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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

JUKEBOX VOL. I: SELEÇÃO, CONEXÃO E INTERAÇÃO NO TEATRO


 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs[1]

             
Em junho deste ano, a Companhia Vigor Mortis apresentou a peça Jukebox vol. I, no Teatro Universitário de Curitiba. Além do espetáculo, o diretor participou de uma conversa aberta ao público, sobre seu mais recente projeto. Paulo Biscaia Filho sempre costuma presentear o espectador com peças instigantes e de impacto. O terror e o suspense são marcas registradas da Companhia, que sempre faz uso da linguagem intermidiática em suas peças. A relação entre teatro e cinema levou para o palco o universo de Hitchcock. Nervo craniano zero investiu na linguagem tecnológica dos jogos. As HQs e a estética trash foram a base de Morgue story: sangue, baiacu e quadrinhos (que, aliás, já virou filme). Em Jukebox vol. I, foi a vez da música. Baseada nas composições de Nick Cave, cantor australiano líder da banda The Bad Seeds, a peça reforça características que já são típicas da Vigor Mortis. Das músicas, o espetáculo empresta o pessimismo, o tom soturno (demonstrado pelo culto à escuridão, pela voz grave e pelo ritmo lento) e a recorrência a temas como violência, morte e religiosidade. Nick Cave, normalmente associado ao rock alternativo e ao movimento pós-punk, exalta o lado obscuro do amor e tem composições que se encaixam perfeitamente ao horror das histórias de Jukebox vol. I (citem-se, como exemplos, a música I’m gonna kill that woman[2] e o cd Murder ballads).

Embora em Jukebox vol. I o diretor resgate elementos já conhecidos pelos fãs dos espetáculos anteriores da Vigor Mortis, a surpresa, agora, foi muito além da história e do uso de imagens projetadas no cenário. Dessa vez, o público teve a chance de acompanhar a peça em momento real, pela internet. Bastava acessar o site oficial da Companhia, no dia e na hora marcados para o espetáculo, e esperar o início da transmissão. A peça durava uma hora e foi encenada de quinta a domingo, no período de 06 a 23 de junho[3].

O projeto trouxe duas contribuições importantes para o teatro: a prevalência da arte, que se fez independentemente de lucro e bilheteria (mas não com menor público, já que o acesso pela internet deve ter atraído muitas pessoas, pela facilidade e comodidade e também pela curiosidade de experimentar assistir a uma peça on-line); e a dupla interatividade. Um dos lados desse processo permitia que o público se conectasse ao espetáculo, o que acabou alterando a dinâmica de ir ao teatro. A plateia era a sala de casa, com interferências específicas (que não a conversa do estranho na cadeira ao lado). A quem assistiu à peça pela internet a interrupção poderia ocorrer por culpa do telefone que talvez tocasse, do som da TV ou da atitude de algum familiar desavisado. Outro aspecto da interatividade relacionava-se à participação dos espectadores que aceitavam se tornar co-autores da história. Funcionava assim: na hora da compra do ingresso, o espectador optava por interferir ou não no espetáculo. Se a escolha fosse pela interferência, a pessoa, em dado momento, deveria ir até o palco e “acionar a juke-box” jogando um dado. Cada figura correspondia a uma história, que, quando sorteada, era encenada. Os desenhos à escolha do espectador aparecem no cartaz abaixo, que faz um convite (“Escolha sua música”), para explicitar a relação entre as interatividades da juke-box e da peça, o que justifica o título do espetáculo.

 



Cartaz da peça Jukebox vol. I. Disponível em: <https://www.google.com.br>

 

Dependiam, então, das escolhas dos espectadores o conteúdo e a ordem do espetáculo. Evidente que pedir a participação do espectador em uma peça de teatro não é novidade, mas o fato de o espetáculo ser acionado pelo espectador, como se um aparelho tivesse sido ligado ou um jogo tivesse sido iniciado, intensifica essa interação. Além disso, a multiplicidade e a rapidez da peça, formada por histórias curtas e com temas atuais, adaptaram-se perfeitamente ao perfil da realidade social contemporânea. Quando o espetáculo começava, um espectador já devia definir e acionar o primeiro esquete. A pessoa que selecionava, sentava-se em uma cadeira, em frente à juke-box, para assistir à história que sorteou. Apenas um ator (Kenni Rogers) representava vários papéis. Ele era o protagonista de todos os esquetes.

A primeira história correspondeu à figura de uma menina com pescoço cortado. Uma criança, Loreta, falou do enterro de um cachorrinho, cujo cadáver tinha sido encontrado à porta da escola, pingando sangue. O crime foi interpretado como uma atitude demoníaca e a menina terminou a narração espumando pela boca. Ao final dessa história, veio o agradecimento, que se repetia depois de encerrado cada esquete: “Obrigado por seu olhar.”

