Verônica Daniel Kobs*
Uma das músicas mais longas do rock
nacional virou filme. Faroeste caboclo,
escrita por Renato Russo, na década de 1970, e lançada em 1987, pela Legião urbana, no disco Que país é
este 1978/1987, foi o ponto de
partida para o roteiro do longa Faroeste
caboclo. O filme brasileiro foi lançado em maio de 2013, com roteiro de Marcos
Bernstein e Victor Atherino; direção de René Sampaio; e atuações de Fabrício
Boliveira (João), Ísis Valverde (Maria Lúcia), Felipe Abib (Jeremias) e César
Troncoso (Pablo).
João e Maria Lúcia, “com a Winchester 22”, e Jeremias,
no filme Faroeste caboclo**
O desafio era adaptar para as telas a
história da música de Renato Russo, conhecida pela sua extensão (são 160 versos
cantados em nove minutos e três segundos de música), pela estrutura peculiar
(apesar do tamanho, a música não tem refrão) e pelo enredo denso e trágico. Deu
certo. Com cortes, inversões e acréscimos comuns a qualquer adaptação, o filme cria
um clima de suspense que se mantém do início ao fim, mesmo com o desfecho trágico
já anunciado pela letra da música. É certo que os fãs de Renato Russo e da Legião urbana esperavam reconhecer, na
tela, traços da música que conta a história de João de Santo Cristo e Maria
Lúcia. Pois está quase tudo lá (e, nesta parte, o spoiler é necessário): o passado de criminalidade de João e o desejo
de vingança pela morte do pai; a plantação de maconha, em sociedade com Pablo;
“a violência e o estupro”; “o senhor de alta classe com dinheiro na mão”; o
amor por Maria Lúcia; e a rixa com Jeremias. A única ausência é a do boiadeiro,
que “tinha uma passagem e ia perder a viagem/ Mas João foi lhe salvar” (LEGIÃO, 1987). Na
música, o encontro dos dois é o que desencadeia a ida de Santo Cristo para
Brasília, mas, no filme, houve motivos de sobra para o corte. O principal deles
foi a condensação da história, que ficou com menos deslocamento e menos
personagens, o que rendeu pontos no adensamento da trama.
No filme, pouca coisa não fazia parte
da letra. Porém, o roteiro apresenta algumas modificações, todas adequadas e
bastante pertinentes. O “senhor de alta classe”,
no filme, corresponde ao senador, pai de Maria Lúcia, que oferece dinheiro a
João, para tentar afastá-lo da filha. Além disso, no filme, João é surrado e
violentado pela turma de Jeremias. Essas alterações são fundamentais, pois
ampliam o triângulo amoroso entre João, Maria Lúcia e Jeremias, acirram a
disputa entre os dois rivais e conferem mais unidade à história, porque fatos
que, na música, apareciam isolados, no filme são relacionados aos personagens
principais.
A ordem dos acontecimentos da história
contada na música Faroeste caboclo também
sofreu adaptações. No longa, Santo Cristo conhece Maria Lúcia logo no início,
antes de começar a cultivar maconha, antes de sofrer violência sexual e também
antes de se tornar um “bandido/ Destemido e temido no Distrito Federal” (LEGIÃO, 1987). A
justificativa para isso é bastante plausível. Não só Maria Lúcia aparece, no
filme, desde o início, mas também Jeremias. Ele sempre desejou a garota e
controlava o tráfico da região. Com a chegada de João, ele perde a chance de
conquistar a mulher que ama e perde poder e dinheiro, já que a droga oferecida
por Pablo e Santo Cristo era de melhor qualidade. Aliás, esses dois motivos
detonam todos os conflitos entre os personagens e ganharam como suporte uma espécie
de “continuidade” dada pelos roteiristas à música de Renato Russo. Como música
e cinema se opõem, no que se refere ao que é abstrato e concreto, o filme
precisava preencher o espaço daquilo que não foi dito no texto. Na música,
depois de um embate com o rival, João fica um tempo longe de casa e, quando
volta, descobre Maria Lúcia casada com Jeremias e grávida. No filme, a ausência
de Santo Cristo e até mesmo o casamento inusitado são explicados: João foi
preso a mando de Jeremias,
sofre violência constante na cadeia e, por isso, Maria Lúcia faz um acordo com
Jeremias — o casamento em troca da segurança e da vida de João.
