Edna
da Silva Polese *
Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) foi
responsável por escrever uma obra que cristalizou-se como verdadeiro marco para
a composição do romance na Europa. Apesar de ser autor de outras obras
importantes para o período, como Galatea,
de 1585, Novelas exemplares, de 1616
e Os trabalhos de Persiles e Segismunda,
de 1617, foi com O engenhoso fidalgo Dom
Quixote de La Mancha, 1605, que Cervantes passou para a ala dos imortais na
literatura ocidental. A obra foi reconhecida, como registra Otto Maria Carpeaux
em História da Literatura Ocidental,
como “o romance dos romances”. A segunda parte de Dom Quixote foi publicada em 1615, em meio ao atribulado problema
de se confirmar como o verdadeiro Dom Quixote de Cervantes, já que o sucesso do
primeiro livro fez surgir alguns falsos Dons Quixotes. Uma ironia que parece
própria da narrativa cervantina.
O sucesso imediato de Dom Quixote está vinculado ao momento de sua escrita. As mudanças
radicais vividas na Europa e o endurecimento da Igreja Católica na Ibéria, são
panos de fundo para um enredo inspirado no passado: a impossibilidade de se
viver como cavaleiro medieval quando não se estava mais nesse período. Daí o
romance ser a grande paródia dos romances de cavalarias, verdadeiros best
sellers de época. Desses, o Amadis de
Gaula, publicado em 1508, foi, depois da Bíblia, o livro mais lido de todos
os tempos, segundo Carpeaux.
Dom Quixote é um fidalgo de poucas posses que
endoidece após ler muitos livros – os conhecidos romances de cavalaria. Sai
pelo mundo para realizar sua missão como cavaleiro ao lado do escudeiro, o
analfabeto e desajeitado Sancho Pança. O Cavaleiro da Triste Figura enxerga
gigantes nos moinhos de vento, exércitos inimigos em ovelhas pastando, um elmo
de guerreiro numa bacia de lavatório. O idealismo de Dom Quixote esbarra o
tempo todo numa realidade que ele não quer enxergar. Realidade vista,
interpretada o tempo todo pelo companheiro fiel que tenta, sem sucesso, chamar
seu amo para a realidade.
Por conta desse idealismo e desse choque
sofrido por Dom Quixote, a obra alcança uma outra forma de leitura no período
do romantismo: o contraste entre as aparências e a realidade, presente na obra,
será o cerne do romance realista. Dos títulos, podemos citar o Tom Jones, de Fielding e, em solos
brasileiros, Triste fim de Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto.
O Dom
Quixote é ainda representante daquele grupo de obras cujo personagem se
deixa levar pela ficção, como a Ema Bovary de Flaubert.
De acordo com Maria Augusta da Costa Vieira,
em prefácio da edição da Editora 34, a obra, a partir da década de 1960, apresenta
uma nova vertente interpretativa:
Um
ponto fundamental dessa revisão crítica se apoia na ideia de que a obra é
cômica. Essa comicidade, por sua vez, se estrutura a partir da criação do
burlesco, ou seja, do desequilíbrio entre o nível estilístico e o tema.
Desequilíbrio que tanto pode estar na utilização de um estilo elevado para
referir-se a temas banais quanto na criação de um estilo tosco para referir-se a
grandes temas.
Essa nova maneira de ler Dom Quixote está embasada, principalmente, na questão da linguagem,
no modo como Cervantes uniu o erudito e o popular e, assim como Erasmo de
Roterdã em O Elogio da Loucura,
ridicularizou a erudição pedante. O burlesco, a paródia e a ironia estão de
volta, mas sob outro tipo de análise: a da arte de colocar em mesmo nível de
diálogo o fidalgo culto, Dom Quixote, e o analfabeto Sancho, o grande
iluminador do caminho de Dom Quixote, pois conhecemos figura do Quixote através
de Sancho.
Bakhtin com suas novas teorias sobre a
linguagem e a literatura nos traz sangue novo com as ideias acerca da
carnavalização, do riso e do grotesco, elementos encontrados na narrativa cervantina.
O Dom Quixote segue sempre como uma
nova faceta a se mostrar, amalgamando-se a cada tempo com sua incrível
capacidade de se comunicar com novos leitores. Seu personagem, enlouquecido
pela leitura, diverte, ensina e provoca.
* Edna da Silva Polese é professora de
Teoria e Estudos Literários do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário