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quinta-feira, 29 de junho de 2017

Considerações sobre VIAGENS, DESLOCAMENTOS, ESPAÇOS



                                        
          *Prof.ª. Dr.ª Sigrid Renaux

Recebemos, da colega Stelamaris Coser (UFES), um exemplar de Viagens, deslocamentos, espaços: conceitos críticos (Vitória: EDUFES, 2016), do qual é organizadora. Como consta em sua apresentação, “esta coletânea se apresenta como obra de referência e consulta voltada principalmente para professores e estudantes universitários, a partir da seleção, descrição e análise de termos críticos referentes a viagens, deslocamentos e espaços, com base em desenvolvimentos teóricos contemporâneos” (COSER: 2016, p.13). Esta objetividade na formulação, entretanto, não impede que, como Stelamaris finaliza,
Em lugar de conceitos fechados, entrecruzam-se, aqui, discussões e abordagens que aprofundam temas sem que se transformem em ensaios (...). Pensamos, ao invés disso, em articular na interdisciplinaridade saberes dispersos e diversos relacionados tanto a movimento quanto a lugar[1], na tentativa de iluminar questões de permanência e transitoriedade, conhecido e desconhecido, refúgio e desproteção – que constituem, afinal, questões da humanidade em todos os tempos – sempre trilhando o fascinante percurso temático do ser viajante, ou seja, de todos nós. (2016, p. 15)
A riqueza da obra encontra-se, portanto, não apenas nos 43 verbetes que apresentam conceitos críticos formulados por renomados professores e pesquisadores brasileiros e estrangeiros, mas pelo entrecruzamento que essas referências geográficas apresentam, ao abranger as relações entre cultura, geografia e história, levando a novas perspectivas de interdisciplinaridade.
Já nos títulos dos verbetes, apresentados em ordem alfabética, percebe-se a multiplicidade dos conceitos a serem desenvolvidos:  

APATRIDADE, APÁTRIDA; CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS; CASA, LAR; COSMOPOLITISMO; DESLOCAMENTO; DES-RE-TERRITORIALIZAÇÃO; DESVIO; DIÁSPORA; DISTÂNCIA, DISTANCIAMENTO; ENTRECRUZILHADA; ENTRELUGAR, LIMINARIDADE, TERCEIRO ESPAÇO; ESPAÇO; ESTADO-NAÇÃO; ESTRANGEIRO; EXÍLIO; EXOTISMO; EXTRATERRITORIALIDADE; FLÂNEUR, FLÂNERIE; FRONTEIRA; GLOBALIZAÇÃO; HABITAR, HABITABILIDADE; IMPERIALISMO; INSULARIDADE; LITERATURA DE VIAGEM; LUGAR, LOCALIZAÇÃO; METRÓPOLE; MIGRAÇÃO, MIGRÂNCIA; MOBILIDADE, MOVIMENTO, MOVÊNCIA; NÃO LUGAR; NÔMADE, NOMADISMO; OCIDENTALISMO, PÓS-OCIDENTALISMO; ORIENTALISMO; ORIGEM, COMEÇO; PERIFERIA, PERIFÉRICO; PERTENCIMENTO; PÓS-COLONIALISMO, COLONIALIDADE, DESCOLONIAL; PÓS-NACIONAL; RASTRO, TRAÇO; RUA; TRADUÇÃO; TRANSNACIONAL; VIAGEM; ZONA DE CONTATO.

