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terça-feira, 25 de março de 2014


O ESPETÁCULO DOS MORTOS-VIVOS

Verônica Daniel Kobs*

 

A Zombie Walk já é uma tradição em Curitiba. No domingo de Carnaval, várias pessoas se reúnem para a caminhada que é uma verdadeira celebração da estética do macabro. Grupos de amigos, famílias inteiras, pais com filhos pequenos chegam para a festa simulando um olho roxo, um corte profundo na cabeça, sangramentos causados por golpes de faca, feridas, ossos expostos, peles se desgrudando, cortes no pescoço e nos pulsos... A “brincadeira” é inusitada, claro, mas passa a exigir mais atenção quando essa representação da morte em vida torna-se uma constante na sociedade. Não estamos falando apenas de zumbis. Vampiros também contam, afinal, eles saem de seus túmulos à noite para sugar o sangue dos vivos. Por isso eles são como os zumbis, o que torna o panorama atual ainda mais instigante.

É mesmo impossível não relacionar a marcha dos zumbis à invasão macabra provocada pela estética New Weird. Começamos a lista citando o perfil lânguido e romântico do vampiro da saga Crepúsculo. Aliás, no cinema, até Abraham Lincoln transformou-se em caçador de vampiros. Na literatura, lembramos os livros que fazem releituras “mórbidas” (no bom sentido) de verdadeiros clássicos: A escrava Isaura e o vampiro, de Jovane Nunes; Memórias desmortas de Brás Cubas, de Pedro Vieira; e Orgulho e preconceito e zumbis, de Seth Grahame-Smith. Na TV, o destaque vai para as séries The walking dead (que, no Brasil, já está na quarta temporada) e True blood. Na moda, as caveiras foram as primeiras a receberem destaque: estampas reluzentes em camisetas, anéis, brincos, lenços... Mas é só passear por alguns sites de moda para ver outras surpresas, como sapatilhas inspiradas em zumbis ou estampas que imitam cortes, cicatrizes e hemorragias. Inclusive, este ano, na Semana de Moda de Nova Iorque, a grife de Marc Jacobs levou zumbis para a passarela, para encerrar o desfile.

Sapatilhas da marca Sugoi
Imagem disponível em: http://www.criadesignblog.com/tag/halloween
 
Até no Carnaval de Curitiba os zumbis foram campeões. A escola Mocidade Azul foi a vencedora, depois de levar para a avenida bruxas, mortos-vivos e fantasmas. Em matéria intitulada Mocidade “aterrorizou” e é campeã do carnaval de Curitiba, Amanda Audi, Diego Antonelli e Diego Ribeiro citam a letra do samba-enredo que embalou o desfile da escola: “Bruxa ao invés de princesa / Fantasma ou bicho / Posso ser o que quiser / Zumbi, vampiro ou dragão / (...) Eu vou botar fogo no mato / Atirar o pau no gato / Torcer pelo lobo mau / Pichar seu muro / Deixar tudo no escuro / Lutar por meu ideal / Exorcizando a tristeza / Pois em tudo há beleza / De cara feia eu vou fazer bonito / Irreverente é minha natureza / (...) Lá vem meu povo brincando de ser malvado / Num delírio sem igual / Veja o lado bom do mau / É a Mocidade infernizando o carnaval” (AUDI; ANTONELLI; RIBEIRO, 2014).
Para terminar a lista, nada melhor do que mencionar como a estética do macabro hoje está influenciando também as crianças. Refiro-me ao fenômeno Monster High. As bonecas têm um novo padrão. São monstras, embora também sejam inteligentes, descoladas e sedutoras. Evidente que obedecendo a um novo paradigma, o mercado lança novos tipos de brinquedos e também influencia o comportamento das meninas, que hoje têm de ter boa dose de humor negro para colocar a boneca para dormir em um caixão, para vesti-la de preto ou de roxo e para ser fã de personagens com perfis tão terríveis. Por exemplo, uma das garotas Monster High, Elissabat (cujo nome, aliás, já denuncia seu lado morcego), tem predileção por comer “laranjas sangrentas” (MONSTER HIGH, 2014).

