UMA CONFISSÃO ABSURDA: MISTÉRIO, LOUCURA E
MORTE EM A CONFISSÃO DE LÚCIO, DE
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
Greicy
Pinto Bellin
Em 26 de abril
de 1916, às 20 horas em ponto, José Araújo encontra o poeta e ficcionista
português Mário de Sá-Carneiro deitado em sua cama no bairro de Montmartre,
Paris. Ao perguntar se ele estava com dor de cabeça, recebe como resposta que
ele havia acabado de tomar cinco frascos de estricnina e que estava, portanto,
aguardando sua própria morte. Araújo se desespera diante da terrível revelação
e sai em desabalada carreira a fim de procurar um médico. Ao retornar ao quarto
com dois enfermeiros, presencia a cena mais horrível de toda a sua vida. Em
cima da cama, Sá-Carneiro agonizava, todo contorcido, as mãos enclavinhadas,
caminhando rumo à morte inexorável apenas vinte minutos após a chegada do
amigo.
Crédito
da imagem: https://www.amazon.com.br
A cena seria
relatada pelo próprio Araújo em carta a Fernando Pessoa, outro grande amigo de
Mário de Sá-Carneiro, que decretou o final de sua existência com apenas 26 anos
de idade. Grande expoente do Modernismo português, mais especificamente da
Geração de Orfeu, à qual Pessoa também estava relacionado, Sá-Carneiro nasceu
no seio de uma família abastada e ficou órfão de mãe muito cedo. Estudou em
Coimbra e depois na Sorbonne, onde passou a levar uma vida boêmia regada à
angústia característica de quem tem a alma dilacerada, estado este que se
refletiu em sua obra, mais especificamente em A confissão de Lúcio, publicada em 1914. O escritor traz, nesta
novela, os principais temas que o acompanharam em vida, juntamente com a
perturbação de alma manifesta no estabelecimento da triangulação que consistirá
no mote central da narrativa. Esta se inicia com Lúcio alegando inocência
diante do crime pelo qual fora mantido na prisão por dez anos, juntamente com
uma reflexão sobre o estatuto da ficção, o que ganhará pleno sentido quando
descobrirmos que Lúcio é dramaturgo e que seu amigo Ricardo de Loureiro é
ficcionista. O introito se apresenta como a antessala a partir da qual se
descortinará, diante dos olhos do leitor, uma narrativa fantástica de horror,
mistério, psicose e morte, em que se destaca o corpo da mulher como veículo
para a realização de perversões sexuais, em verdadeiros rituais que trazem não
apenas as obsessões dos personagens, mas os dilemas de artistas em permanente
conflito com seus próprios desejos.
A narrativa se
caracteriza por uma atmosfera onírica em que o nível de alucinação vai se
intensificando e impactando o corpo e afetos do leitor, que se sente cada vez
mais angustiado diante das intensas sensações experimentadas por Lúcio diante
de seu envolvimento com Marta, esposa de Ricardo. Os momentos finais do relato
de Lúcio caracterizam-se pela crescente sensação de dissociação de uma
personalidade que se encaminha para uma trágica totalidade por meio do desfecho
trágico em que descobrimos que Ricardo e Marta eram, ao fim e ao cabo, a mesma
pessoa: “Quem jazia estiraçado junto da janela não era Marta - não! - era o meu
amigo, era Ricardo… E aos meus pés caíra o seu revólver ainda fumegante!”
Percebe-se, linha a linha, uma forte semelhança com O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, mais especificamente no que diz respeito ao culto da beleza masculina, e na percepção da figura feminina como objeto e acessório a serviço não apenas da materialização de desejos inconfessados, mas dos dilemas experimentados pelos próprios artistas diante de sua condição. Foi por meio do retrato da bizarra triangulação entre uma misteriosa mulher e dois artistas que Mário de Sá-Carneiro, dentro da atmosfera decadentista que permeava a produção literária europeia em princípios do século XX, conseguiu dar vazão às inquietações da alma dilacerada pela constante sensação de inadequação que o levou, dois anos depois da publicação de A confissão de Lúcio, a optar pelo triste suicídio assistido por José Araújo em uma melancólica noite parisiense.
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Greicy Pinto Bellin é professora do PPG da UNIANDRADE. É pós-doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas e pela UFPR. Doutora e mestre em Estudos Literários também pela UFPR, assim como graduada em Letras pela mesma instituição. Além de professora titular do programa de Pós Graduação em Teoria Literária da UNIANDRADE também é tradutora e autora.
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