Profa. Sigrid Renaux
Em virtude de estar lecionando o curso “Teorias da
Poesia” para os mestrandos em Teoria Literária neste semestre, chamou-me a
atenção, recentemente, o livro Esse
ofício do Verso de Jorge Luis Borges (São Paulo: Editora Schwarcz, 2007). Entre as diversas obras deste grande
mestre argentino, o que esta apresenta de peculiar é que se trata de
palestras proferidas em inglês em
1967-68 para estudantes da Universidade
de Harvard, publicadas sob o título This
craft of verse (Harvard University
Press, 2000). O simples fato de um
escritor ser convidado para dar palestras em Harvard já seria o suficiente para
situá-lo entre os melhores da atualidade. No caso de Borges, na época com 68
anos e, portanto, no auge de sua carreira,
essas seis palestras – intituladas “O Enigma da Poesia”, “A metáfora”,
“O Narrar uma História”, “Música da Palavra e Tradução”, “Pensamento e poesia”
e “o Credo de um Poeta” – irão demonstrar não apenas sua imensa erudição mas simultaneamente a
abrangência dos assuntos apresentados,
aliados a uma linguagem clara e
acessível.
Concentrando-nos na segunda dessas palestras, “A
Metáfora”, ressaltamos, a seguir, algumas das considerações de Borges.
Partindo do
pressuposto que “as metáforas são feitas pelo encadeamento de duas coisas
diversas” Borges lança a pergunta: “por
que diabos os poetas pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar
as mesmas metáforas surradas quando há tantas combinações possíveis?” (30).
Borges cita então o poeta argentino Lugones
que afirma, em Lunario sentimental, “cada palavra é
uma metáfora morta”(p.31). Acrescenta Borges: “...acho que todos
sentimos a diferença entre metáforas mortas e vivas. Se pegarmos qualquer bom
dicionário etimológico (...) e se procurarmos uma palavra qualquer, na certa
encontraremos uma metáfora enfurnada em alguma parte”.(p.31)
Essa questão antiquíssima já está expressa em Aristóteles,
que, ao tratar da elocução poética, destaca o valor deste tropo:
Grande importância tem, pois, o uso discreto de cada uma das
mencionadas espécies de nomes, de nomes duplos e de palavras estrangeiras;
maior, todavia, é a do emprego das metáforas, porque tal se não aprende
nos demais, e revela portanto o engenho natural do poeta; com efeito,
bem saber descobrir as metáforas significa bem se aperceber das semelhanças”.
(Poética, XXII)
Ou seja, a percepção das semelhanças entre duas coisas, “transportando para uma coisa
o nome de outra”, é que revela a engenhosidade do poeta, algo que não se
aprende nos demais nomes. Também Longino já menciona as “metáforas
ousadas” como imprescindíveis para as emoções fortes e para o sublime
genuíno (Do sublime, XXXII),
mostrando, portanto, como a preocupação com conceituação e utilização da
metáfora atravessa os séculos.
Essa distinção que Borges faz entre metáforas mortas e
vivas é crucial para todos nós, pois, mesmo quando ele afirma que sentimos a diferença entre ambas,
acredito que a dificuldade de entender uma metáfora vem do fato de que,
acostumados a usar metáforas “mortas” – como “o sol se põe”, o que era realidade até se descobrir que a terra gira em
torno do sol, ou “a perna da mesa”, ambas
mostrando como a metáfora pode ser utilizada tanto na linguagem cotidiana
quanto na literária – não percebemos em profundidade a metáfora “como uma metáfora” (p.31), como um organismo vivo com sua
“virtualidade de leituras múltiplas” (Greimas/Courtés, p.274).
Os inúmeros
exemplos que Borges apresenta na conferência são de metáforas “que são sentidas como metáforas pelos
leitor” (p.31-32), desde “modelos surrados” (p.32) a modelos mais sofisticados e sutis. Entre
esses, a identificação de olhos e estrelas, mulheres e flores, tempo e rios,
vida e sonho, morte e sono, incêndio e batalhas (p. 41). O que realmente importa, como continua Borges,
“é que há uns poucos modelos, mas que são capazes de variações quase infindas”
(p.41), ou seja, mesmo dentre os modelos
apresentados por Borges, ainda podemos criar novas metáforas, nas quais
a identificação entre as duas “coisas” continua a fascinar poetas e leitores.
Borges cita, como último exemplo, a linha “She walks
in beauty, like the night” (ela anda em beleza, como a noite), de Byron.
Segundo Borges, “o verso é tão perfeito que não lhe damos valor”. Ele
apresenta, em seguir, a “complexidade oculta e secreta do verso”, pois “dentro dessas palavras bem simples,
temos uma dupla metáfora: uma mulher é ligada à noite, mas a noite é ligada à
mulher”, ou seja, uma adorável mulher é ligada à noite e, simultaneamente, a noite também é como uma mulher (p.48). Este
exemplo mostra claramente como costumamos tratar superficialmente as
metáforas, prendendo-nos apenas à
primeira semelhança, sem nos dar o tempo de ir adiante, em nossa investigação
da metáfora como uma “virtualidade de leituras múltiplas”.
Borges conclui esta conferência confirmando primeiro
que, mesmo existindo milhares de metáforas que “podem ser reconduzidas a uns
poucos modelos simples”, não precisamos nos preocupar, pois “toda vez que o modelo
é usado, as variações são diferentes”. Sua segunda conclusão é que “ há
metáforas – por exemplo, “teia de homens” ou caminho da baleia” [explicadas na
conferência] – que não podem ser reconduzidas a modelos definidos.” (p.49)
Sua afirmação final “talvez ainda nos seja dado
inventar metáforas que não façam parte, ou que ainda não façam parte, dos
modelos aceitos” (p.49), nos leva a acreditar como a criação de uma nova
metáfora, por parte do poeta, nos faz ver novamente as possibilidades infinitas
das palavras – a partir do uso no dicionário – escondidas, trazidas à tona e
recriadas pelo poder do poeta, como criador de metáforas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário