DUAS ESTÉTICAS QUE
ILUSTRAM PROXIMIDADES E DISTÂNCIAS
Prof. Dr. Edson
Ribeiro
É bastante
conhecida, entre historiadores da arte, a frase de E. H. Gombrich, (1988, p.
411) em sua História da Arte: “Manet é Flaubert; Courbet é Zola”.
O historiador
apontava, na pintura, a diferença mais marcante entre o Realismo e o Naturalismo,
nos dois escritores que pontificavam nas duas estéticas, na França da segunda
metade do século XIX.
Está-se diante
de uma obviedade, quando se atenta para aquilo que Luiz Costa Lima (2003, p.
179s) chama de “mimesis da representação” ou da realidade, ou seja, a
representação estética como cópia daquilo que constitui o real. Essa mimesis
representa, para Costa Lima, uma característica da arte feita antes da
modernidade. No entanto, ela está ali. Em Courbet, não há nenhuma surpresa em
se enxergar essa cópia como tentativa de documento. O real naturalista não
traz, de fato, nada que se possa considerar como novo, em termos daquilo que
define qualquer arte: os elementos que compõem sua linguagem.
Courbet não nos
nega nada; também não nos entrega nada:
Figura 1: COURBET, Gustave. Moças peneirando trigo. Óleo sobre tela. 1854. Museu de Arte de Nantes.
A preocupação
com a representação do real, como cópia, leva o pintor a procurar técnicas que
não se pareçam, por exemplo, com o Barroco de Weermer, com suas texturas e
efeitos de luz. Courbet só quer a cena, dizer ao seu público que é possível
representar a realidade feia de forma dura. Se o movimento da moça não
harmoniza as partes da pintura, é considerada brusca, ao mesmo tempo ele chama
a atenção para a representação da realidade como documento. Costa Lima não
veria, nesta técnica, aquilo que chamou de “mimesis da produção” ou da modernidade.
Ou seja, a obra não pretende desnudar, a quem a contempla, a sua própria
produção.
Pode-se ver
Émile Zola na pintura de Gustave Courbet. Como estética que copia para chamar a
atenção para a coisa copiada; a técnica fica a serviço desse real. Trata-se de
uma arte que não chega a ser transparente, mas que também não faz da opacidade um
contrato de recepção. Basta ler-se o começo de Germinal e a mesma
recepção, baseada na transparência e na atenção para a coisa representada,
chama a atenção:
Na
planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta,
um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou,
dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. A sua
frente, não enxergava nem mesmo o solo negro e somente sentia o imenso
horizonte achatado através do sopro do vento de março, rajadas largas como
sobre um mar, geladas por terem varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem
sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se reta como um
quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas.
O
homem partira de Marchiennes lá pelas duas horas. Caminhava a passos largos,
tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta e da calça de veludo. Um pequeno
embrulho, feito com um lenço de quadrados, incomodava-o bastante; ora o
mantinha apertado debaixo de um braço, ora de outro, para poder assim enfiar no
fundo dos bolsos as mãos entorpecidas que o açoite do vento leste fazia
sangrar. Uma única idéia lhe ocupava o cérebro vazio de operário sem trabalho e
sem teto, a esperança de que o frio se tornasse menos agudo com o romper do
dia. Havia uma hora que ele caminhava assim, quando percebeu à esquerda, a dois
quilômetros de Montsou, uns clarões vermelhos, três braseiros queimando ao ar
livre, e como suspensos. A princípio hesitou, tomado de receio; mas logo após
não pôde resistir à necessidade dolorosa de aquecer por um instante as mãos.
(ZOLA, 2006, p. 8)
Germinal é de 1885. Época
em que as artes já tinham se acostumado a representarem-se como linguagem opaca.
O romance de Zola, tal como a pintura de Courbet, está preocupada com a coisa
representada. É um modelo de arte que vai influenciar a modernidade brasileira.
Um realismo exacerbado mas que permanece como mimesis da realidade. É difícil
ver modernidade ali.
A mimesis da
produção é o que diferencia a modernidade da arte feita antes. Mostrar a obra
como linguagem e evidenciar seus modos de produção constituem, para Costa Lima,
a revolução que dá origem à arte moderna. Para a obra moderna, não interessa
copiar o real, mas fazer da própria obra a realidade que interessa.
E Costa Lima
toma como marcos do início da modernidade, da mimesis da produção, tanto
Baudelaire quanto Flaubert. Madame Bovary, em 1857, inaugura a
literatura como obra que se mostra como tecnicamente perfeitamente. É preciso
que o leitor a desmonte, que entenda que ali há recursos de linguagem que se
destacam da coisa representada, Como mimesis da produção, a modernidade passa a
demandar um público que atente para as técnicas, que compare obras e forme
aquilo que um dia Wolfgang Iser (1996, p. 101) iria chamar de “repertório”, ou
seja, estar de posse dos recursos de que a arte dispõe como linguagem e não
como imitação do real.
Gombrich estava
certo. Édouard Manet é ainda o precursor da técnica que iria criar a pintura
moderna e desencadear as vanguardas em todas as artes. O Impressionismo é ainda
um sintoma de opacidade da linguagem, pois Manet é considerado um realista. Seu
modo de representar a luz e sua atenção para imagens que valem apenas como
motivos para serem representadas fazem dele alguém que chama a atenção para a
técnica. Tal como Flaubert, o pintor tem sua obra atacada, proibida, vista como
indecente:
Figura 2: MANET, Édouard. O almoço sobre
a relva. 1863. Óleo sobre tela. Paris, Musée d'Orsay.
No quadro de
Manet, não existe aquele realismo documental que, às vezes, é confundido com a
verossimilhança. Percebe-se um modo ousado de a obra mostrar-se como linguagem
e não realidade. As duas figuras humanas que olham para quem as contempla, que
pode ser o pintor que as retrata, tentam passar uma impressão de gratuidade:
por que alguém as retrataria em momento tão banal como um almoço? Há sobras de
comida. A realidade como cópia não justifica a nudez das mulheres. O que seria
uma fuga do real sem se chegar à mitologia. A atenção de Manet para a luz faz
com que os pés e os cotovelos da moça toquem de modo irreal aquilo em que se
apoiam. A atenção para a paisagem, como representação da luz e não como
reprodução de uma realidade considerada digna de ser pintada é uma marca da
mimesis da produção nessa obra.
Esse realismo de
Manet é, de forma recorrente, chamado de representação da psicologia das
figuras pintadas. Haveria, já aí, uma intenção de mostrar aspectos conflitantes
da psicologia humana. Meandros como os que Flaubert, como realista que
construía sua narrativa a partir de pontos de vista internos, sem a preocupação
com grandes painéis, alinhava e faz com que suas cenas, aparentemente fortuitas
situações de vida de província, sejam pretextos para construções narrativas arquitetônicas.
Ou polifônicas. Uma cena de Madame Bovary pode ser enxergada em Manet. A
vida sensual da protagonista, que apenas se entrega, sem que isso precise ser
explicado se não como construção romanesca, constrói a mimesis da modernidade.
Não é necessário que se recorra a práticas de explicação de comportamentos a
partir de uma causalidade para que se negue aquilo que Costa Lima enxerga na
obra: sua natureza como mimesis de si mesma, obra que demanda um leitor que
reconheça os elementos que formam a narrativa literária.
Tal como em
Manet, uma cena fortuita. Não há como se exemplificar, evidentemente, a
natureza de mimesis da produção de Madame Bovary em poucos trechos. Mas
a condição de cena fortuita da pintura pode ser percebida:
Algumas
vezes pensava que aqueles eram, apesar de tudo, os mais belos dias da sua vida,
a lua-de-mel, como se dizia. Para lhe saborear a doçura, teria sido necessário,
sem dúvida, partir para aqueles países de nomes sonoros onde os dias imediatos
ao do casamento têm mais suaves ociosidades! Em confortáveis assentos de
mala-posta, sob cortinas de seda azul, sobem-se a passo caminhos escarpados,
ouvindo a cantilena do postilhão, que ecoa na montanha com os chocalhos das
cabras e o ruído surdo da cascata. Quando se põe o Sol, respira-se à beira dos
golfos o perfume dos limoeiros; depois, à noite, nos terraços das vivendas, a
sós, com os dedos entrelaçados, contemplam-se as estrelas e fazem-se projectos.
Parecia-Lhe que certos lugares da Terra deviam produzir felicidade, como as
plantas próprias de um terreno que se desenvolvem mal noutro lugar. Não poder
ela debruçar-se à varanda dos chalés suíços ou encerrar a sua tristeza numa
casa de campo escocesa, com um marido trajando casaca de veludo preto, com
grandes abas, botas flexíveis, chapéu bicudo e punhos de renda! (FLAUBERT,
2000, p. 39)
A cena faz
pensar no que as figuras de Manet poderiam estar pensando. Essa felicidade
gratuita, aqui, motiva inúmeras interpretações. A literatura não tem como
evitar. Seu realismo acaba sendo explicação. Na pintura, o real pode ser apenas
uma imagem.
Sim, Gombrich
compara estéticas e, ao fazê-lo, ilustra com o que aparece como imagem do real,
tanto na pintura quanto na literatura. Mas é preciso ver mais nessa comparação:
a mimesis da modernidade está escancarada em Manet, assim como em Flaubert;
Courbet e Zola são copistas da realidade. Não há que se ver neles a grande
invenção, a técnica revolucionária, como é saliente nos outros dois.
FLAUBERT, G. Madame Bovary.
Tradução de Fernanda Ferreira Graça. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000.
GOMBRICH, E. H. História da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. 4ª ed., Rio de
Janeiro: Guanabara, 1988.
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria
do efeito estético. Volume 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:
Editora 34, 1996.
LIMA, L. C. Mímesis e modernidade.
Formas das sombras. 2ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2003.
ZOLA, E. Germinal. Tradução de Francisco
Rage Bittencourt. 2ª ed., São Paulo: Martin Claret, 2006.
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