Garotas Monster High
Imagem disponível em:  http://jogos.meusjogosdemeninas.uol.com.br/_arquivos/jogosonline/imgs/vestir-todas-as-monster-high_5674c5981c230dd7eea6179e30594d27.jpg
 
Certo, mas essa lista foi apenas para comprovar que os zumbis são criaturas extremamente contemporâneas. Resta-nos, agora, formular algumas hipóteses para tentar explicar essa constatação. A primeira delas (e talvez também a mais óbvia) diz respeito ao Carnaval. Não é simples coincidência o fato de a marcha dos zumbis ser realizada todos os anos, em Curitiba, justamente nesse período.  O próprio termo “carnavalização” nos dá uma dica importante, pois sugere inversão e subversão da ordem. Além do mais, a simples ideia de vestir uma fantasia serve de recurso para essa transformação total, em que os vivos tentam parecer mortos e uma festa da alegria vira palco de cenas trágicas e sangrentas. Outra hipótese é que o evento serve como uma forma segura de lidar com nossos medos. Em uma sociedade cada vez mais violenta e insegura, vivemos tentando evitar todo tipo de perigo. Podemos, então, pensar que nos aproximando do que tememos podemos tentar lidar melhor com a situação. Aliás, esse antagonismo também combina com o Carnaval e com o fato de sermos brasileiros (porque, no mundo todo, somos conhecidos como o povo que ri e faz piada dos próprios problemas). 
Pensando bem, a compreensão do fenômeno Zombie Walk pode estar até mesmo no tabu da morte e da vida após a morte. Os zumbis, todos sabem, são mortos-vivos e essa característica torna possível que alguém experimente golpes cruéis, seja dado como morto, mas continue bem vivo, ainda que se arrastando e balbuciando coisas que os outros não entendem. Experimentar a violência, a morte e sair “ileso” é tentar forjar a descoberta de um dos grandes mistérios do mundo: Há, afinal, vida após a morte? Alguns podem até pensar: “E tem graça brincar com uma coisa dessas?” Justamente. Achar graça na morte, nas cenas bizarras e violentas de crimes hediondos, ou nas ataduras e maquiagens de efeito fake e grotesco, de zumbis também falsos, é uma necessidade contemporânea. É preciso esquecer o peso das coisas: da realidade, do medo de morrer, da insegurança, do horror que os telejornais mostram todos os dias...  Nesse sentido, o evento serve ao escapismo. Nada melhor que a fantasia para tentar fugir da realidade. Conforme notícia publicada pela Globo, em 2013, uma pesquisadora norte-americana chegou a relacionar a marcha dos zumbis (que iniciou em Toronto, no ano de 2003) à infelicidade social: É uma alegoria óbvia. Sentimos que, de certa maneira, estamos mortos” (GLOBO, 2014). No mesmo texto, é enfatizada a abrangência desse fenômeno mundial: “Desde 2012, caminhadas de zumbis já foram documentadas em 20 países, segundo a pesquisadora. O maior dos encontros reuniu 4 mil participantes no New Jersey Zombie Walk, no Parque Asbury, em Nova Jersey, em outubro de 2010, segundo o Guinness, o Livro dos Recordes” (GLOBO, 2014).
Desde a Antiguidade Clássica as tragédias cumprem uma função catártica, permitindo a purgação dos pecados, a purificação da alma e o alívio de nossos medos mais terríveis e profundos. Outro dado importante que tem de ser levado em conta, embora não seja uma unanimidade, é o gosto pelo medo e pelas situações de horror. Há aqueles que sentem prazer e que se divertem com as representações grotescas da Zombie Walk. Fãs da estética trash, essas pessoas veem as cenas de horror como uma espécie de universo suprarreal, que metaforiza e exagera a realidade pela forma e pela aparência. De fato, o medo é algo relativo, assim como tantos outros conceitos abstratos, todos eles difusos e subjetivos. 
Por fim, não podemos deixar de mencionar o gosto pela vida alheia e pelo espetáculo, característica inerente ao ser humano. Quem aí já não parou para ver um acidente, um corpo estendido no chão, nem se interessou por detalhes mórbidos de alguma tragédia? Isso parece ter ganhado mais força agora, com a globalização impulsionando (de modo absolutamente paradoxal!) as inter-relações (ainda que virtuais e artificiais) e o individualismo ao mesmo tempo. Facebook e Big Brother ajudam a comprovar essa tendência. Por falar em globalização e individualismo, nunca é demais retomar as ideias de Zygmunt Bauman, para quem o global interfere negativamente no conceito de “comunidade”, promovendo a individualidade em detrimento da consciência de grupo. Com base na atração das pessoas pelo espetáculo, podemos alinhavar e relacionar algumas das hipóteses mencionadas neste texto. A hipótese da infelicidade e da morte aparente da sociedade, defendida pela estudiosa norte-americana Sarah Lauro, é a primeira a ser retomada, pois “a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014). É também em Debord que encontramos base para conceituar a Zombie Walk como espetáculo, porque, segundo o autor, “onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014).
Destaques da Zombie Walk 2014 em  Curitiba
Imagens disponíveis em: http://www.gazetadopovo.com.br/midia/tn_620_600_zombie_7.jpg e http://s2.glbimg.com/aju_pJjsWotFOafKlr6h0POj1wLOFtz-r0Ou1T4VylMHihGIzr2bD5SeiZNVqLMq/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2013/02/10/img_1005_.jpg
 