Nossa citação de todos os termos tem a função de revelar o universo de possibilidades do qual os leitores podem fazer uso, pois, certamente, em qualquer pesquisa ou análise literária, cultural e histórica, o locus geográfico é imprescindível, seja ele aparentemente estático (casa, lar, espaço, lugar, origem, entre outros), dinâmico (deslocamento, diáspora, literatura de viagem, migração, entre outros), ou ambos (entrelugar, exílio, zona de contato, entre outros), todos eles envolvendo, evidentemente, a relação temporal. Dizemos “aparentemente”, porque nos próprios verbetes, após o título e o autor, aparecem os títulos de outros verbetes, facilitando assim a percepção das relações e correlações que podem ser estabelecidas entre estaticidade e dinamismo. Como observa Heloisa Toller Gomes, no Prefácio, “os diferentes textos/verbetes oscilam entre uma (sempre precária) ideia de permanência – potencialmente sugerida, por exemplo, em ‘habitar’, ‘casa’, ‘pertencimento’ – e a dura consciência da instabilidade que todos vivemos, predominante em noções e conceitos como exílio, desvio, apátrida e diáspora.” (2016, p. 17).
Tecendo comentários sobre um dos verbetes – ‘Deslocamento’, de Sandra Regina Goulart Almeida (UFMG) – ressaltamos os seguintes aspectos:
Após remeter o termo a uma relação espaço-temporal, Goulart afirma que, além desta relação, “o conceito está inerentemente ligado à construção identitária”, como conceito-chave para a psicanálise: para Freud, “o deslocamento é um mecanismo essencial para a elaboração dos sonhos, sendo também responsável por atos falhos, lapsos, sintomas através dos quais o inconsciente se faz presente”, enquanto que Lacan “associa o deslocamento ao processo linguístico da metonímia”(2016, p. 49).
 Entretanto, como continua Goulart, “a experiência do deslocamento cultural pode ser pensada não apenas como uma condição subjetiva, geopolítica, cultural ou histórico-temporal, mas sobretudo, como uma realidade intelectual (...) a realidade de ser um intelectual da contemporaneidade” o que leva à presença do conceito de deslocamento “na proposta de Ricardo Piglia para o novo milênio” (2016, p. 50). Como Goulart argumenta, Piglia – complementando as propostas de Italo Calvino – concebe a literatura como um lugar através do qual um outro pode falar, o lugar de deslocamento em direção ao outro, o movimento em direção a outra enunciação. Daí (...) a importância da distância e do deslocamento para a literatura no novo milênio (PIGLIA, citado em Goulart: 2001, p. 3). A este deslocamento “para a literatura no novo milênio”, Goulart acrescenta ainda “para a crítica cultural na contemporaneidade” (2016, p. 50), ampliando, assim, sua abrangência e aplicação.
 Após mencionar conceitos de Clifford, Hall e Gilroy, Goulart se detém para apresentar as contradições levantadas por Marc Augé, que “estão inerentemente imbricadas nas percepções dos trânsitos contemporâneos”, quais sejam: os paradoxos 1) do espaço temporal; 2) da perenidade do presente; 3) do espaço social; 4) da separação econômica entre países; 5) da produção e distribuição desigual do conhecimento. A eles, Goulart acrescenta um sexto paradoxo: “as hierarquias ainda predominantes de gênero, classe, etnicidade” (2016, p. 51). Ao enfatizar a associação de todos esses paradoxos “aos movimentos do trânsito e do deslocamento, embora não se restrinjam a eles” Goulart evidencia, novamente, o entrecruzamento de conceitos mencionado por Coser, acima.
 Goulart apresenta ainda as propostas de dois teóricos sobre o assunto: Arjun Appadurai e Walter Moser. O primeiro estabelece cinco dimensões para os fluxos culturais globais –  paisagens étnicas, mediáticas, tecnológicas, financeiras e ideológicas – todas elas remetendo “à ideia de movimento e deslocamento, embora em perspectivas distintas.” Moser, inspirado na proposta de Appadurai, estabelece três categorias que se relacionam à mobilidade na contemporaneidade e às quais estão expostos os sujeitos: a locomoção (deslocamento físico, viagem, diáspora e migração); a mediamoção (deslocamento virtual proporcionado por eventos midiáticos); e a artemoção (experiência estética do movimento de obras de arte e instalações). A proposta de Moser evidencia a utilidade que essas categorias apresentam para os estudiosos, pois ela abrange tanto a mobilidade física como a intelectual e a artística às quais estamos expostos, em nossa contemporaneidade, tornando-nos, assim, participantes de um “conceito de deslocamento” que “pressupõe o enfrentamento de vários impulsos críticos e teóricos que marcam de forma indelével nossa era” (GOULART: 2016, p. 51-2).
Esta exposição sobre ‘Deslocamento’, a fim de exemplificar o interesse e pertinência desta obra de referência e consulta, demonstra claramente o “vigor crítico” com o qual foi o livro foi composto, como ressalta Heloisa Toller Gomes (2016: p.18), pois todos os verbetes, acompanhados de uma bibliografia teórica de apoio, mantêm este padrão de excelência, satisfazendo, pela clareza das apresentações, tanto a estudantes como a professores e pesquisadores.
* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE







[1] Todos os negritos são nossos.



quarta-feira, 21 de junho de 2017

CARNAVAL LITERÁRIO



*Prof.ª Dr.ª Verônica Daniel Kobs
 
          No carnaval deste ano, o tema da Mocidade Independente de Padre Miguel foi Marrocos, a literatura do Oriente e suas narrativas maravilhosas, que enfatizam o sonho e a imaginação. Por esse motivo, as histórias acentuam a “suspensão da descrença” (Cf. ECO, 1994), característica que, de acordo com Todorov, faz parte do que o autor chama de “maravilhoso exótico”: “Bastante próximo a esta primeira variedade do maravilhoso encontramos o maravilhoso exótico. [...]; supõe-se que o receptor implícito dos contos não conhece as regiões nas que se desenvolvem os acontecimentos; por consequência, não há motivo para pô-los em dúvida. (TODOROV, 2004, p. 30, ênfase no original). Mas é na terceira modalidade, denominada “maravilhoso instrumental”, que surge a característica que provocou maior efeito, na passarela do samba: o tapete mágico: “Na História do príncipe Ahmed das mil e uma noites, por exemplo, esses instrumentos maravilhosos são, ao princípio, um tapete mágico, uma maçã que cura, uma luneta de longo alcance; [...]” (TODOROV, 2004, p. 31), que pode ser visto na foto abaixo:



