Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs
Na
literatura contemporânea, a colagem, recurso amplamente utilizado na maioria
dos movimentos de vanguarda do início do século XX, na pop arte e na poesia
visual, empresta ao texto um efeito artesanal. Algumas partes do livro são
componentes estranhos à literatura convencional e ao próprio significado de
texto. Fotos, pedaços de jornal, bilhetes, manchetes e anúncios transformam o
texto em produto de bricolagem e relativizam o conceito de autoria.
A autoria,
na colagem, é responsável pela seleção e pela organização dos materiais, de
modo a propor um novo significado, pela recontextualização de elementos antes
pouco utilizados no contexto da arte e pela articulação de elementos às vezes
essencialmente diferentes no significado, na função que desempenham e no valor
estético. No ready-made, técnica muito usada por Marcel Duchamp nas
artes plásticas e por Oswald de Andrade na literatura, a criação dava-se a
partir de coisas prontas. No entanto, o fazer da nova arte propunha novos modos
de usar e ver determinados objetos, redimensionando-os e rompendo com a
convenção artística.
Ao
fragmentar algo já pronto e escolher algumas peças para formar um novo
conjunto, o artista descontextualiza para recontextualizar. Nesse processo é
que ocorre a mudança que faz evoluir o conceito de arte e o significado do
próprio objeto. Evidentemente, a transformação, que exige nova postura do
leitor/espectador, é resultado da ação crítica do artista diante do objeto
reutilizado. Valêncio Xavier utilizou a colagem em vários textos. Dentre
inúmeros elementos que ajudam a compor as narrativas do autor, o jornnal é o
mais utilizado. A mistura é inusitada, para muitos, porque rompe com a divisão
feita pelo senso comum, segundo a qual a literatura é sinônimo de ficção e o
jornal, de realidade. Ao emprestar notícias de jornais, Valêncio Xavier chama a
atenção do leitor para a manipulação discursiva, demonstrando que o texto
jornalístico, como qualquer outro, é mera construção sobre um fato.
O autor,
inclusive, age, na criação de seus livros, como um redator de jornal. Ele
seleciona as palavras; escolhe como dar a notícia. O fato pode ser o mesmo, mas
ele é, invariavelmente, apresentado com variações, nos diferentes jornais, que
têm linhas editoriais distintas e, consequentemente, público e linguagem também
divergentes. Desse modo, fica claro que as características do jornal e o estilo
do autor influenciam na criação textual. É certo que o Jornalismo, assim como a
História, são vinculados à realidade, mas Valêncio Xavier revela a
simplificação grosseira que existe por trás dessa e de qualquer outra
categorização.
O
principal objetivo da utilização de textos de jornal dentro do texto literário
é a desmistificação do status da imprensa e dos discursos produzidos por ela.
Neste artigo, serão analisados dois contos do autor, Um mistério no
trem-fantasma e O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de
Curitiba, e dois textos maiores, considerados novelas, O mez da grippe e
Rremembranças da menina de rua morta nua. Em todos eles, a relação entre
Jornalismo e Literatura é dupla. Para os leitores especializados, é fácil
perceber que tudo é construção. É como se os fragmentos de textos jornalísticos
emprestassem as características dos textos do universo ficcional, de que agora
são parte. Em contrapartida, ao leitor mais ingênuo, a notícia de jornal se
sobrepõe ao texto literário, que de verossímil passa a ser considerado real
por muitos leitores, que não duvidam de nada veiculado nos meios de comunicação
de massa. Sendo assim, essas pessoas também não encontram motivos para
desconfiarem de uma história que é feita com recortes de jornais.
Esse
efeito paradoxal de afirmação da realidade do texto literário pelo jornal e de
negação do vínculo do jornal com a realidade pela literatura é resultado da
dissolução da fronteira que, antes, separava realidade e ficção. Atualmente,
essa distinção não existe mais:
O que a escrita pós-moderna
da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são
discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos
sentido ao passado (...). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos
acontecimentos mas nos sistemas que transformam esses
“acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. (HUTCHEON, 1991, p.
122)
Valêncio
Xavier, ao tirar as notícias de seu contexto de origem, dá espaço ao
questionamento sobre os limites da realidade e da ficção, confirmando os
postulados de Linda Hutcheon e de outros teóricos da pós-modernidade. As
colagens que caracterizam os textos do autor escolhidos para análise podem ser
um convite à reflexão ou uma armadilha que pode fazer o leitor desconsiderar a
ficcionalidade da literatura. A escolha depende do perfil do leitor e,
consequentemente, de sua predisposição ao jogo intelectual ou ao mero
entretenimento.
(Introdução do artigo A
literatura, o jornal e as verdades dos fatos, publicado na revista Miscelânea, vol. 8)
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