Trechos de “Romance
odiado”
Paulo Sandrini *
XII.
A partir de agora, tudo é motivo para um exorcismo ao pavor
da morte, ao medo da dor. Não sei se cairei no bisturi. Em sessões de
quimioterapia, radioterapia, essas canalhices que nos fazem sofrer e mesmo
assim nos deixam embalados de presente para a morte,
com lacinho e cartãozinho de dedicatória e tudo.
Sou uma espécie de
Mario Levrero, o uruguaio que se disse transformado em um canalha, que
abandonou por completo toda pretensão espiritual. Eu, de modo distinto ao dele,
passei tempo me dedicando também a ganhar dinheiro (e Levrero ganhou pouco,
claro; eu, não), e não tive de trabalhar em um escritório em Buenos Aires.
Ganhei escrevendo livros sem grandes intenções de transformação (abandonei como
Levrero a pretensão espiritual). Escrevi romances dramáticos, mas todos foram
dramas falsos. Se a literatura pode ter algo de muito, muito falso, a mais
falsa das falsidades é quando um escritor escreve um drama sem senti-lo, sem
ter nesse drama algo que se identifique realmente com ele, agindo apenas como
um ferreiro que forja o metal, que depois de resfriado recebe um fio bem
cortante que vai machucar a alma alheia, mas nunca, nunca a de quem escreveu,
de quem forjou esse metal frio e afiado do falso drama. Isso é o que sou: um
falso drama. Sou daqueles que sempre postergam o ato honesto da confissão.
Fato é que, agora, me
ponho a procrastinar não apenas a escrita mas sobretudo o conhecimento dos
resultados dos exames que Berrini tem em mãos. Exorcizar o pavor da morte. É
isso. Quero evitar médicos, análises, consultórios, salas de cirurgia e
enfermeiros, mesmo que tenha algo grave a ser extirpado de mim. Lembrando outra
vez Levrero em seu “Diário de um canalha”, quero me livrar desse processo
infalível diante do qual serei transformado em um objeto apenas um pouco mais
que material. E uma vez que a sociedade, diz Levrero, ou parte da sociedade
perde a noção de alma, ou de espírito, tratando o ser vivo como puramente
material, mais adiante a tortura e o crime advêm quase que naturalmente, como
resultado. Que mal há em despedaçar um objeto?
Por outro lado, soo a
uma besta paradoxal, que fala em espírito e exalta Cioran. Entre Levrero e
Cioran? Fico com a desilusão destruidora dos dois. Sou apenas um dos diluidores
de suas ideias, e não tenho nada de verdadeiro. Não penei como escritor, não
tive de passar anos, até o fim da vida, comendo no bandejão da Sorbonne, como
Cioran, para não passar fome. Nem tive de fazer de tudo para ganhar a vida como
Levrero. Sou um sortudo. Apenas um sortudo que paradoxalmente se deu mal por
não enfrentar uma escrita mais comprometida (ao menos comigo mesmo) e por não
contar aquilo que realmente vem de mim. Sou um impostor. Dos piores.
Amanhã,
ligarei para Mariana, para acertar minha ida até seu país de conto de fadas e
certamente de enfado.
Londres
amanhece brumosa, como convém. Vou caminhando, cortando parques e ruas vazias
do sul londrino. Depois, tomo um táxi e desço na rua Oxford, que hoje se parece
a qualquer região comercial de uma cidade grande qualquer. As mesmas lojas, as
mesmas marcas, vitrines desestimulantes e restaurantes de fast food. O charme a mais, no momento, são as lojinhas de
alimentos saudáveis que proliferam por aqui. Mas esse conceito de saúde me
parece o mais doentio possível, pois nada nos pode salvar, na maioria das
vezes, de nos sentarmos para mastigar, solitariamente, nossos reveses em
restaurantes repletos de boas intenções, e que, apesar dos ingredientes
saudáveis, nos alimentam de pura amargura e ansiedade.
Pelas
calçadas tumultuadas, estrangeiros e britânicos levam no peito frases em
inglês. Tudo se iguala. O Ocidente aniquila tudo e todos. E o Ocidente vem
fabricado, agora, da China. É uma nova civilização: Sino-Ocidental. O mundo já
não é diferente, em todos os lugares é o mais do mesmo. Tudo é visível, tudo é
visto em qualquer parte. Ao mesmo tempo, a possibilidade de ver algo com
profundidade desvanece no momento mesmo em que começamos a tentar ver, pois
sempre surge algo para que deixemos de lado o que estamos observando para já
nos colocarmos atrasados na tentativa de apreender alguma novidade. O planeta
Global é cansativo. A Babel turística de Londres é inebriante; por outro lado,
a Palavra como ponte real entre todos esses seres distraídos caminhando pelas
cidades cai no ostracismo. Em Londres, todos olham vitrines, mas quase ninguém
se encoraja a olhar nos rostos. Basta olhar as superfícies. Os olhares penetrantes se resumem a
atravessar os vidros das vitrines. É a profundidade máxima que se pode atingir.
Seguimos num caminho que certamente dará na exclusão inexorável do olhar. E ao
olhar com dedicação, entrega, afeto e outras paixões mais convulsivas, que
alteram nossa percepção, resta-nos ter consciência de que isso vai perdendo
suas nuances e matizes mínimos; e assim os olhos, mesmo sem cerrar as
pálpebras, se fecham.
XIII.
Em
Londres me ponho a refletir sobre a duração do tempo quando estamos em viagem.
Dois dias aqui e me parecem muito mais, como se num curto intervalo houvesse se
esgotado o espaço da cidade. E olha que fiz pouco por aqui. Uma fração de hora ganha o status de um Dia
Inteiro, coisas que fiz há pouco parecem ter acontecido ontem ou anteontem.
Alguns defendem que a vida contemporânea comprime o tempo, deixa-o mais rápido
e os dias são mais curtos, os meses e os anos. Mas tenho outra sensação; uma
hora aqui, sobretudo em viagem, em deslocamento, parece durar muito mais, há um
retrocesso no tempo que me dá chances de viver mais de um dia em somente um
dia.
A
ausência de Mariana me aflige. Ando por Londres como se andasse pela terra
devastada do poema de Eliot. Em meio à multidão, meu vazio existencial me
agride ainda mais. Estou esperando pelo Grande Nada. Sinto dores, agora mais
fortes. Pode ser algo que piore com o frio. Ou pode ser mesmo o frio que chega
com a morte. Vou caminhando, esbarrando por vezes em mulheres de burcas negras
que saem correndo das lojas de grife, abarrotadas de sacolas, e entram tão
rápido quanto saíram de grandes carros de luxo. O petróleo negro. A burca negra.
O petróleo que faz com que as de burcas negras comprem tudo o que há nesse
buraco negro que é o comércio de luxo. Todo esse negro que vem em minha mente
piora como o negror do céu londrino. Tudo é úmido e cinza escuro. As pessoas
estão cinzas. Eu me sinto aflito. É a falta de contato. A falta da fala. Sinto ainda
mais isso aqui, neste lugar em que quase ninguém fala minha língua. Em meu
país, os que falam minha língua geralmente não me interessam. Tento fugir da
minha misantropia aqui, em Londres. Talvez seja a pior escolha. Mariana está me
deixando no vazio, no escuro. Tínhamos combinado. Eu vou pra lá depois de
amanhã. E ela nada de entrar em contato. Assim mesmo, vou. Tenho o endereço e Liubliana
não é Moscou. Me sinto péssimo. Tudo
para o que olho me aflige. Uma espécie de pânico. De temor de chegar ao fim
tendo feito muito pouco por minhas relações afetivas. Sempre fui um hedonista.
