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segunda-feira, 16 de junho de 2014

O ato da leitura e suas provocações

Prof. Edna da Silva Polese
     
A relação entre homens e livros sempre  continua povoando nosso imaginário. Ler, durante muito tempo, foi privilégio de poucos e o saber associado ao sagrado, também relacionado à idéia de que alguns privilegiados poderiam deter ou divulgar o conhecimento.  O ato da leitura é uma terminologia bastante atual, mas é possível encontrar ecos de outras vozes que não estavam por aqui no contexto da chamada teoria da recepção. Schopenhauer já demonstrava algumas questões sobre o caso no capítulo intitulado ‘Sobre Livros e Leitura’, da obra Parerga und Paralipomena (1851).  O pensador registra idéias sobre livros, o momento da leitura, a necessidade do ler e entre outras coisas passa ao leitor imagens interessantes sobre esse momento: “Durante a leitura nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios”. Mais adiante, aponta o caminho para o próximo passo: pensar. O caminho sugerido por Schopenhauer aproveita a idéia da seleção necessária que o cérebro faz, de que não é preciso lembrar, reter tudo: “Se lemos continuamente sem pensar depois no que foi lido, a coisa não se enraíza e a maioria se perde”.
Se tivéssemos a capacidade de lembrar absolutamente tudo que foi lido, assim como tudo que foi vivenciado, não nos sobraria muito tempo para pensar. Seríamos condenados, como Funes, o triste personagem de Borges, a rememorar todos os acontecimentos minuciosamente e ficarmos preso a um labirinto desconexo de conhecimentos desarticulados. Pensar, de acordo com o mesmo conto de Borges, é esquecer diferenças, generalizar, abstrair. É o passo seguinte da leitura, da seleção que o ato da leitura provoca, da capacidade de captar o objeto de leitura, mas também comparar, aproximar e afastar de algum conhecimento anterior para que haja daí uma transformação.
Mas isso não é Borges que nos diz. Já faz parte da teoria da estética da recepção concebida por Jauss e Iser na década 1960. Se Iser (O Ato da Leitura: uma Teoria do Efeito Estético, 1999) trabalhou a questão do efeito da leitura produzido sobre o leitor individual, Jauss (A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção,1979)  mostrou o rumo da resposta do público no nível de suas expectativas coletivas. Gumbrecht, embasado na teoria terminológica das ciências, apresenta um próximo passo para a questão do efeito da leitura. Propõe a teoria da ação no capítulo intitulado ‘Sobre os Interesses Cognitivos, Terminologia Básica e Métodos de uma Ciência da Literatura Fundada na Teoria da Ação’(A Literatura e o Leitor) e apresenta um método tríplice. O primeiro movimento é  a construção do  autor (a obra), o segundo movimento apresenta a figura do leitor ( é o ato da leitura em si) e, por fim, a reconstrução, ou seja, a apresentação de uma hipótese sobre o texto lido. É a leitura da leitura. Nesse momento, o leitor já ultrapassou o que Gumbrecht chama de expectativa da expectativa. É interação provocada pela situação comunicacional entre obra e leitor.
Quem nos oferece uma boa imagem para representar tal idéia é Paul Ricoeur. A obra Tempo e Narrativa apresenta, assim como Gumbrecht, o triplo movimento  para a transformação do ato da leitura. É chamado de tríplice mimese. A mimese I representa a composição da intriga, está enraizada numa pré-compreensão do mundo e da ação. A mimese II é o reino do “como se” ou da ficção, da obra. É a tessitura da intriga através das disposições: o que se tem do mundo real que será articulado no texto. A mimese III marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor. A princípio tal raciocínio oferece um caráter de circularidade, mas Paul Ricoeur chama a atenção para o uso do vocábulo progressão a fim de apresentar a idéia de continuidade: uma leitura nunca será igual à outra, assim como o aproveitamento dessa leitura dependerá do tempo histórico do sujeito que está diante da obra escrita.
De certa forma, voltamos às idéias de Schopenhauer que sugere, entre outras coisas, que ao comprarmos livros deveríamos comprar também o tempo. Complementa observando que: “Todo livro minimamente importante deveria ser lido de imediato duas vezes,(...) em parte porque, para todos os efeitos, na segunda vez abordamos cada passagem com um ânimo e estado de espírito diferentes do que tínhamos na primeira, o que resulta em uma impressão diferente e é como se olhássemos um objeto sob uma outra luz”. A nova luz, o novo efeito, que está carregado com todo o histórico particular que cada leitor possui, promove, assim, o efeito circular e progressivo provocado pela leitura. Tirando as terminologias científicas e acadêmicas, o ato da leitura provoca o leitor para novas dúvidas, para supostas respostas, mas não para o conformismo, como se ali estivesse todo o cerne do conhecimento humano. Essa inquietude provocada pela leitura talvez seja o que mais de interessante nos apresente a teoria da recepção.

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