A imagem de bota, chapéu e arma correspondeu à história de um caubói decadente. Ele narrou cenas de violência e de um assassinato, contado a partir de flashbacks, que surgiram em forma de partes de um filme, projetadas ao fundo do cenário.

Com a terceira figura, a de um rosto partido, foram apresentadas imagens de uma mulher[4], Felícia, que foram sobrepostas à imagem do protagonista e narrador da história. Ele era médico, tinha duas filhas e, uma noite, quando saiu para atender um doente, sua mulher foi esfaqueada.

O sorteio de um sino trincado fez o protagonista representar um religioso. Projeções de letreiros luminosos de sex shop e imagens de uma mulher fazendo pole dance dividiram  a cena com o homem. Ele rezava para afastar de si a tentação, quando, de repente, surgiram imagens de uma prostituta morta, ensanguentada. Ouviram-se gritos agudos de mulher e a imagem da dançarina morta prevaleceu, enquanto a do homem se apagou, em um canto escuro do palco.

O quinto espectador selecionou a figura de asas radiografadas, o que fez surgirem imagens de trânsito noturno, projetadas sobre o homem. Choro e sussurro. Música alta, lenta e orquestrada. As imagens se repetiam e o rosto do homem acabou sumindo na escuridão.

O sexto esquete correspondeu ao desenho de uma mala e se iniciou com uma moça desembarcando em uma rodoviária. Ela queria ver o mar. Um homem realizou o desejo dela e depois a levou para um hotel. Quando chegaram ao quarto, ela, ingênua, quis dispensá-lo. Ele disse que foi embora e que, no dia seguinte, leu no jornal que ela foi encontrada amarrada na cama, amordaçada e com um tiro na cabeça. Em seguida, ele demonstrou intenso descontrole e apareceram flashes da mulher feliz, rindo, vendo o mar. Depois, surgiu a imagem da garota morta, com sangue na roupa branca. Choro e grito agudo. Toque de cantiga de ninar. Por fim, ele recomeçou a contar a história, em um ciclo obsessivo.

A história número sete, chamada de “faixa bônus”, foi escolhida pelo espectador que encontrou em exemplar de Vigor Mortis Comics sob a cadeira.[5] Nessa história final, correspondente ao desenho de uma mão, uma cantora gospel dividia a cena com um pastor e fiéis em uma igreja. Porém, a imagem foi pausada e deu lugar a outro contexto. Nele, a menina, em depoimento a um telejornal, narrava que o pastor foi ao quarto dela e declarou que ela tinha “espírito de lésbica” e que “precisava se tratar”. A moça disse que ele tapou a boca dela com “aquela mão”. A imagem do pastor, que sempre se alternava com a da moça, ressurgiu, em meio a gritos de “Aleluia”. A fala da moça voltou, para denunciar que o pastor ofereceu à vítima 200 reais, se ela ficasse quieta. A próxima cena já mostrava o pastor recolhendo o dinheiro doado pelos fiéis e ele dizia estar decepcionado, pois a “fé” de seus seguidores já tinha sido “mais forte”. Em outro momento, o homem falava sobre as denúncias apresentadas na TV. Na ocasião, ele discursou contra drogados, prostitutas e homossexuais. Comparando-se a Jesus, ele contou como “salvou” um irmão, que agora contribuía mensalmente com a igreja. No fim, o pastor chegou a afirmar que o Satanás devia temê-lo e a imagem dele foi consumida por labaredas. Fim.

Embora as histórias sejam curtas e independentes, elas se aproximam pela temática da violência. A relação de conflito com o outro também é uma constante. O primeiro esquete, do cão morto, destaca-se pelo exagero característico do estilo trash. Porém, os demais episódios, mesmo sem esse excesso, compõem o retrato do cotidiano social contemporâneo que repercute nos plantões policiais. Nesses casos, o exagero não está no tom sensacionalista que beira o artificialismo trash; está na overdose de criminalidade e crueldade, resultado do acaso ou da ação deliberada do outro.

 



[1] Professora e Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade-PR.
[2] A música faz parte do cd Kicking against the pricks.
[3] O espetáculo descrito e comentado neste texto foi transmitido no dia 22 de junho de 2013, às 20h30.
[4] Nas imagens projetadas durante o espetáculo (com as quais o protagonista contracenava) surgiram outros nomes que compunham o elenco da peça: Guenia Lemos, Uyara Torrente e Viviane Gazotto. (Cf. o site oficial da companhia: <http://www.vigormortis.com.br>).
[5] Inicialmente, foi divulgado que o espetáculo seria composto de 6 esquetes, escolhidos entre os oito disponíveis. Por essa razão a sétima história foi considerada um “bônus”.

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