Portanto, parece evidente que, assim como estamos refletindo agora sobre a razão da invasão dos zumbis (e de tudo mais que faz parte do estilo New Weird) em nossa cultura, os falsos zumbis, ainda que inconscientemente, refletem e analisam a atual realidade, já que todo espetáculo “não realiza a filosofia”, mas “filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014). Essa degradação já foi anunciada há tempos, por Bauman, também por outros autores que escrevem sobre identidade cultural e para Guy Debord é graças a ela que, em pleno século XXI, voltou a prevalecer nossa ancestral fascinação pelo espetáculo: “A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda (...). O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado(DEBORD, citado em GUEDES, 2014). A julgar por esses apontamentos, podemos afirmar que nossa condição de mortos-vivos e nossa atração pelo espetáculo existirão por um bom tempo ainda. Então, a perspectiva é que a Zombie Walk continue, ano após ano, e conquiste cada vez mais adeptos, que fingem estar mortos, por amor à vida, “mesmo quando é assim pequena / (...) franzina;/ (...) uma vida severina” (MELO NETO, 1994, p. 60).
 
Referências:
AUDI, A.; ANTONELLI, D.; RIBEIRO, D.  Mocidade “aterrorizou” e é campeã do carnaval de Curitiba. Disponível em: http://www.jornaldelondrina.com.br/brasil/conteudo.phtml?id=1451393. Acesso em: 19 mar. 2014.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. In: GUEDES, R. S. A sociedade do espetáculo. Guy Debord (1931-1994). Disponível em: http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html. Acesso em: 11 out. 2013.
GLOBO. Moda de zumbis é reflexo de uma sociedade infeliz, diz pesquisadora. Disponível em:
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/03/moda-de-zumbis-e-reflexo-de-uma-sociedade-infeliz-diz-pesquisadora.html. Acesso em: 19 mar. 2014.
MELO NETO, J. C. de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
MONSTER HIGH. Monster High. Disponível em: http://www.monsterhigh.com/pt-br/index.html. Acesso em: 19 mar. 2014.
 
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* Professora e Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade; Professora do Curso de Graduação em Letras da FACEL e da FAE.

quarta-feira, 19 de março de 2014


A FUNDAÇÃO FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE GUARAPUAVA FAFIG

MEMÓRIA, NOSTALGIA E REALIZAÇÃO
 
Mail Marques Azevedo
 

Nos dias seis e sete de dezembro passado, realizaram-se as comemorações dos quarenta anos de formatura das primeiras turmas da FAFIG ─ semente originária da atual Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO ─ onde concluí o curso de Letras. Foi um exercício de reflexão sobre a transitoriedade da existência humana e de gratidão pelo dom que recebemos e pusemos em prática na profissão escolhida.

