Prof. Edna da Silva Polese
A relação entre homens e livros sempre continua povoando nosso imaginário. Ler,
durante muito tempo, foi privilégio de poucos e o saber associado ao sagrado,
também relacionado à idéia de que alguns privilegiados poderiam deter ou
divulgar o conhecimento. O ato da
leitura é uma terminologia bastante atual, mas é possível encontrar ecos de
outras vozes que não estavam por aqui no contexto da chamada teoria da
recepção. Schopenhauer já demonstrava algumas questões sobre o caso no capítulo
intitulado ‘Sobre Livros e Leitura’, da obra Parerga und Paralipomena
(1851). O pensador registra idéias sobre
livros, o momento da leitura, a necessidade do ler e entre outras coisas passa
ao leitor imagens interessantes sobre esse momento: “Durante a leitura nossa
cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios”. Mais adiante,
aponta o caminho para o próximo passo: pensar. O caminho sugerido por
Schopenhauer aproveita a idéia da seleção necessária que o cérebro faz, de que
não é preciso lembrar, reter tudo: “Se lemos continuamente sem pensar depois no
que foi lido, a coisa não se enraíza e a maioria se perde”.
Se tivéssemos a
capacidade de lembrar absolutamente tudo que foi lido, assim como tudo que foi
vivenciado, não nos sobraria muito tempo para pensar. Seríamos condenados, como
Funes, o triste personagem de Borges, a rememorar todos os acontecimentos
minuciosamente e ficarmos preso a um labirinto desconexo de conhecimentos
desarticulados. Pensar, de acordo com o mesmo conto de Borges, é esquecer
diferenças, generalizar, abstrair. É o passo seguinte da leitura, da seleção
que o ato da leitura provoca, da capacidade de captar o objeto de leitura, mas
também comparar, aproximar e afastar de algum conhecimento anterior para que
haja daí uma transformação.
Mas isso não é Borges
que nos diz. Já faz parte da teoria da estética da recepção concebida por Jauss
e Iser na década 1960. Se Iser (O Ato da Leitura: uma Teoria do Efeito
Estético, 1999) trabalhou a questão do efeito da leitura produzido sobre o
leitor individual, Jauss (A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da
Recepção,1979) mostrou o rumo da
resposta do público no nível de suas expectativas coletivas. Gumbrecht,
embasado na teoria terminológica das ciências, apresenta um próximo passo para
a questão do efeito da leitura. Propõe a teoria da ação no capítulo intitulado
‘Sobre os Interesses Cognitivos, Terminologia Básica e Métodos de uma Ciência
da Literatura Fundada na Teoria da Ação’(A Literatura e o Leitor) e
apresenta um método tríplice. O primeiro movimento é a construção do autor (a obra), o segundo movimento apresenta
a figura do leitor ( é o ato da leitura em si) e, por fim, a reconstrução, ou
seja, a apresentação de uma hipótese sobre o texto lido. É a leitura da
leitura. Nesse momento, o leitor já ultrapassou o que Gumbrecht chama de
expectativa da expectativa. É interação provocada pela situação comunicacional
entre obra e leitor.
Quem nos oferece uma boa
imagem para representar tal idéia é Paul Ricoeur. A obra Tempo e Narrativa
apresenta, assim como Gumbrecht, o triplo movimento para a transformação do ato da leitura. É
chamado de tríplice mimese. A mimese I representa a composição da intriga, está
enraizada numa pré-compreensão do mundo e da ação. A mimese II é o reino do
“como se” ou da ficção, da obra. É a tessitura da intriga através das
disposições: o que se tem do mundo real que será articulado no texto. A mimese
III marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do
leitor. A princípio tal raciocínio oferece um caráter de circularidade, mas
Paul Ricoeur chama a atenção para o uso do vocábulo progressão a fim de
apresentar a idéia de continuidade: uma leitura nunca será igual à outra, assim
como o aproveitamento dessa leitura dependerá do tempo histórico do sujeito que
está diante da obra escrita.
De certa forma, voltamos
às idéias de Schopenhauer que sugere, entre outras coisas, que ao comprarmos
livros deveríamos comprar também o tempo. Complementa observando que: “Todo
livro minimamente importante deveria ser lido de imediato duas vezes,(...) em
parte porque, para todos os efeitos, na segunda vez abordamos cada passagem com
um ânimo e estado de espírito diferentes do que tínhamos na primeira, o que
resulta em uma impressão diferente e é como se olhássemos um objeto sob uma
outra luz”. A nova luz, o novo efeito, que está carregado com todo o histórico
particular que cada leitor possui, promove, assim, o efeito circular e
progressivo provocado pela leitura. Tirando as terminologias científicas e
acadêmicas, o ato da leitura provoca o leitor para novas dúvidas, para supostas
respostas, mas não para o conformismo, como se ali estivesse todo o cerne do conhecimento
humano. Essa inquietude provocada pela leitura talvez seja o que mais de
interessante nos apresente a teoria da recepção.
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