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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

“Pedro Páramo” e o destino fatal do homem

Paulo Sandrini*

Juan Rulfo


Em 1955, surge o romance de um (até então) obscuro escritor mexicano de Jalisco, Juan Rulfo. A obra: Pedro Páramo. Dois anos antes, Rulfo havia publicado o livro de contos El llano en llamas, que passou despercebido pela crítica. Mais tarde, com o êxito de Pedro Páramo, a coletânea de contos seria redescoberta. Depois dessas duas publicações, a produção literária do escritor de Jalisco seria praticamente nula. Em 1980, voltou a publicar um conjunto de relatos sobre cinema chamado El gallo de oro. E foi só; no entanto, o suficiente para deixar marcas contundentes nas letras ocidentais.
Pedro Páramo é um romance curto. No entanto, de densidade incomum e leitura difícil. Tal dificuldade é ainda proporcionada pela escassez de dados biográficos que se possui sobre o autor, cuja vida, neste caso, tanto condiciona a obra. Durante a infância, sabe-se que Rulfo presenciou o aniquilamento de sua família pela rebelião dos cristeros. Anos depois, o escritor apontou em uma entrevista que o que primeiro conheceu em sua vida foi a devastação, humana e geográfica, muito precisa e localizada em sua terra natal. O autor transporta tal experiência pessoal para a criação do fantasmal espaço de Comala, povoado habitado por mortos, árido e abandonado no tempo. Comala, então, passa a ser uma espécie de alegoria do inferno, em que, tal como na Divina Comédia de Dante, se perde toda a esperança ao se entrar ali. Juan Preciado, narrador de grande parte do romance, chega a esse inferno guiado pelo muleiro Abundio e segue em busca de cumprir uma promessa feita a sua mãe, já morta, que é a de encontrar seu pai, Pedro Páramo. Em Comala, Preciado descobre a face selvagem dessa espécie de cacique que foi seu pai. No decorrer da obra, Preciado compreende que todos os seus interlocutores até então, incluindo o muleiro, estão mortos. Ele mesmo divide uma sepultura com outra personagem. E dali, de sua tumba, assistirá ao desenlace da história em que Pedro Páramo acaba assassinado. Nessa obra, vida e morte não se distinguem. Sua atmosfera angustiante tem por base a mescla da realidade e do sobrenatural, o que coloca o leitor com a sensação de que o mundo e as ações humanas fogem a todo intento de explicação racional.
Com base em sua história pessoal e familiar, Juan Rulfo nos mostra crer em um destino fatal e absurdo que marca o percurso de todo homem, sendo impossível fugir a esse destino. Como consequência, engendra um tempo circular, em que começo e fim se confundem e a alteração cronológica dos eventos (monólogos copiosos e uma utilização inovadora no uso da linguagem) faz dessa narrativa uma obra revolucionária. Narrada em espécies de sussurros, é devedora mais da tradição oral do folclore mexicano e de seu culto à morte do que dos modernos romancistas, que Rulfo confessou jamais ter lido.
Pedro Páramo é também a história de um homem em busca de sua identidade, engendrada por uma espécie de confusão temporal e narrativa para exemplificar vários temas latino-americanos. Por exemplo, o patriarcado e o caciquismo, a crise de identidade e a obsessão com a morte típica do povo mexicano. É uma interpretação bem realizada e singular da revolução mexicana, podemos ainda inferir.
Contudo, é possível detectar em Rulfo uma fundamentação que se pretende universalista, o que se verifica em suas opções literárias. Rulfo se voltará, como leitor, à produção da periferia europeia, sobretudo da zona nórdica (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia), correspondente a dois períodos sucessivos: o fim do século XIX e o começo do século XX e o posterior entre guerras. Do mesmo modo, se voltará à produção sulista estadunidense, representada por William Faulkner, em detrimento da linha literária mais urbanizada e industrializada de Nova Iorque, que apresenta os movimentos vanguardistas e a narrativa de Ernest Hemingway. Em 1959, Rulfo confessa ao escritor e ensaísta José Emílio Pacheco que as escolas alemã e nórdica dos princípios do século passado, que criaram uma realidade e uma perspectiva social baseadas no voo da imaginação, são suas preferidas. Rulfo leu Sillanpää, Bjornson, Hauptmann e o primeiro Hamsun. Nesses, diz Rulfo, achou as bases de sua literatura. Em 1974, confessa que Hamsun o levou a planos desconhecidos, a um mundo brumoso, que o apartou de certo modo da situação de intensa luminosidade mexicana. Hamsun foi, em realidade, já na juventude de Rulfo, o princípio de contato com esse tipo de literatura. Depois, o autor mexicano buscou outros autores, como os citados anteriormente, acrescentando a sua lista Jens Peter Jacobsen, Selma Lagerlöf e também uma grande descoberta pessoal: Halldór Laxness, bem antes que esse autor islandês ganhasse o Nobel, em 1955.
Rulfo passa a propor então o encontro entre um estilo de escrita preponderantemente realista e a imaginação dada ao irreal. E além da filiação de sua narrativa a essas influências nórdicas, é necessário reconhecer que elas pertencem a situações culturais muito parecidas às que vivenciou o escritor mexicano, que assim como os escritores nórdicos sentiu-se submetido ao processo de adaptação urbana, nos anos quarenta e cinquenta, enquanto construía sua trajetória literária — uma adaptação compartilhada com enormes populações rurais. Qual Fome (1890), de Hamsun, poderíamos considerar Pedro Páramo uma espécie de resposta à modernização. O romance do norueguês é um livro diferente dos paradigmas do período, pois o autor se mostra um crítico ferrenho do Realismo e do Naturalismo, criando, como Rulfo e antes dele, uma obra de vanguarda, com componentes inéditos e atravessada por paradoxos que a fazem mordaz e ao mesmo tempo não isenta de um traço divertido. De fundo autobiográfico, Fome é um romance narrado por um personagem inteligente, mas que por motivos que não se desvelam acaba por viver na miséria, sempre faminto, sofrendo diversos reveses em seu périplo pela cidade de Christiania (hoje, Oslo), e sempre em busca de alimento. As divagações a respeito da condição humana e da sua própria situação são construídas a partir de um individualismo quase extremo. Tudo passa pelo seu crivo, por vezes de modo irônico, por vezes de modo crítico e por vezes desdenhosamente. Há uma alternância que vai da lucidez à insensatez. O personagem é quase ao mesmo tempo cômico, preocupado, sério e sagaz. As invenções estéticas e temáticas de Hamsun viriam, mais tarde, a influenciar os modernistas em sua revolução artística.
Pedro Páramo é a história de uma busca frustrada e, assim como a narrativa de Hamsun, carrega traços biográficos. A técnica narrativa é desconcertante. Na primeira parte, tem-se a narração em primeira pessoa de Juan Preciado, que é ampliada e amplificada com os relatos também em primeira pessoa de Eduvirges. Há ainda a narração em terceira pessoa, com monólogos interiores diretos de Pedro Páramo, engendrando uma situação em que quase não há distância entre o narrador e o personagem. Também, a narração em terceira pessoa, a partir de um ponto de vista onisciente.
A inversão da ordem cronológica, fazendo o que ocorre ser explicado somente mais tarde, converte a obra em espécie de quebra-cabeças. Ao leitor (como em Rayuela, de Cortázar, La muerte de Artemio Cruz, de Fuentes, ou La casa verde, de Llosa) não resta mais alternativa que a de deixar de lado sua normal passividade de simples receptor para que possa reconstruir para si mesmo o fio que conduz o romance.
Por outro lado, contrariando também a teoria sobre ser Pedro Páramo um romance cujo tema central seria mesmo (ou apenas) a revolução, Donald Shaw expõe, em seu Nueva narrativa hispano-americana, a ideia de que ao nos empenharmos em descobrir o sentido oculto da aparente desordem que nos é oferecida no romance, o método mais fácil é abandonar o já sabido, neste caso o conceito de caciquismo. Com isso, passa-se sem dificuldade ao problema do latifúndio, dos abusos de autoridade (inclusive por parte do governo mexicano), da corrupção do clero e, por fim, chega-se à ideia do fracasso da Revolução Mexicana. Mas Shaw não deixa de expor uma dúvida: como se explica um episódio tão enigmático como o do casal incestuoso? Caberia aceitar sem mais nem menos que a irmã, a única mulher em todo o livro de quem não sabemos o nome, cumpre o papel de símbolo da pátria corrompida, segundo propõe o crítico nacionalista Ferrer Chivite? E o que dizer do irmão?
A ideia de Ferrer é pouco convincente para Shaw. Com vista a aclarar o significado do episódio, temos que recordar quantas vezes, na nova narrativa, nos deparamos com a inversão dos mitos cristãos, encontrados em El Señor Presidente, de Astúrias; no Informe sobre ciegos, de Sábato; e em El lugar sin límites, de Donoso, e ainda nas evidentes referências bíblicas de Cien años de soledad, de Márquez, ficando aqui nos exemplos mais óbvios. Nesse caso, como apontou Fuentes, trata-se do casal edênico: Adão e Eva. Um Adão e uma Eva bestiais, sem prole, que jamais tomaram conhecimento de um Paraíso, muito menos de um deus bondoso. Ao contrário, vivem desde sempre desesperançados, em um inferno, regidos por um ente todo-poderoso, mas cruel. Ao entrarmos mais fundo nesse caráter mítico do romance, podemos reconhecer, segundo Octavio Paz e Julio Ortega, que a busca de Juan Preciado é a busca de um Paraíso perdido e de um Pai Todo-Poderoso. Termina com o desengano total de Juan e o assassinato simbólico do Pai por outro filho (bastardo). Com isso, podemos compreender também que Pedro Páramo contém, na verdade, uma alegoria, mas não da vida mexicana somente. Rulfo alegoriza a peregrinação do homem na terra. A busca de um paraíso perdido apenas desvela um inferno povoado de mortos e um casal Adão e Eva degradados. Mesmo a morte não oferece descanso. Segue-se sempre sofrendo, expiando uma culpa que não se sabe exatamente qual é. Nesse romance tudo é opressão: física, espiritual. Só há um elemento positivo, que é o amor sensual, pagão, entre Susana San Juan e o marido Florencio. O amor triunfa sobre a morte física, a culpa e sobre o próprio inferno. Portanto, se quisermos explicar o grande êxito literário de Pedro Páramo, temos mesmo que interpretar o romance em termos universais, fazendo sua devida relação com a desorientação espiritual do homem moderno.


*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

Escritor e Doutor em Letras.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Uma nação, uma língua, uma literatura

Otto Leopoldo Winck*

O processo de aldeialização do globo – isto é, o processo de unificação cultural que começa reunindo clãs e tribos e tem por fim a consolidação de um sistema-mundo, para nos servirmos da terminologia de Immanuel Wallerstein – nem sempre foi contínuo e linear.[i] Antes da emergência das culturas nacionais, houve na Europa ocidental e central um sistema cultural relativamente homogêneo, assentado sobre os pilares da herança judaico-cristã e greco-romana. Neste vasto espaço social os intelectuais e literatos, por cima de suas diferenças étnicas e regionais, compartilhavam um repertório comum de regras e materiais. Por toda a Idade Média, as fronteiras políticas, extremamente flexíveis, porosas e retalhadas, não guardavam relação com as fronteiras muito mais amplas e nítidas desta cristandade de vocação universalista, onde o outro, ou estava do lado de fora (os muçulmanos), ou segregado em guetos (os judeus). Neste grande aldeia europeia não era incomum que alguém, nascido em Castela e morto em Bolonha, como São Domingos, fundador da ordem dos dominicanos, fizesse pregações na Dinamarca, circulasse constantemente por Roma e Paris, e mandasse seus discípulos fundarem conventos em lugares tão díspares como Inglaterra, Escandinávia, Alemanha e Polônia. Mais tarde, na Idade Moderna, essa respublica clericorum é substituída por uma respublica litterarum. O holandês Erasmo de Roterdã, por exemplo, lecionou com a mesma desenvoltura em centros como Paris, Lovaina, Veneza, Basileia e Cambridge, e em suas muitas viagens esteve inclusive em Portugal. O substrato cultural de todos os membros desta república é praticamente o mesmo. Longe de localismos, a literatura é “universal”. As cartas que trocam entre si – primeiramente em latim e depois em francês – atestam este fato. Com a emergência do nacionalismo, todavia, esta unidade se fragmenta e, em vez da Weltliteratur [literatura mundial], como pretendia Goethe, irrompem as literaturas nacionais, de modo que a literatura em alemão, em francês, em português vão se transformar aos poucos nas literaturas da Alemanha, da França, de Portugal, as quais vão contribuir na configuração dessas novas identidades nacionais.
Num artigo sobre a importância das atividades literárias para a formação das nações da Europa, Itamar Even-Zohar se pergunta se a literatura não seria um fenômeno inerente à realidade europeia.[ii] A resposta não é simples. “Não há, talvez, nenhuma sociedade organizada por nós conhecida que não tenha uma espécie de ‘literatura’ (...)”.[iii] Todavia, embora as atividades literárias não sejam uma exclusividade da história europeia, ele pensa que
(...) os papéis que elas desempenharam na organização da vida europeia podem, de facto, ser únicos. Quando estes fenómenos se verificam em países não europeus durante os séculos dezanove e vinte, constata-se que não se trata de uma continuação de actividades literárias previamente existentes nesses países, mas antes de uma actividade nova, resultante do contacto com as nações europeias.[iv] 
Para compreender a origem desta função talvez única que a literatura exerceu na sociedade europeia a partir do século XVIII, é preciso retroceder não só às origens da Europa mas aos albores da própria civilização. A primeira cultura letrada de que se tem notícia floresceu entre os sumérios na Mesopotâmia, onde a relação com os textos, tanto escritos quanto recitados, desempenhou um papel de destaque. Não somente a elite tinha acesso diretamente ao repositório textual, como produtores e intépretes, mas também boa parte da população, em ocasiões festivas, tomava contato com o acervo de textos. O Código de Hammurabi, as inúmeras estelas, as minuciosas descrições dos feitos dos governantes, tudo isto, embora não possa provar a acessibilidade dos textos, demonstra sua centralidade na vida social. Ao mesmo tempo, ao estabelecer a escola como uma instituição de poder, os sumérios também criaram o cânone: um conjunto de narrativas por meio das quais o mundo era interpretado.
Estas narrativas tornaram-se muito poderosas no momento de transmitir sentimentos de solidariedade, de pertença e, fundamentalmente, de submissão a leis e decretos, que deste modo não precisavam de ser impostos apenas através da força física. Assim, a cultura suméria foi a primeira sociedade a introduzir as actividades textuais como uma instituição indispensável, usando-a com o objectivo de criar uma coesão sócio-cultural.[v] 
As características desenvolvidas pelos sumérios são assumidas pelos povos que gradualmente os substituiram, como os acádios, os babilônios, os hititas, os assírios e uma série de tribos e cidades-estados que se espalham entre o Eufrates e o Mediterrâneo, para não falar do Egito, que se desenvolveu de uma maneira relativamente autônoma. Por conta das novas pesquisas, os laços entre essas sociedades e a Europa vão se clarificando cada vez mais. Como os próprios gregos reconhecem, o seu alfabeto tem origem fenícia. Ainda que não se tenha certeza, pode-se afirmar com alguma probabilidade, que a “literatura”, entendida aqui como atividade textual, “encontrou o seu caminho a partir da Mesopotâmia, tendo os hititas (e talvez os lúvios) como intermediários, até à cultura grega, através da qual se propagou, ao longo do tempo, às várias sociedades europeias, num processo em cadeia.”[vi] Enquanto não se pode medir o grau de coesão social produzido pela literatura nessas sociedades do Crescente Fértil, é na Grécia que se observa pela primeira vez evidências dessa função. Pode-se falar, nesse caso, com as devidas reservas, de uma viragem – ainda que ela provavelmente não tivesse ocorrido sem a invenção do alfabeto em Canaã. O repertório literário, até então propriedade de um pequeno círculo de dirigentes e de seus assessores, passa a ser partilhado por camadas mais amplas, ainda que não abarquem mais do que uma parcela da sociedade. E mais:
As actividades textuais têm agora lugar ao ar livre e não se limitam a hinos públicos ou a estelas com inscrições inacessíveis, mas alcançam uma audiência cada vez maior. Permitem inclusivamente uma certa crítica social e um tratamento menos reverente dos governantes (em particular na tragédia e na comédia). Além disso, as histórias dos tempos passados formam gradualmente um cânone amplamente aceite e convertem-se em elementos básicos de ensino e de auto-diferenciação para grupos cada vez mais amplos. (...)
Além disso, através destes textos, a Koiné grega alcançou muito mais êxito do que qualquer outra língua precedente (em comparação, o caso assírio foi antes um fracasso; quando o Império caiu, ninguém continuou a falar assírio: a maior parte da população já tinha passado a falar arameu). Talvez tenha sido na Grécia que se constituiu um modelo através do qual uma língua de índole literária conseguiu substituir gradualmente as variantes locais, para além de transmitir coesão sócio-cultural através dos textos. (...)
Talvez deva ser atribuída à Grécia outra mudança crucial, a saber, a clara proliferação de sistemas culturais e “literários”. Enquanto que os textos na cultura suméria (inclusive os que eram recitados em ocasiões públicas) eram compostos por membros de uma elite e os textos na Babilónia, Assíria ou nos reinos hitita e egípcio eram compostos pelos homens de letras, a Grécia proporciona-nos culturas textuais tanto de elite como de carácter popular. (...) A origem da noção moderna de “literatura” como algo relacionado com textos escritos situa-se claramente na Grécia.[vii] 
Como se sabe, etruscos e romanos, e posteriormente, todos os demais povos europeus, beberam da cultura grega. Enquanto a cultura grega, ou melhor, helenística, foi adotada como parte da cultura romana dominante, esta produziu um repertório próprio, decalcado das regras do protótipo grego. Virgílio não teria escrito a Eneida se não existisse antes uma Ilíada e uma Odisseia.
Ainda que na Idade Média vigesse na Europa uma grande variedade étnica, a herança greco-romana, aliada aos interesses centralizadores da Igreja e dos governantes, não permitiram a eclosão de entidades locais. No entanto, quando foi preciso “inventar” as nações, todo um conjunto de regras e operações já estava potencialmente à disposição.
As “nações” ou identidades francesa, alemã e italiana, do ponto de vista da coesão social, são invenções tardias. Para construí-las, foram mobilizados e utilizados processos já consagrados pelo tempo, naturalmente ampliados e adaptados às circunstâncias locais. Os textos, produzidos numa língua nova ou uniformizada de novo, funcionaram em todos estes casos como um destacado veículo de unificação para pessoas que não se considerariam necessariamente “pertencentes” a uma determinada entidade para além da sua localidade. 
Na França, o ponto crucial foi a Revolução Francesa, como já foi dito, quando a burguesia não somente amealhou o poder político da aristocracia como também se apropriou dos seus bens simbólicos. Ao mesmo tempo, ao ampliar o sistema escolar, delegou à literatura uma saliente missão na constituição de uma identidade nacional. É bom lembrar que até então boa parte dos franceses não falavam francês. “Tiveram de ser persuadidos, gradualmente, a adquirir este conhecimento, o que não teria sido possível sem os muitos textos que foram utilizados como instrumentos deste empreendimento (...).”[viii] Ou seja, a literatura, a “nova” literatura nacional, não só descreve a nação como a escreve – e, ao re-escrever seu passado, a inscreve na modernidade.

Nos casos alemão, italiano, búlgaro, servo-croata, checo e talvez mesmo no grego moderno, a “literatura” foi mesmo indispensável para a criação das respectivas “nações”. Em cada um dos casos, um pequeno grupo de pessoas, (...) conhecidos popularmente como “escritores”, “poetas”, “pensadores”, “críticos”, “filósofos” e similares, produziram um enorme corpus de textos para justificar, sancionar e sustentar a existência (ou o seu desejo) e a pertinência de tais entidades – as nações alemã, búlgara e italiana, etc. 
O caso da Alemanha,  aliás, é sintomático. Even-Zohar evoca o exemplo do pequeno Estado de Luxemburgo, um grão-ducado que estranhamente escapou ao processo de unificação alemã. Sua principal língua é o luxemburguês, um “dialeto” germânico que ascendeu ao status de língua nacional apenas pelo fato de ser a língua oficial de um Estado independente. Tal como ele, antes de 1871, havia inúmeros ducados e principados no atual território do Estado Alemão. Não houve nada de “natural” na anuência desses diminutos Estados em se unirem à Prússia,
tendo em vista a criação da união alemã, nem houve nada de “natural” na sua aceitação de uma língua denominada “Alto alemão” (Hochdeutsch), unilateralmente uniformizado (...). Mas foi a reputação dos textos produzidos nesta língua pela geração de Goethe, Schiller e outros que afinal criou a nova nação alemã.[ix]
Este pacote – “uma nação, uma língua, uma literatura”[x] – já não era, quando da unificação alemã, uma novidade. Mas de toda forma ele teve que ser deliberadamente planejado e implementado. Como no caso dos patois na França, todas as demais variantes linguísticas que não se conformavam ao novo modelo do alemão foram descartadas ou reduzidas ao estatuto de “dialetos”.
Um processo semelhante ocorreu à Itália, cuja unificação foi concluída em 1870. Com efeito, não havia nos habitantes dos vários Estados que retalhavam a península itálica nada que os tornassem “italianos”. Todavia, um conjunto de ativistas, tal como os seus equivalentes alemães, “utilizaram a reputação de textos escritos numa língua que quase ninguém falava, para popularizar o mesmo género de proposta (...).”[xi] A língua a que hoje chamamos italiano estava praticamente morta: dos 22 milhões de habitantes da península, somente cerca de 600 mil o compreendiam em 1860.[xii] Mesmo os maiores escritores em italiano, como Alessandro Manzoni (1785-1873), tinham mais fluência em francês.
Com efeito, este modelo de construção nacional revelou-se extremamente exitoso na Europa – e em seguida foi replicado com igual sucesso nos demais continentes. Na América, como não havia o diferencial da língua em relação às metrópoles, foi exigido ainda mais da literatura a construção de uma identidade diferenciada. No Brasil, basta ver José de Alencar, às voltas com seus índios, sertanejos e gaúchos, em seu empenho de configuração da identidade brasileira. Assim, da ancestral Suméria à Itália unificada, passando por uma infinidade de povos, impérios e nações, o arcabouço de atividades textuais a que chamamos literatura foi de grande relevância para a coesão social de grandes entidades coletivas – e na modernidade, junto com outros elementos, “criou” as nações modernas.

Notas
[1] Sobre o conceito de sistema-mundo (World System) cf. WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
[1] EVEN-ZOHAR, Itamar. O papel da literatura na criação das nações da Europa. In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (ed.). Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte Guimarães (Portugal): Opera Omnia, 2011, p.77-99. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/IEZ_ 2011--O%20Papel%20da%20Literatura.pdf > Acesso em: 12 fev. 2012.
[1] EVEN-ZOHAR.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 79.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 80.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 81-82.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 84-85.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 90.
[1] EVEN-ZOHAR, p.  90-91.
[1] Jocosamente, Even-Zohar chama este conjunto de três itens de package deal. Ibid., p. 91.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 92.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 93. Os dados são retirados de MAURO, Tulio de. Storia linguistica dell’Italia unita. Roma: Laterza, 1963. Somente em 1980 o italiano tornou-se a língua falada pela maioria da população.



REFERÊNCIAS

EVEN-ZOHAR, Itamar. O papel da literatura na criação das nações da Europa. In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (ed.). Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte Guimarães (Portugal): Opera Omnia, 2011, p.77-99. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/IEZ_ 2011--O%20Papel%20da%20Literatura.pdf > Acesso em: 12 fev. 2012.

MAURO, Tulio de. Storia linguistica dell’Italia unita. Roma: Laterza, 1963.

WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.


*Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, capital. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba. Em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond.  2012 foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, com o volume Desacordes. Doutor em literatura pela UFPR, leciona atualmente na PUCPR e no Mestrado 
em Teoria Literária da Uniandrade.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A ruptura psicológica/social de Vestido de noiva