Figura 1: Tapete mágico, na abertura do desfile da Mocidade. Imagem disponível em: http://carnaval.sortimentos.com.br 
          O clássico de José de Alencar foi representado, na Sapucaí, pela Beija-Flor. O samba-enredo foi premiado e conservou a atmosfera do romance romântico, celebrando o indianismo, a natureza e o “feliz” consórcio entre os nossos índios e os portugueses: “Quando a virgem de Tupã se encantou com o europeu / Nessa casa de caboclo hoje é dia de Ajucá / Duas tribos em conflito / De um romance tão bonito começou meu Ceará” (SANTOS, 2017).
 
              

Figura 2: Iracema, no desfile da Beija-Flor. Imagem disponível em: https://abrilexame.files.wordpress.com


           A afinidade entre as histórias da literatura e do samba é bastante evidente, como exemplifica a imagem acima, a qual exalta o mito do paraíso terrestre e o exotismo da fauna e da flora brasileiras. “A ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social” (CANDIDO, 1989, p. 141, ênfase no original). Por essa razão, como mostra a figura 2, destaca-se o perfil heroico do povo indígena, com a flecha disparada por Iracema, guerreira protetora de sua tribo. No que se refere ao convívio entre brancos e índios, o samba, assim como o romance, corresponde à fase que Paulo Prado classificou como “idílica”: “Era ainda o período idílico e heróico, em que o colono [...] misturava-se com o indígena, de quem aprendia a língua e adotava os costumes” (PRADO, 1999, p. 71).
          A escola Paraíso do Tuiuti celebrou o Tropicalismo, movimento cultural que predominou especialmente na música, durante a década de 1960. Por dar destaque ao intercâmbio cultural, as influências dos tropicalistas eram inegáveis e remetiam ao Modernismo, com ênfase à Antropofagia: “Em lugar de embasbacamento, Oswald propunha uma postura cultural irreverente e sem sentimento de inferioridade, metaforizada na deglutição do alheio: cópia sim, mas regeneradora” (SCHWARZ, 1986, p. 5). O resultado disso aparece em passagens como esta, da obra Macunaíma, de Mário de Andrade, que exalta o hibridismo: “As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. [...]. Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado” (ANDRADE, 2001, p. 42). Na alegoria da figura 3, ficam claras as referências à Psicodelia e ao Tropicalismo, movimentos que ocorreram na mesma década e por isso promoveram vários cruzamentos. A arte psicodélica, por exemplo, investia na superposição e nas formas circulares. Isso, por sua vez, combinava com o hibridismo típico da Tropicália, razão pela qual Carmem Miranda se tornou o ícone dessa tendência artística. Além da cantora, que ficou famosa por “americanizar” os clichês de brasilidade, em Hollywood, nos anos 1940, o carro alegórico traz inúmeros círculos, com estampas de Tarsila do Amaral e Beatriz Milhazes, pintora brasileira que não se influenciou apenas pela artista modernista, mas também pela Psicodelia e pelo Tropicalismo. Dessa forma, os antecedentes se entrelaçam e dialogam de modo coerente (entre si e com os versos do samba-enredo da escola):  “Ê Bahia… é lindo o movimento musical / E segue a massa pra viver essa aventura / Quanta mistura… intercâmbio cultural / E na Terra da Garoa… Tropicalista / Debochando numa boa… Salve o artista / Degustar e consumir foi a opção” (CHIRRINHA, 2017).
 

Figura 3: Carro alegórico da escola Paraíso do Tuiuti. Imagem disponível em: https://ogimg.infoglobo.com.br/


          Do mesmo modo que a escola Paraíso do Tuiuti mencionou a estreita sintonia dos tropicalistas baianos com os modernistas de São Paulo, o crítico Paulo Leminski também exaltou essas duas potências regionalistas, no texto intitulado Pororoca: “Me refiro à pororoca, nome que dou ao choque entre a onda paulista e a onda baiana. Paulistas: os poetas concretos. Baianos: a tropicália. Os nomes: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari” (LEMINSKI, 2014).
         Levando ao extremo o recurso da carnavalização, a escola Acadêmicos do Salgueiro apresentou, no carnaval carioca, uma releitura do clássico de Dante Alighieri, protagonizada pelos personagens mais famosos do carnaval: o pierrô e a colombina. Embora os contextos pareçam completamente opostos, convém lembrar que o par romântico teve origem na comédia italiana e, nesse aspecto, qualquer semelhança com a obra de Dante não é mera coincidência.  A carnavalização, que comandou a releitura apresentada pela escola, na Sapucaí, foi um conceito bastante estudado por Mikhail Bakhtin, autor que baseou suas análises na obra de Rabelais: “Era necessário criar novas vizinhanças entre as coisas e as idéias, correspondentes à natureza delas, era preciso justapor e reunir [...] e também separar o que fora falsamente reunido. Com base nessa nova vizinhança, devia surgir um novo quadro do mundo [...]” (BAKHTIN, 2014, p. 284). Essa citação serve como uma espécie de tradução, que explica os processos interpretativo e criativo da equipe de arte do Salgueiro em relação ao clássico da literatura italiana
 