Passando agora para elementos
extra-textuais, o
faroeste da década de 1970 está na música e também no filme e focaliza momentos
decisivos, marcas da revolução da época, no país e em Brasília, principalmente,
como as festas punk e a “Roconha”.
Revolução e liberdade dão o tom para a rebeldia, a corrupção, a diferença de
classes e a luta pelo poder, no tráfico. Aliás, essas características são
próprias do faroeste, gênero baseado no western americano, pelos significados inerentes a esse tipo de filme: “conquista
de poder e de território” e, segundo Glauber Rocha, também “transformação” e a
representação da “marcha da civilização” (ROCHA, 2011). A reedição da música de
Renato Russo hoje, em forma de filme, adapta-se perfeitamente ao contexto
contemporâneo. Nossa época é marcada pelo crescimento da violência e da
criminalidade, que reforçam e refletem o individualismo e os duelos diários
para resolver todo e qualquer tipo de conflito. Por isso, a história contada na
música Faroeste caboclo serve de
alegoria aos conflitos experimentados e redivivos, em plena era da
globalização.
Faroeste
caboclo
(2013) exacerba a disputa de classe e de cor que fazia parte dos versos de
Renato Russo: “Não entendia como a vida funcionava / Discriminação por causa da sua
classe e sua cor” (LEGIÃO, 1987). Isso ocorre, pelas reações que a relação
entre Maria Lúcia e João de Santo Cristo provoca em Jeremias e no senador
(personagem de Marcos Paulo, pai de Maria Lúcia). Além disso, os duelos entre
João e Jeremias são vários (em festas, encontros casuais, na “Roconha” e no
final da história). A violência das cenas que opõem João de Santo Cristo e
Jeremias é espetacular. Inversamente, os cenários e o figurino são simples, justamente
para não ofuscarem o tom do filme e os conflitos que ele apresenta. A escolha
de contrabalançar as coisas é perfeita, sinal de que Faroeste caboclo é mais conteúdo do que ritmo; mais ideologia do
que forma.
No que diz respeito aos grandes duelos
do filme, o primeiro, realizado na “Roconha”, impressiona pela artimanha de
Jeremias, pelo suspense e pela grandiosidade das cenas. Jeremias faz João saber
do evento e o rival resolve aparecer. Chegando lá, Santo Cristo atrai Jeremias
para a mata e o surpreende com um grupo armado, comandado por Pablo. Mas a
maior surpresa estava por vir: Jeremias também mostra que veio armado e chama
seu bando, liderado por seu amigo, um policial corrupto (personagem de Antônio
Calloni). Com os dois inimigos frente a frente, o faroeste (um épico urbano) se
concretiza.
No duelo final, o que impressiona é a
atitude desmedida dos personagens: João marca o encontro, escrevendo o endereço
na mesinha da sala de Jeremias, com a cocaína que roubou do rival; Maria Lúcia
vai até lá, levando a Winchester 22, para tentar impedir o pior; e Jeremias
atira não só no inimigo, mas também em sua mulher, grávida.
Cena do duelo final, no filme Faroeste caboclo**
No filme, o final trágico e sangrento
faz jus à história da música, mas sem a plateia imaginada por Renato Russo: “Sentindo o sangue na
garganta,/ João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir/ E olhou pro
sorveteiro e pras câmeras e / A gente da TV que filmava tudo ali” (LEGIÃO,
1987). No duelo do filme, os
espectadores são o próprio público, que se impressiona com a ação violenta, com
as mortes e com os motivos da tragédia. O espetáculo da letra da música (“— Se
a via-crucis virou circo, estou aqui” (LEGIÃO, 1987)) se fez de outra forma,
nas salas de cinema, quando a música de Renato Russo de abstrata se fez
concreta.
*Doutora em Letras e Professora de Imagem e Literatura do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade – PR
** Imagens disponíveis em: www.google.com.br
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