Sempre um calhorda, canalha, mentiroso ficcional. Na verdade, o que vem tomando
conta de mim nos últimos tempos é o desespero. A solidão máxima. Precisava
encontrar Bertolt, mas ele não pode sair do trabalho. Assim mesmo ligo, e
enquanto procuro o número dele na agenda do celular, mais uma vez me lembro de
Cioran, sempre o maldito Cioran, mas desta vez, lembro-o por um de seus lados,
se assim devo dizer, não pessimista.
Lembro-me de ele ter comentado uma
vez numa entrevista sobre suas visitas aos cemitérios e sobre a consciência do
Nada. Diz que uma vez encontrou uma moça conhecida e ela estava desesperada por
conta de um problema afetivo. Então ele lhe sugeriu que visitasse o cemitério
de Montparnasse, e ficasse por ali um tempinho, com isso veria que sua tristeza
iria parecer tolerável. Ir ao cemitério, segundo o filósofo romeno, é melhor do
que consultar um médico, é uma lição de sabedoria praticamente automática. E
completa, perguntando o que se pode fazer por uma pessoa em desespero profundo.
Nada ou mais ou menos nada, ele mesmo responde. O único modo de suportar o
vazio do desespero é ter essa consciência do Nada. Se não fizermos assim, a
vida não pode ser suportável. Com a consciência do Nada, tudo que nos acontece
ganha proporção normal e assim deixa de assumir proporções dementes que são os
traços marcantes da exageração em momentos de desespero.
XX.
Não
tive coragem. Deixei-a me esperando. Isso, se ela foi realmente ao local
combinado. Ela já é o passado de uma relação promissora. Ela é o medo de que eu
tanto necessitava. O medo que me faz ir adiante para logo voltar ao lugar de
origem. Ela é a encarnação de várias outras situações me dizendo que sempre
haverá desencontros. Frustrações. Me dizendo que as buscas nunca se
concretizam. É como um manual de autoajuda ao contrário. A vida é sempre uma
busca ansiosa sem ponto de chegada. Inexaurível. A vida é a insônia. O tempo
lento e dilatado das amarguras e esperas por momentos mais sãos que, se
chegarem, vão desaparecer num átimo de segundo, fazendo cócegas em nossas mãos,
sem nem dizer adeus, tudo para provar que nunca estiveram por perto. E logo virão novas ansiedades. Todas as
noites serão longas. Todas as esperas te perseguirão. Até que você todo seja
constituído de um tempo que se esgota sem pressa, um tempo obeso de
possibilidades que se transformará em seu sistema nervoso; um tempo morno que
aquecerá e se tornará sua carne resignada, um tempo espesso de demoras que
constituirá sua ossatura. Você:
sobrepeso de possibilidades. Você: carne morna e resignada. Você: esqueleto de
esperas óbvias jamais concretizadas.
Você e o tempo rastejante. Você e o tempo-verme. O tempo longo. O
tempo-trem que range suas rodas numa estrada de ferro rumo ao leste. O leste
lento. A peste negra do tempo
esticando-se, esticando suas noites. Transformando seus dias em noites. Suas
luzes sempre acesas. Você, sempre alerta. E se prolongando junto ao tempo para
que as esperanças se mantenham. Para que a vida se mantenha. Eterna e imutável.
Como você nunca quis. Como você sempre quis. Assim, fugindo dos encontros. Torcendo
para que deem errado. Fazendo com que tudo dê errado. E mesmo quando é para dar
certo, você, inconscientemente, sabe: não vai dar certo. Tudo continuará como
espera. E assim você seguirá. Sendo seu próprio tempo, confundindo-se com ele,
com a sua própria espera, sua própria demora em chegar, sua própria eternidade
prolongando uma vida lenta, sem nenhum risco. Sem o risco dos encontros que
afligem, acariciam e arranham a pele seca, escamosa, da sua vida de
serpente-tempo-rastejante.
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