  

Figura 4: Apresentação do tema do carnaval 2017, no site oficial da escola. Imagem disponível em: http://www.salgueiro.com.br
          Evidentemente, a partir das “novas vizinhanças” estabelecidas, o resultado revela uma série de reacentuações, inerentes à distância temporal entre as duas “divinas comédias” (a de Dante e a do Salgueiro) e à natural exigência de atualização do tema, dos personagens e da história como um todo.
REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2001.

BAHKTIN, M. Questões de literatura e de estética. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014.

CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

CHIRRINHA, C. et al. Samba-enredo. Disponível em:
<
http://www.carnavalesco.com.br/noticia/tuiuti-2017-samba-da-parceria-de-carlinhos-chirrinha/17722>. Acesso em: 3 mar. 2017.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

LEMINSKI, P. Pororoca. Disponível em:
<
http://liricoleminski.blogspot.com.br/2013/11/pororoca.html>. Acesso em: 11 nov. 2014.

PRADO, P. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SANTOS, B. et al. A virgem dos lábios de mel – Iracema. Disponível em: <
http://www.beija-flor.com.br/carnaval/samba-enredo/>. Acesso em: 28 fev. 2017.

SCHWARZ, R. Nacional por subtração. Folha de S. Paulo, 07 jun. 1986.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.


* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

quinta-feira, 8 de junho de 2017

BREVES ANOTAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE ÉCFRASE



*Dr.ª Anna Stegh Camati

 

A comparação entre a poesia e a pintura insere-se em uma longa tradição que, segundo Platão, remonta a Simônides de Ceos (556 a.C. – 468 a.C.). A famosa frase atribuída ao poeta grego   “A pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pintura que fala” – constitui uma das primeiras reflexões sobre as relações entre a palavra e imagem.  A partir dessa perspectiva, Horácio (65 a.C. – 8 a.C), em sua Epístola aos Pisãos, atribui maior importância às impressões visuais que seriam mais marcantes do que as auditivas. O mote de Horácio, “Um poema é como uma pintura”, retomado pelos teóricos da Renascença, está na origem da doutrina do Ut pictura poesis. Na proposição de Horácio – “Um poema existe tal como um quadro” (Ut pictura poesis erit) – a pintura constitui o referencial de comparação, sugerindo, assim, a superioridade da imagem sobre a linguagem. Os teóricos renascentistas inverteram o sentido dessa proposta: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo comparado, submetendo a pintura às artes da linguagem (LICHTENSTEIN, 2005).

A mudança de entendimento da máxima  de Horácio – “A pintura é como um poema” (Ut poesis pictura) – modificou o estatuto da pintura, conferindo-lhe a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à poesia dramática, ou seja, de contar uma história. A partir de então, a pintura e a poesia, apesar das rivalidades, foram chamadas de “artes irmãs”: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN, 2005, p. 13).

A controvérsia sobre a superioridade da linguagem ou da imagem, resumida acima, foi retomada, sob diferentes perspectivas, por Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que, em Laokoön, ou: sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766), investigou as relações entre a literatura e a pintura, tomando como base a midialidade. A teoria de Lessing, que ressalta a espacialidade da pintura e a temporalidade da literatura, representou um avanço teórico e lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de intermidialidade. Sua visão de que toda arte se configura de acordo com sua midialidade específica mostrou que a materialidade ou os suportes físicos são determinantes no momento da criação, resultando em diferentes modalidades expressivas que podem (ou não) produzir o mesmo efeito (MOSER, 2006).

O termo écfrase apareceu, pela primeira vez, nos escritos atribuídos a Dionísio de Halicarnasso (c. 60 a.C. – c. 7 a.C.), tornando-se, em seguida, uma prática discursiva utilizada nas escolas. Segundo Peter Wagner, trata-se de um recurso retórico antigo que está sendo retomado e redefinido por críticos contemporâneos. O vocábulo, formado pelo prefixo “ek” ou “ec”, que significa “originário de” ou “dentre”,  e a raiz phrasis,  um sinônimo do grego lexis ou hermeneia e do latim dictio e elocutio,  originariamente significava “uma descrição completa e vívida” (WAGNER, 1996).