Luiz Zanotti*

O ensaio a seguir busca mostrar o importante momento do desenvolvimento do teatro no Brasil, através de uma breve discussão sobre a peça Vestido de noiva a partir dos seus textos e de algumas críticas referentes a montagens das mesmas. Vestido de noiva é uma obra que está na própria origem do moderno teatro brasileiro, com Nelson Rodrigues construindo um universo dramático absolutamente original, fazendo uso do teatro da memória com maestria (parece ter tido forte influência de Eugene O’Neill, Luigi Pirandello ou Henrik Ibsen –, autores que Nelson, aliás, dizia não conhecer, embora isso fosse pouco provável), rompendo com a narrativa linear, e mostrando um sujeito pós-moderno, e, portanto, fragmentado, um sujeito que perdeu um “sentido de si” estável (Hall, A identidade na pós-modernidade).
Para que tais resultados sejam possíveis, Nelson Rodrigues divide o palco em três planos diferentes: um para a memória, outro para a realidade e o terceiro para as alucinações. O diretor polonês Ziembinski vai concretizar estas divisões através de recursos de iluminação, que divide os planos, e sonoplastia que traz as vozes de pessoas não presentes, num recurso cujo principal objetivo parece ser o de acentuar a natureza multifacetada do sujeito do inconsciente.
Assim, esta informação fragmentada, ora através da iluminação de imagens visuais obtidas pela apresentação de cenas mudas, ora através de sons que inesperadamente invadem o silêncio do teatro por intermédio de algum microfone estrategicamente colocado, ora através dos diversos planos, acabam por formar um quebra-cabeças que o espectador vai montando pouco a pouco.
Este quebra-cabeças que se passa dentro da mente da mulher atropelada, que embaralha fatos “reais”, imaginários e até alucinações correspondem aos diversos planos em que foi dividido o palco, dentro de uma trajetória não linear, que para Benjamin (Benjamin, W. In: GAGNEBIN, J. M., História e narração em W. Benjamin), em sua não linearidade, assim como o véu tecido por Penélope, se encontra nos movimentos, as vezes complementares, as vezes opostos dos fios da trama e da urdidura, na descrição do esquecer como princípio produtivo, na comparação com as franjas tecidas pelo esquecimento e seus ornamentos.
Em seu comentário sobre o espetáculo, Almeida Prado cita o ator Sérgio Cardoso, aprovando a sua atuação de uma forma como se o expressionismo nunca tivesse existido: “Sua encenação é original no sentido mais raro e genuíno da palavra, o etimológico, no sentido de provir diretamente da origem, de ter voltado ao texto, deixando-se guiar e inspirar exclusivamente por ele” (Prado, D. A. Teatro em progresso).
Enfim, Vestido de noiva apresenta ao público, o que se passa na memória de uma mulher atropelada durante uma operação de emergência, com sua mente relembrando várias passagens, reais ou num estado de delírio que muitas vezes lembra A morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller dentro, e de uma perspectiva barroca dá face ao próprio delírio, causando uma ruptura na tradição cênica brasileira.

*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A carnavalização em notícias e imagens do mundo

Sigrid Renaux*

Considerado por Mikhail Bakhtin como “um dos problemas mais complexos e interessantes da história da cultura”, o carnaval

(no sentido de conjunto e todas as variadas festividades, ritos e formas de tipo carnavalesco), da sua essência, das suas raízes profundas na sociedade primitiva e no pensamento primitivo do homem, do seu desenvolvimento na sociedade de classes, de sua excepcional força vital e seu perene fascínio. (BAKHTIN, 2005, p. 122)

– continua presente na vida diária de todos nós. Basta examinar as notícias e imagens nos jornais, televisão e internet para nos dar conta de sua força e fascínio.
Oriundas do fato de que, durante o carnaval, vive-se uma vida desviada de sua ordem habitual, as categorias carnavalescas apresentadas por Bakhtin – o livre contato familiar, excentricidade, as mésalliances carnavalescas e a profanação – continuam a se concretizar diariamente à nossa volta, muitas vezes sem nos darmos conta de sua origem. O mesmo acontece com relação às ações carnavalescas (a coroação bufa e o destronamento do rei do carnaval), às imagens carnavalescas (imagens pares, objetos, o fogo, o riso, a paródia), à praça carnavalesca e outros lugares de encontro e contato de pessoas, como ruas, tavernas, estradas, bem como com relação ao discurso familiar de rua (a gesticulação e linguagem do insulto e da zombaria), todos eles impregnados do simbolismo do ritual de coroação-destronamento.
Examinando apenas algumas das manifestações recentes de ações carnavalescas e dos diversos ritos secundários do carnaval – como as mudanças carnavalescas dos trajes, as mistificações carnavalescas, as incruentas guerras carnavalescas, a troca de presentes (a abundância como momento da utopia carnavalesca), (BAKHTIN, 2005, p. 125) – basta lembrar, dentre outros:

Tomatina
A Tomatina, tradicional festa que ocorre em Buñol, próximo a Valência, na Espanha, faz parte de uma semana inteira de festas em honra ao patrono da cidade, São Luis Beltrão, com desfiles, exibições de fogos de artifício, bailes nas ruas e concursos de paellas. Celebrada anualmente por uma hora na última quarta-feira de agosto, na Plaza Mayor, a Tomatina começou nos anos 40, com uma batalha entre amigos e, atualmente, milhares de pessoas participam desta “guerra” de tomates, na qual festeiros arremessam tomates uns nos outros e depois nadam em meio à polpa de tomate.
 Como a imagem revela,

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esta guerra, que consume toneladas de tomate, é apenas uma das manifestações dos ritos secundários do carnaval, as “incruentas guerras carnavalescas” mencionadas por Bakhtin, nas quais o livre contato familiar entre os participantes desfilando nas ruas – palco das ações carnavalescas –, fazendo brincadeiras e depois nadando em meio à polpa de tomate, as mudanças de trajes, a abundância e o riso concretizam outros ritos secundários carnavalescos, todos eles impregnando as festas ao patrono da cidade com a alegre relatividade do carnaval.

Corrida das Cores

www.660x372- gazetadopovo.com.br/mundo em 20/04/2015


Como consta na legenda,
                                                                                                                                  Milhares de pessoas e muito colorido tomaram as ruas de Paris, na França, na manhã de domingo (19). Elas participaram da Corrida das Cores, evento em que os participantes correm um percurso de cinco quilômetros e são cobertos com tintas de diversas cores. Ao final, elas se reúnem em um festival de música.

 A mesma corrida, que ocorre igualmente em diversos estados norte-americanos – a “color run” –, também acontece em algumas capitais do Brasil (Recife, Vitória, Rio de Janeiro). Tendo como inspiração o Festival das Cores, tradicional celebração indiana que comemora o início da primavera, a Corrida das Cores no Brasil objetiva alcançar, por meio desta jornada de alegria, experiências sociais, visuais e sensoriais, o mesmo espírito de celebração no qual de é possível brincar em família, entre amigos, sem pensar em competir (http://www.corridadascores.com/acorrida.php):



             
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Em ambas as imagens, percebemos novamente o liame profundo que se estabelece com o carnaval, na definição bakhtiniana, nas quais temos, além das ruas e praças como local de encontro das pessoas – eliminando as distâncias entre os homens –, também a “organização de ações de massas”(BAKHTIN, 2005, p. 123), pois “os participantes recebem um banho de pó colorido com uma cor específica,chegando ao final do percurso com todas as cores nas roupas, no corpo e no sorriso” (http://www.corridadascores.com/acorrida.php). Aproximam-se assim, por meio da Corrida das Cores (com suas imagens carnavalescas de roupas, corpos e sorrisos cobertos de cores variadas), festividades com raízes profundas na sociedade primitiva com festividades atuais.

Panelaço
Definido como “manifestação popular coletiva de protesto que consiste em fazer grande ruído percutindo especialmente utensílios metálicos numa hora determinada” (Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa), o panelaço tornou-se uma das opções mais democráticas para a demonstração da insatisfação dos brasileiros contramedidas governamentais. Basta lembrar, entre outras, das imagens do protesto dos professores contra os baixos salários realizado na Bahia, nas quais o uso de utensílios domésticos como armas e, portanto, como objetos carnavalescos, nos remete à natureza ambivalente dessas imagens: trata-se “de uma manifestação específica da categoria carnavalesca de excentricidade, do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada do seu curso habitual” (BAKHTIN, 2005, p. 126).

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Deste modo o panelaço, como uma grande ação de massas e gestos carnavalescos, exerce duas funções – uma política e outra carnavalesca –, unindo, assim, o lado sério com o lado lúdico da vida.
Essas manifestações recentes de carnavalização evidenciam, portanto, como o carnaval, como parte da história da cultura, continua a se fazer presente na vida diária das pessoas, em diferentes festejos e contextos, oferecendo inúmeros exemplos, facilmente detectáveis, de sua força vital e atração.

Referências
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
Os 10 Festivais Mais Bizarros do Mundo. IN:forum.outerspace.terra.com.br 400 × 239. Acesso em 11 ago. 2015.
PANELAÇO. Disponível em: Disponível em: www.blogsagaztico.com 956x500. Acesso em: 11 ago. 2015.
*Sigrid Renaux é Professora Titular das disciplinas “Teorias da Poesia” e “Poéticas da Modernidade ” do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE), em Curitiba.