Nascida em Guarapuava, no centro-oeste do Paraná, para lá voltei em julho de 1957, munida do diploma de professor primário e do decreto de nomeação para a Escola de Aplicação “Visconde de Guarapuava”, pronta para iniciar carreira no magistério. Jovem e recém-casada, encaixava-me no modelo dos anos cinquenta para a realização da mulher: ser esposa, mãe e professora, nesta ordem. Com formação em música e línguas, logo passei a dar aulas no então chamado ginásio, sem ter cursado faculdade, situação da maioria absoluta dos professores da região.

Todo este preâmbulo destina-se a nos situarno contexto da situação do professorado paranaense no centro-oeste do estado, anterior à instalação da FAFIG, em 1970, Além das Universidades de Londrina, Ponta Grossa e Maringá, havia fora da capital, até 1960, duas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, em Palmas e União da Vitória e a Faculdade de Direito do Norte Pioneiro,em Jacarezinho.

Em meados dos anos sessenta, a comunidade e governantes de Guarapuava iniciaramintensa movimentação, com vistas à criação de uma Instituição de Ensino Superior. O sucesso chegou com a instalação daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Guarapuava, FAFIG, em 1970, com quatro cursos: Letras, Geografia,História e Matemática.

Tínhamos cinco aulas de 50 minutos à noite, das 18h30 às 23 horas e era um sacrifício manter-se acordado, mesmo para os locais, que vinham de um ou dois períodos diários de aulas.Completava-se o número de horas, nos sábados à tarde. Os dados objetivos, no entanto, nada dizem do aspecto humano que marcou os quatro anos em que abdicamos do status de professor para nos tornar alunos, com todas as características e manhas da “categoria”. Um de nossos professores costumava fazer longas perorações segurando o giz na mão direita erguida para o alto. Conclusão da turma: excesso de goma na camisa. (Naquele tempo os professores usavam terno e gravata). Risos sufocados nos valeram chamada de atenção, seguida de silêncio constrangido.

Dos 160 alunos das primeiras turmas, mais de 50% vinham de outras cidades do oeste. Tínhamos colegas de Foz do Iguaçu (400 km), Cascavel (250 km), Guaraniaçu (180 km) e de cidades intermediárias, apenas para as aulas de sexta e sábado.Os mais próximos, vindosde Laranjeiras do Sul, (120 km), Pitanga (90 km) e Prudentópolis (68 km), eram os mais sacrificados, pois regressavam a suas cidades para o período de aulas da manhã seguinte. Quem não tinha carro devia recorrer à propalada “criatividade do professor”: arranjar caronas ou fazer “vaquinhas” para alugar ônibus caquéticos que nem sempre chegavam a seu destino. Eram comuns avisos do estilo: “O pessoal de Laranjeiras avisa que chegará atrasado para a prova, porque o ônibus quebrou”. Existe, porém, um aspecto positivo em tudo isso: nos quatro anos de deslocamentos diários não se registrou um acidente grave sequer.

Foi um período de intensa colaboração: anotávamos aulas usando papel carbono; ao invés de cópias xerox, mimeografávamos textos; hospedávamos colegas. É possível dizer que o esquema funcionou: dos quarenta alunos do curso de Letras, os quarenta receberam seu diploma em dezembro de 1973. Dentre eles surgiram professores, dirigentes e reitores das atuais IES do oeste do Paraná

Da união da FAFIG com a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Irati, formou-se a UNICENTRO, de cuja estruturação participamos como Diretora de Pesquisa. A partir de 1997, após a conclusão do processo de reconhecimento, teve inícioa expansão universitária. As quatro licenciaturas de inicio deram origem a cursos nas áreas tecnológica, agrária e da saúde. Temos orgulho de nossa participação pioneira.

Na reunião festiva dos dias 6 e 7 de dezembro passado, foi principalmente a transformação dos colegas do sexo masculino, menos afeitos às tinturas de cabelo e recursos da moda, que nos alertou para a passagem do tempo. Desapareceram as costeletas, os cabelos longos e os bigodes fartos; as camisas espalhafatosas e as calças boca de sino. No entanto, no grupo de senhores respeitáveis de cabelos brancos, percebia-se o entusiasmo juvenil que contagiava a todos, de amigos que se reencontram, ao final de uma carreira, em que “combateram o bom combate” e guardaram os princípios de dignidade do ser professor.