A definição restritiva de écfrase, que nasceu sob os auspícios do Ut pictura poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade. No ensaio intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representations of Non-Verbal Texts” (2009),  Claus Clüver criticou o conceito de écfrase de James Heffernan (1993) – “representação verbal de uma representação visual” – por exluir descrições ecfrásticas de pinturas e esculturas não representacionais e de complexos arquitetônicos. No referido artigo, Clüver amplia as fronteiras dessa prática discursiva ao formular a seguinte definição: “Écfrase é a representação verbal de um texto real ou fictício composto em sistemas de signos não verbais” (2009).

No livro Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film (2008), Laura M. Sager Eidt investiga o tratamento ecfrástico ao qual são submetidos quadros de diversos pintores em textos narrativos e fílmicos. Ela afirma que, enquanto a tradição restringia a écfrase a poemas que descrevem ou analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito e se aplica a todos os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o ensaio, estendendo-se, também, ao cinema e à música (EIDT, 2008). Dentre os críticos que alargaram o âmbito da écfrase, além de Claus Clüver, Eidt cita Tamar Yacobi  e Siglind Bruhn. Ela argumenta que Yacobi, em “Verbal Frames and Ekphrastic Figuration” (1997) e em “The Ekphrastic Model: Forms and Functions (1998), demonstra que a écfrase pode ser constituída por uma breve alusão a um “modelo ecfrástico” ou “simile ecfrástica”,  e que esse referente, da mesma forma que a alusão literária, é um mecanismo capaz de ativar o texto pictural como um todo, produzindo múltiplas conexões e sentidos (EIDT, 2008). Acrescenta, ainda, que no ensaio “A Concert of Paintings: ‘Musical Ekphrasis’ in the Twentieth Century” (2001), Siglind Bruhn introduz perspectivas ainda mais radicais do que as encontradas  na reconsideração do conceito por Clüver e Yacobi  ao postular que, em relação à “écfrase musical”, a mídia recriadora pode ser qualquer outra forma artística ou midiática diferente daquela em que o texto-fonte foi plasmado, não necessitando ser verbal (EIDT, 2008).
Em seu artigo mais recente, intitulado “A New Look at an Old Topic: Ekphrasis Revisited” (2017),  Claus Clüver apresenta ao leitor uma visão abrangente sobre a poesia ecfrástica e seus desdobramentos na contemporaneidade. Argumenta que a definição restritiva de écfrase, a qual Heffernan continuou defendendo em seu artigo “Ekphrasis: Theory” (2015), tornou-se ainda mais inviável em face de novas tendências surgidas nas artes plásticas nos séculos XX e XXI. No referido artigo, Clüver também faz restrições à sua própria definição formulada em 2009, principalmente no que diz respeito a textos “compostos em sistemas de signos não verbais”.  O crítico acredita que essa colocação, inclusiva demais, oportunizou o uso do termo éfrase para representações de configurações em qualquer mídia que emprega sistemas de signos e códigos diversos, como a música, a dança, a pantomima, as artes performáticas, o cinema e outras, tornando o conceito impreciso. Assim, em sua revisão crítica de 2017, Clüver oferece uma visão atualizada das práticas discursivas ecfrásticas em geral, ressaltando que “a écfrase crítica contemporânea e o discurso circundante se voltaram contra o modelo de um paragone baseado na representação”. Além disso, sustenta que “a visão dominante que considera a écfrase um exemplo primário de transposi­ção intermidiática é questionável e deveria ser substituída pelo reconhecimento de que ela verbaliza, primeiramente, o encontro de um espectador com configu­rações visuais não cinéticas” (CLÜVER, 2017, p. 42).


Referências


ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: Ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006.
 

BRUHN, Siglind. A Concert of Painting: “Musical Ekphrasis” in the Twentieth Century. 2001. Disponível em: <http://www.eunomios.org/contrib/bruhn1/bruhn1.html> Acesso em: 20 jun. 2013.
 

CLÜVER, Claus. A New Look at an Old Topic: Ekphrasis Revisited. Todas as Letras, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 30-44, jan./abr. 2017.
 

_____. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: Ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 107-166.
 

_____. Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representation of Non-Verbal Texts. In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans, HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and London: Rodopi, 1997, p. 19-33.

EIDT, Laura M. Sager. Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film. Amsterdam and New York, Rodopi, 2008.

HEFFERNAN, James. Ekphrasis: Theory. In: RIPPL, G. (Org.). Handbook of Intermediality: Literature – Image – Sound – Music. Handbooks of English and American Studies. Berlin; Boston: De Gruyter, 2015. v. 1, p. 35-49.

