Prof.ª
Mail Marques Azevedo
Fui procurada há
alguns dias pela equipe de TV da UFPR
em busca de respostas a algumas perguntas sobre o romance policial. A jovem
repórter, aluna do curso de jornalismo, fez perguntas e considerações
reveladoras de uma preocupação: a leitura de histórias policiais deve ser vista
como sinal de mau gosto literário, como se fosse um pecado cometido contra a
arte culta?
De fato, o romance policial é considerado
literatura de entretenimento, parte da cultura de massa, que se contrapõe à
cultura de proposta, na designação de Umberto Eco. Esta se distingue pelo
critério da originalidade e por nos oferecer uma visão de mundo singular e
inconfundível. Já a fruição de uma obra da cultura popular se esgota com a
leitura e não leva à reflexão.
Por outro lado, há muito a dizer em defesa do
gênero. Há intelectuais e escritores “sérios” que leem romances policiais ou
que se aventuraram no gênero. O critico marxista Ernest Mandel, por exemplo,
confessa que gosta de ler romances policiais. Antigamente achava que eram
simplesmente diversões escapistas: “enquanto os lemos não pesamos em outras
coisas; quando terminamos a leitura não pensamos mais neles e pronto”, diz ele.
O fato é que milhões de pessoas, em dezenas de países leem romance policial, o
que torna o grande sucesso do gênero literário um fenômeno social. Daí o
interesse de Mandel em fazer o estudo desse fenômeno, em Delicias do crime,uma história social do romance policial. Aos que
consideram frívolo para um marxista perder tempo analisando romances policiais,
Mandel oferece a explicaçãode que o materialismo histórico pode – e deve – se
concentrar em todos os fenômenos sociais, por mais irrelevantes que pareçam.
Grandes nomes da literatura mundial praticaram o gênero desde que Edgar
Allan Poe escreveu seus contos deraciocination
que estabelecem certos parâmetros para o que viria a ser a clássica história de
detetive, que ele define em “Os crimes da Rua Morgue” e “A carta roubada”. Consta
de quatro aspectos:
1. Situação. A clássica história de detetive tem início
com um crime não resolvido e se desenvolve rumo à solução do mistério.
2.
Modelo da ação. Na definição de Poe, o centro de interesse da
fórmula dos contos de raciocínio é a investigação e a solução do crime pelo
detetive.
3.
Personagens e relações. A história requer quatro papéis principais: a)
a vítima; b) o criminoso; c) o detetive; d) aqueles que são ameaçados pelo
crime, mas são incapazes de solucioná-lo.
Apesar dos meandros do enredo,
existe uma certeza: o criminoso será descoberto e o caso solucionado. Esta
certeza, que não corresponde ao que acontece no mundo factual, confere à
narrativa policial características fantásticas, segundo Eric Rabkin, que
concebe o fantástico como a subversão das regras básicas do mundo narrativo. Quanto
mais frequentes forem as subversões das expectativas do leitor tanto mais
fantástica se torna a narrativa.
Com efeito, algumas das melhores
histórias policiais são aquelas que subvertem as convenções do gênero. É o caso
do romance Agosto, de Rubem Fonseca,
considerado um dos melhores do autor, em que o detetive, neste caso um
comissário de polícia, é morto pelo assassino no desfecho da trama. É notável
nos círculos acadêmicos o caso do dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt
(1921-1990), autor de obras-primas do drama no século XX, que escreveu alguns
romances policiais de grande impacto. São romances policiais porque têm como
foco central a elucidação de um crime, mas fogem totalmente das fórmulas
mencionadas, designados pela crítica como “romances policiais paradoxais”. [*]
Osdez negrinhos de Agatha Christie,embora um clássico da
literatura policial, étambém um desvio do modelo tradicional da “narrativa de
enigma”, apontado por Todorov: 1) história um: a história do crime apresentada
ao leitor como fait accompli.; 2) história
dois: a busca pelo assassino, que estabelece uma ligação entre o leitor e o
processo de solução do crime. A informação é fornecida de maneira clara e
direta, permitindo ao leitor chegar a uma conclusão. O narrador – que não é o próprio
detetive – funciona como simples observador, alguém que relata acontecimentos,
cujo significado geralmente não entende.
Como é do conhecimento dos
iniciados, Os dez negrinhos é caso
único no cânone da “Rainha do Crime”: as mortes são anunciadas de antemão e
ocorrem na ordem e maneira indicadas pelas palavras de uma canção infantil. Não
há detetives e a solução dos crimes também é sui generis: o próprio assassino, uma das dez vítimas em potencial,
incomunicáveis em uma ilha, descreve detalhadamente motivos e ações, e coloca o
manuscrito em uma garrafa que joga no mar. A garrafa, evidentemente, é
encontrada pela polícia!!! Pelo menos neste ponto a história segue as regras:
tem de haver uma solução para o mistério, mesmo que improvável e inverossímil,
e que deve ser revelada em um momento dramático.
Em histórias de detetives
tradicionais, portanto, os problemas da vida são reduzidos a um único: um crime
foi cometido e deve ser solucionado. Uma vez solucionado, o problema desaparece
e a vida retoma o curso normal. À semelhança de narrativas fantásticas, que
subvertem as regras básicas do real, quer da realidade interna do texto ou da
realidade externa ao texto, a trama do romance policial acaba por restaurar a
ordem. Talvez seja essa a razão principal da popularidade continuada do gênero.
[*]
Ver no site da UFPR a dissertação de Ivan Sousa Rocha, intituladaA morte e o renascimento do romance
policial segundo Friedrich Durrenmatt.
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