malcolm. Embora troquem expressões
de amor em linguagem poética, Will não entende a necessidade de Emília de ver
seu trabalho reconhecido. Deveria dar-se por satisfeita de que suas palavras
fossem ouvidas nas peças que ele escreve: “Fale-me mais da estória e eu a
escreverei. Embora apareça apenas o meu nome, você saberá que é sua a
inspiração que se desnuda.” Seu protetor, Henry Carey, Lord Chamberlain, pensa
da mesma forma: sua escrita é mero passatempo feminino. Mas recomenda
enfaticamente que Emilia não interferisse no trabalho promissor do jovem
Shakespeare, seu afilhado artístico.
Em
uma sociedade patriarcal, com regras que discriminam a mulher, Emília “sente-se
aprisionada por três homens e um menino” (Henry Carey, Will Shakespeare, o
marido Afonso Lanier e o filho, Henry). Seus esforços teriam sido vãos? Seria
seu destino da mulher olhar através das nuvens “num esforço para vê-los galgar
triunfalmente montanhas cada vez mais altas, belas e generosas que ela é impedida
de escalar?”
Na
década de 1920, Virginia Woolf não é admitida na biblioteca de “Oxbridge” a não
ser acompanhada de um aluno ou professor. Por que não haviam suas ancestrais
femininas provido filhas e netas com os meios destinados à educação? Provavelmente
por estarem ocupadas dando à luz os filhos que lhes competia depois educar. A
própria Virgínia estava reduzida às “principais atividades abertas às mulheres
antes de 1918”: endereçar envelopes, ler para senhoras idosas ou ensinar
leitura para crianças de jardim da infância.
A
peça de Lloyd Malcolm oferece resposta apropriada ao pedido urgente de Virginia
para que alguém reescrevesse ou, ao menos, suplementasse a história, a fim de
incluir nela a mulher elisabetana comum. Devem existir fatos em algum lugar,
provavelmente em registros de paróquias e livros de contabilidade (WOOLF,
1989).
A
provação de Emilia acrescenta o desenraizamento a suas mágoas. “Em minha
família itinerante de músicos eu fui a última em uma longa linha de indivíduos
impedidos de criar raízes”. Na cena final da peça, um defunto Will Shakespeare,
ainda arrogante, diz a Emilia3 o que sabe a respeito dela: “Que você vinha de
uma família de músicos. Italianos. Talvez mesmo do norte da África.
Provavelmente judeus, mas sempre escondeu isso.”
Durante
toda a peça Emilia tem consciência de que, como estrangeira, está sujeita à boa
ou má vontade dos governantes e das massas. Emilia é um “deles” (one of them), gente de pele escura, de
costumes e crenças diferentes. Embora se esforcem para absorver os usos de sua
nova terra, seus processos de pensamento, de acordo com a visão de cultura como
mecanismo de controle, permanecem os mesmos de sua comunidade de origem.
“Pensar consiste em um tráfico de símbolos que impõem significado à experiência
de um indivíduo. Fazem parte de Comunidade antes de seu nascimento – no quintal
da casa, no mercado, na praça central – e continuarão em circulação depois que
morrer” (GEERTZ, 1973, p. 45).
Protestos
violentos contra estrangeiros tiveram lugar em tempos elisabetanos. O discurso
arrebatador de Sir Thomas More, na peça de mesmo título, hoje atribuído
indiscutivelmente a Shakespeare, é dirigido à multidão enraivecida que exige a
expulsão de “strangers”:
[...] you must needs be strangers, would you be pleas’d
To find a nation of such barbarous temper
That breaking out in hideous violence
Would not afford you an abode on earth. [1]
[1] E
se fossem eles os strangers e
encontrassem uma nação de têmpera tão bárbara que irrompendo em violência
hedionda lhes negasse um abrigo na terra? (Tradução livre)
Tais
considerações sobre o preconceito contra o outro – a mulher e o estrangeiro –
em Virginia Woolf e, no próprio Shakespeare, complementam a análise do texto de
Morgan Lloyd Malcolm. O elenco exclusivamente feminino de Emilia é uma réplica do século XXI à crença imemorial de que a
mulher nunca foi, nem pode ser igual ao homem. Trata-se de recurso efetivo para
enfatizar o tema da luta centenária da mulher pela igualdade de direitos. A
rejeição ao estrangeiro, de modo similar, atinge picos críticos quatro séculos
mais tarde.
Uma
vez que Henry Carey era patrono do grupo de atores Lord
Chamberlain’s Men, é possível aventar a hipótese de que Shakespeare e Emilia Bassano se tenham cruzado, em algum momento,
nesse meio artistico comum. Partindo dessa premissa, Lloyd Malcom confere verossimilhança
a uma trama envolvente que mantém o leitor preso à página escrita. Teria sido
verdadeiramente gratificante ter assistido à performance da peça no palco do
Globe Theatre.
REFERÊNCIAS
GEERTZ, C. The Interpretation of Cultures. New
York: Basic Books, 1973.
MALCOLM, M.L. Emilia. London: Oberon Modern Plays,
2018. Kindle Edition. Location 1-3194.
WOOLF, V. A Room of One’s Own. San Diego, New
York: Harcourt, 1989.
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