_____. Museum of Words: The Poetics of Ekphrasis from Homer to Ashbery. Chicago: The University of Chicago Press, 1993.

LICHTENSTEIN, Jacqueline. O paralelo das artes. In: ___. (org.) A pintura – O paralelo entre as artes. Vol. 7. Coordenação da trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 9-16.

MOSER, Walter. As relações entre as artes: Por uma arqueologia da intermidialidade. AletriA: Revista de estudos de literatura, Belo Horizonte, v. 6, 1998-1999, p. 42-65.

YACOBI, Tamar. Verbal Frames and Ekphrastic Figuration. In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans, HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and London: Rodopi, 1997, p. 35-46.
 

_____. The Ekphrastic Model: Forms and Functions. In: ROBILLARD, Valerie; JONGENEEL, Els (eds.). Pictures into Words: Theoretical and Descriptive Approaches to Ekphrasis. Amsterdam: VU University Press, 1998, p. 21-34.


* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

segunda-feira, 5 de junho de 2017

SIMPLICIDADE E COMPLEXIDADE NA ARTE: CRITÉRIO DE VALORIZAÇÃO E DE RECEPÇÃO

Edson Ribeiro da Silva*



Figura 1: Kasimir Malevich: “Suprematism with blue triangle and black square”
Ano: 1915
Localização: Stedelijk Museum, Amsterdã, Holanda.
Dimensões: 66.5 x 57 cm
Técnica: óleo sobre tela
Fonte: <http://artemodernaartistas.blogspot.com.br/2012/04/kasimir-malevich-1878-1935.html>




Candeeiro de vovó
Vige, Minha Nossa Senhora
Cadê o candeeiro de vovó
Seu troféu lá de Angola
Cadê o candeeiro de vovó
Era lindo e iluminava
Os caminhos de vovó
Sua luz sempre firmava
Os pontos de vovó

Quando veio de Angola
Era livre na Bahia
Escondia o candeeiro
Dia, noite, noite e dia
Mas um golpe traiçoeiro
Do destino a envolveu
Até hoje ninguém sabe 
Como o candeeiro desapareceu

Vovó chorou, de cortar o coração
Não tem mais o candeeiro
Pra enfrentar a solidão
Vovó chorou, chorou
Como há tempos não se via
Com saudades de Angola
E sua mocidade na Bahia


Fonte: Dona Ivone Lara: “Candeeiro de vovó”. In: Sambabook Dona Ivone Lara. Vol. 1. Santo Amaro/SP: Novodisc Mídia Digital, 2015.






Figura 2: Eva Hesse: “Hang Up”
Ano: 1966
Localização: The Art Institute of Chicago, Chicago, EUA
Dimensões: 182.9 x 213.4 x 198.1 cm
Técnica: Acrylic on cord and cloth, wood, and steel
Fonte: <http://artchive.com/artchive/H/hesse.html>




 
As obras acima referem-se a três modos diferentes de expressão artística. Pintura, música e escultura são artes reconhecidas também por fazerem uso de linguagens reconhecíveis pela tradição, dentro e fora das especulações sobre estética. Elas são protoartes: dão origem a expressões artísticas diversas, como a literatura e o cinema.


Seriam, portanto, expressões artísticas simples? Ou estariam em um nível de elaboração que as faria mais simples em relação a suas derivadas, como a literatura? A simplicidade estaria atrelada apenas à aceitação de modelos estéticos já reconhecidos? Seria essa aceitação do já assimilado, pelas expressões estéticas mais simples, uma das causas de as expressões complexas serem objeto de culto artístico? São questões que ocupam teóricos da arte, artistas, e pensadores preocupados com a formação daqueles valores estéticos que sustentam o cânone, o mercado da arte, e até mesmo o gosto do público. Preocupam, também, aos teóricos da recepção; compreender a produção da obra é parte da compreensão das regras que o jogo estético estabelece.


Mas, afinal, o que seria a simplicidade em arte? Há modos de ela ser reconhecida? Evidentemente, a simplicidade costuma ser aproximada daquelas formas artísticas espontâneas, identificadas ao popular, ao que pode ser definido como artesanato mas não como arte, ao que pode ser definido como kitsch ou comercial. Tal simplicidade é reconhecida, por exemplo, na repetição de modelos já assimilados, aprovados, que não geram estranhamento ou recusa por parte de quem os apreende. Pelo menos, não daquele que a procura.


O fato é que, a partir do momento em que as expressões artísticas populares começaram a ser vistas como espontâneas, formas menos elaboradas que a arte canônica, e as criações da indústria cultural foram sendo vistas como elaboradas, sem espontaneidade, mas fingindo um resultado simples para corresponder ao já reconhecido e assimilado, a tendência de separação entre essas duas expressões foi se acentuando. A arte que parte do povo e a que para ele se destina são medidas pelo critério da relação entre a simplicidade e a complexidade. No entanto, definir o que seja a simplicidade em uma obra de arte é algo problemático: há os que atentam para o resultado obtido; há os que atentam para a elaboração dela. Ou para ambos os elementos.


