Prof. Edna da Silva Polese
A obra Amar, verbo intransitivo foi publicada em 1927 reforça uma das
marcas mais recorrentes do autor. Além de focar o tema do amor, chamado por ele
de amor idílico, subtítulo da obra, destaca-se o experimentalismo com a própria
língua. É fato a presença de um português mais realista, se é que podemos
chamar assim, pois Mário de Andrade sempre acreditou nesse projeto da
literatura poder expressar-se de uma maneira mais solta, personificando a
língua viva e falada. Anos mais tarde, o que se percebe é essa tentativa de
Mário como necessária para dar novos rumos à literatura – proposta de toda a
geração de 1920. Alguns trechos do romance parecem exagerados nesse sentido de
se expressar como a língua viva. Mas essa marca era bastante consciente no autor.
Assim, em notas sobre essa e outras obras, ele mesmo comenta sobre essas
questões. As idas e vindas do texto para os editores mostram o cuidado que
Mário de Andrade tinha com a questão da língua. Não se supunha uma atitude
leviana, mas pensada em seus detalhes. No prefácio da edição da Nova Fronteira,
de 2013, Marlene Gomes Mendes resgata trechos de notas do próprio Mário de
Andrade tecendo comentários sobre a obra:
Desde que principiei abrasileirando a minha literatura, tomei
sempre tento nisso: se emprego termos, locuções, sintaxes de povo, não faço
fala de povo porém literatura, isto é, busco enobrecer na linguagem escrita os
monumentos populares. Carece não esquecer que entre linguagem falada e linguagem escrita vai um
abismo quase. É lógico que não basto eu para enobrecer modismos populares porém
muitos estão fazendo a mesma coisa. Daqui a 100 anos os nossos netos saberão o
que ficou corrente na língua brasileira. Edifico na areia sei bem. Porém as
ruínas de mistura com a areia vão fazer chão duro para edificações futuras. Não
faço arte. Minhas obras não passam de ações. (p. 11)
Mário de Andrade deixa claro que
seus textos correspondem a um projeto, uma postura diante da arte e da
literatura. Ao enfatizar que suas obras não passam de ações, o autor aponta
essa postura, de que não pretende escrever algo definitivo, nem obedecer às
regras de um romance. Assim, a leitura de Amar,
verbo intransitivo, apesar de mais leve, também cobra do leitor uma certa
esperteza, algo que é bem mais evidente com a leitura de Macunaíma, para
muitos, ainda, um tipo de texto estranho. As inúmeras pausas do autor, seja
para comentar sobre o próprio andamento da narrativa, seja para conversar com o
leitor, entre outras, revelam as marcas do romance pós-moderno em que as fronteiras
entre texto, autor e leitor ficam tênues. Há longos trechos no corpo do romance
em que Mário de Andrade comenta sobre a personagem principal: sua
personalidade, seus sonhos e desilusões. Comenta ainda sobre a maneira como
escolheu para montá-la, como se inspirou, como a percebe. Comenta ainda, com
ares de humor, qual a pretensão de leitores que terá: “Volto a afirmar que o
meu livro tem 50 leitores. Comigo 51.” Brinca ainda com a recepção do leitor,
pois, para cada um deles, se fixarmos o número 51, ter-se-ia, segundo Mário, 51
Elzas, 51 Fräuleins, 51 personagens diferentes, cada uma fruto da imaginação
particular de cada leitor. Toda essa ousadia, todo esse modo de narrar que
fugia do tradicional, marcam a obra de Mário de Andrade. A leitura soa estranha
ainda hoje.
Em carta a Manuel Bandeira, Mário
de Andrade sintetiza essa postura crítica de perceber toda a ação artística
como um projeto, uma forma de pensar como a literatura deveria expressar-se:
O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica,
teoria, psicologia e até romance: sou eu. E eu pesquisador. Pronomes oblíquos
começando a frase, ‘mandei ela’ e coisas assim, não na boca dos personagens,
mas na minha direta pena. Fugi do sistema português. Que me importa que o livro
seja falho? Meu destino não é ficar. Meu destino é lembrar que existem mais
coisas que as vistas e ouvidas por todos. Se conseguir que se escreva
brasileiro sem por isso ser caipira, mas sistematizando erros diários de
conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já
cumpri o meu destino. Que me importa ser louvado em 1985. O que eu quero é
viver a minha vida e ser louvado por mim nas noites antes de dormir. Daí:
Fräulein. Confesso-te que sou feliz.
O que se destaca é o Mário de
Andrade pesquisador, o intelectual
responsável por dar um novo rumo ao modo de expressão da língua. Daí a
tranqüilidade diante das “falhas” do livro, pois o que importa é o projeto, a
pesquisa. A postura anti-romântica sobre a eternidade também parece tranqüila,
apesar de não proceder. Mário de Andrade não foi esquecido. Sua forma de ver e
perceber a arte e a literatura brasileira ainda merece muitas visitas e
reflexões. Seu Macunaíma marca toda uma época e abriu as portas para a reflexão
sobre a arte e a cultura brasileira. Amar, verbo intransitivo ultrapassa o tema
do amor idílico e posiciona-se como uma obra que reflete o pesquisador por
detrás do romancista.
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