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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Modos de ler Dom Quixote


Edna da Silva Polese *

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) foi responsável por escrever uma obra que cristalizou-se como verdadeiro marco para a composição do romance na Europa. Apesar de ser autor de outras obras importantes para o período, como Galatea, de 1585, Novelas exemplares, de 1616 e Os trabalhos de Persiles e Segismunda, de 1617, foi com O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, 1605, que Cervantes passou para a ala dos imortais na literatura ocidental. A obra foi reconhecida, como registra Otto Maria Carpeaux em História da Literatura Ocidental, como “o romance dos romances”. A segunda parte de Dom Quixote foi publicada em 1615, em meio ao atribulado problema de se confirmar como o verdadeiro Dom Quixote de Cervantes, já que o sucesso do primeiro livro fez surgir alguns falsos Dons Quixotes. Uma ironia que parece própria da narrativa cervantina.

O sucesso imediato de Dom Quixote está vinculado ao momento de sua escrita. As mudanças radicais vividas na Europa e o endurecimento da Igreja Católica na Ibéria, são panos de fundo para um enredo inspirado no passado: a impossibilidade de se viver como cavaleiro medieval quando não se estava mais nesse período. Daí o romance ser a grande paródia dos romances de cavalarias, verdadeiros best sellers de época. Desses, o Amadis de Gaula, publicado em 1508, foi, depois da Bíblia, o livro mais lido de todos os tempos, segundo Carpeaux.

Dom Quixote é um fidalgo de poucas posses que endoidece após ler muitos livros – os conhecidos romances de cavalaria. Sai pelo mundo para realizar sua missão como cavaleiro ao lado do escudeiro, o analfabeto e desajeitado Sancho Pança. O Cavaleiro da Triste Figura enxerga gigantes nos moinhos de vento, exércitos inimigos em ovelhas pastando, um elmo de guerreiro numa bacia de lavatório. O idealismo de Dom Quixote esbarra o tempo todo numa realidade que ele não quer enxergar. Realidade vista, interpretada o tempo todo pelo companheiro fiel que tenta, sem sucesso, chamar seu amo para a realidade.

Por conta desse idealismo e desse choque sofrido por Dom Quixote, a obra alcança uma outra forma de leitura no período do romantismo: o contraste entre as aparências e a realidade, presente na obra, será o cerne do romance realista. Dos títulos, podemos citar o Tom Jones, de Fielding e, em solos brasileiros, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

O Dom Quixote é ainda representante daquele grupo de obras cujo personagem se deixa levar pela ficção, como a Ema Bovary de Flaubert.

De acordo com Maria Augusta da Costa Vieira, em prefácio da edição da Editora 34, a obra, a partir da década de 1960, apresenta uma nova vertente interpretativa:

Um ponto fundamental dessa revisão crítica se apoia na ideia de que a obra é cômica. Essa comicidade, por sua vez, se estrutura a partir da criação do burlesco, ou seja, do desequilíbrio entre o nível estilístico e o tema. Desequilíbrio que tanto pode estar na utilização de um estilo elevado para referir-se a temas banais quanto na criação de um estilo tosco para referir-se a grandes temas.

Essa nova maneira de ler Dom Quixote está embasada, principalmente, na questão da linguagem, no modo como Cervantes uniu o erudito e o popular e, assim como Erasmo de Roterdã em O Elogio da Loucura, ridicularizou a erudição pedante. O burlesco, a paródia e a ironia estão de volta, mas sob outro tipo de análise: a da arte de colocar em mesmo nível de diálogo o fidalgo culto, Dom Quixote, e o analfabeto Sancho, o grande iluminador do caminho de Dom Quixote, pois conhecemos figura do Quixote através de Sancho.

Bakhtin com suas novas teorias sobre a linguagem e a literatura nos traz sangue novo com as ideias acerca da carnavalização, do riso e do grotesco, elementos encontrados na narrativa cervantina. O Dom Quixote segue sempre como uma nova faceta a se mostrar, amalgamando-se a cada tempo com sua incrível capacidade de se comunicar com novos leitores. Seu personagem, enlouquecido pela leitura, diverte, ensina e provoca.

 

* Edna da Silva Polese é professora de Teoria e Estudos Literários do  Curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

 

 

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