Olhar para o resultado final significa, tantas vezes, perceber que o simples é resultado de uma elaboração complexa ou, pelo menos, de uma concepção mais complexa de arte. As vanguardas modernas são exemplos evidentes dessa relação. Um movimento como o Suprematismo, aqui ilustrado pela pintura de Malevich (Fig. 1), considerava como condição suprema da obra a síntese resultante da economia de recursos. A figura geométrica seria, portanto, aquela possibilidade de o desenho não resultar de um esforço de elaboração do artista. É reconhecível; está pronta. Da mesma forma, o uso da cor em estado puro facilita ao pintor, que assim não precisa elaborar os tons que vai usar. No entanto, é preciso que se entenda que um movimento estético como o Suprematismo só é possível dentro de um contexto em que vanguardas dialogam entre si, negando-se ou complementando-se. O que parece ser uma ruptura com a tradição da pintura canônica, ocidental, pode ser facilmente assimilado quando inserido em um período em que a ruptura passara a ser procedimento banalizado. Malevich está rompendo com padrões, modelos já assimilados e, portanto, causando estranheza, ou adequado a um contexto onde o estranho estava normatizado? Trata-se, sem dúvida, de uma questão cuja resposta exige um posicionamento menos extremista: está-se na confluência de fatores, como a necessidade de se causar estranhamento, mas também de se ter acesso a locais procurados por um público específico, que reconhece a complexidade na obra aparentemente simples. Sem tal reconhecimento, a recepção da obra falharia. A valorização, pela crítica e pelo mercado, também.


O mesmo pode ser dito em relação à obra de Hesse (Fig. 2), que é definida como escultura, mas sabendo que essa definição é mais problema que solução. Seria uma instalação, entendendo-se como tal a colagem de materiais já prontos? O resultado estético, em termos categoriais, ou seja, de apreensão pelos sentidos, dá conta de uma obra simples. Ela também faz uso de poucos elementos e faz pensar em uma elaboração também simples quanto ao trabalho da artista. No entanto, é resultante de um conceito complexo de arte. O Minimalismo, a que a artista se filia, é possível porque o público conhece as possibilidades do complexo, de uma arte que resulta de um trabalho exaustivo de elaboração. Na obra de Hesse, a simplicidade é resultante de uma ruptura com a tradição que valoriza o trabalho, a elaboração demorada e cuidadosa, mas também com a ideologia mais comum sobre o belo como agradável aos sentidos. A recepção da obra necessita de um certo nível de compreensão das ideologias estéticas que resultaram em sua elaboração. Ela é feita para um público que sabe por onde a linha evolutiva da arte passou. Trata-se de uma simplicidade que não é a resultante de trabalho individual, mas da criação coletiva de parâmetros estéticos em dado momento histórico. Esses parâmetros são possíveis apenas através da comparação com a tradição artística.


Em relação à letra de música de Dona Ivone Lara, constata-se uma simplicidade que é resultado de um esforço de síntese. As frases curtas, em que prevalece a narração sobre o comentário, a escolha de palavras coloquiais e a brevidade do relato formam um conjunto que, aparentemente, parece espontâneo, sem muito esforço de elaboração. No entanto, quando a letra é ouvida na sua conformação sonora, constata-se a filiação da música ao samba de roda, às sonoridades vindas desse gênero popular, espontâneo, em que a letra necessita de brevidade para estar adequada ao ritmo dançante. A escolha de um relato feito por uma personagem, neta da avó a que a narrativa se refere, faz com que a compositora opte por dar à letra o discurso típico da moça das classes populares, descendente de escravos, e que fala de modo passional de alguém a quem se liga afetivamente. Essa aparente simplicidade mostra elementos da cultura negra no país, como a religiosidade sincrética, ou da condição social do negro, que tem para si apenas um objeto trazido do país de origem. Trata-se de uma simplicidade obtida pela elaboração a partir de elementos complexos. O texto de Dona Ivone Lara pertence a uma tradição musical atrelada ao popular mas que, no caso, também se filia a uma tradição de compositores marcados pela elaboração cuidadosa de letras e sonoridades. E essa elaboração, ao contrário do que ocorre no kitsch, não finge estar perfeitamente adequada a modelos. Ao contrário, ela precisa deixar as pistas de que se trata de uma resistência ao kitsch como produto para o mercado. O popular como fonte, seja na discursividade, na temática, na musicalidade, é forma de romper com o produto da indústria cultural; ele se torna complexo por ser um popular não espontâneo, mas que finge sê-lo. Mesmo que as ideologias sobre o real que transparecem do texto sejam transparentes, usuais, a elaboração faz com que o texto seja falsamente simples. Assim ele pode agradar a críticos e se inserir em um cânone musical exigente.


Afinal, da observação dessas três obras não se pode ainda chegar a uma conclusão sobre o que seria a simplicidade na arte. Trata-se de três obras apreendidas por públicos diversos, através de suportes diversos, e que são vistas pela crítica como exemplo de arte complexa, ou seja, aquela que tem na elaboração e na sua conceituação elementos que apontam para uma composição menos espontânea e mais criteriosa, mesmo que o resultado categorial seja a simplicidade.


Essa relação entre o simples e o complexo é o critério principal adotado por Affonso Romano de Sant’Anna, em Análise estrutural de romances brasileiros. A diferença ali apontada por Sant’Anna entre obras literárias simples e complexas pode ser estendida às demais artes. Desde que não se incorra na redução a categorias extremas, ou se delimite um único critério para se chegar à definição de simples ou complexo. Por exemplo, tanto o resultado categorial quanto o esforço de elaboração devem ser vistos como critérios. Além, é claro, daquilo que o poeta e teórico ali chama de complexidade: a ruptura com os modelos validados pela tradição, já assimilados, e que correspondem a uma ideologia que enxerga a representação estética como transparente: não somente a arte representaria o real tal qual ele é reconhecido ou visto por ideologias dominantes, como o faria através da adoção de procedimentos estéticos já validados, reconhecidos. A resultante desses procedimentos é a transparência da obra de arte, que não causa estranhamento nem em relação ao real representado nem aos mecanismos estéticos usados para representá-lo. A obra de arte transparente é simples, no sentido de estar atrelada às ideologias dominantes. Ela adota caminhos já percorridos e que deixam suas receitas para quem quer segui-los. Seria essa transparência uma das causas para se agruparem obras de artes em períodos, em estilos de época, o que resulta em comparações baseadas mais na identidade que na diferença. Esta última, para o poeta, é que seria causa de estranhamento e de quebra de paradigmas. Romper com as ideologias que tornam uma obra de arte atrelável ao já feito é causa de complexidade; as grandes obras de arte teriam esse pressuposto. Este também acaba por tornar canonizáveis obras reconhecidas como complexas, por desvinculá-las, tantas vezes, do consumo a que se destina a obra kitsch, seja o romance, a música, a tela, a escultura.


É ainda uma separação perigosa. Simples, para Sant’Anna, não é o resultado categorial. Não se pode chamar de simples as três obras colocadas acima, a partir do critério de Sant’Anna. A simplicidade delas não resulta da adequação a modelos estéticos, nem a modos convencionais de se reconhecer o real. A ideologia que dá origem a cada uma delas, embora diferente uma da outra, faz com que elas adotem a opacidade como forma de recepção. O público precisa atentar para sua elaboração, para o modo como elas destoam dos modelos consagrados em suas esferas, pelo menos naqueles aspectos que respondem por uma complexidade constatável. O resultado pode ser a simplicidade categorial, aspectual, mas ela resulta de elaboração e de reflexão, de posicionamento em relação ao que é produzido como arte e já é reconhecido como tal. Está-se, ainda assim, numa relação complexa em que, em cada obra, a complexidade, que é critério de valor, repousará sobre um ou outro aspecto predominante. Ou com mais de um. Seja a ruptura com o real ou com o modo de representá-lo, o receptor necessita estar de posse daqueles elementos que caracterizam cada obra como uma linguagem estética específica. Sem o reconhecimento desses elementos, não existe possibilidade de transparência ou de opacidade, do simples ou do complexo. Saber que cada arte não apenas representa o real, mas é formada por elementos, como cor, linha, volume, ritmo, e que estes devem ser apreendidos como constituintes da arte, o seu real anterior a toda coisa representada.


Essa relação torna reconhecível a complexidade dos contos de Hemingway ou de Dalton Trevisan, da poesia de Orides Fontela ou de Manuel Bandeira. A complexidade das alegorias de Kafka ou do fantástico de Murilo Rubião também se apoiam nela. Explica como a simplicidade de Vidas secas e de demais obras de Graciliano Ramos é resultante de constantes revisões e reescritas. São simplicidades que diferem daquela dos modelos em que a linguagem já se tornou transparente.


A complexidade, aqui, se afasta do simples quando este é reconhecido como de baixa elaboração ou correspondendo a ideologias estéticas que aceitam o já assimilado como padrão para o novo. Apostar na insegurança, no trabalho de elaboração que pode resultar em obra recusada pelo público acaba por tornar-se, como consequência, mais um critério para a valorização da obra de arte. Elaborar arte torna-se, a priori, elemento de valorização estética, mesmo quando a estranheza afasta o público. A aposta no valor estético faz da obra objeto de culto.  



* Professor do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE