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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O QUARTETO DE ALEXANDRIA, en passant

Brunilda T. Reichmann

No segundo volume da edição em inglês da tetralogia The Alexandria Quartet, publicado pela E. P. Dutton em 1961, Lawrence Durrell, o romancista, poeta e dramaturgo britânico, insere uma nota, dizendo: “Os três primeiros romances (...) foram organizados espacialmente (...) e não estão ligados de forma seriada. Eles se sobrepõem, se entrelaçam, numa relação puramente espacial. O tempo não muda. Apenas o quarto romance apresenta o passar do tempo e é uma verdadeira sequência” (minha tradução). Dos quatro romances que têm nomes de personagens como títulos: Justine, Balthazar, Mountolive e Clea, em Clea apenas o tempo flui para além do limite temporal dos três primeiros livros, que tratam do mesmo momento em Alexandria, mas sob prismas diferentes, numa narrativa multifacetada, complexa, instigando o leitor a uma negociação constante em busca de compreensão. As personagens dos títulos são protagonistas dos romances com seus nomes e permanecem importantes nos que seguem.
É sob o ponto de vista de Daley, um jovem escritor, que adentramos o universo ficcional de Durrell, onde são relatados inúmeros encontros e desencontros de um grupo de amigos na cidade de Alexandria em Justine. A “mesma” história é recontada, as personagens vivem o mesmo momento no mesmo lugar – Alexandria – no segundo volume, Balthazar. Mas a história é realmente outra, porque há informações adicionais e muitas vezes contraditórias, fornecidas pelo manuscrito que é enviado a Darley por Balthazar. Darley, o personagem escritor, vive um emaranhado de emoções, se envolve com duas mulheres, Justine e Melissa, e, juntamente com as outras personagens – amigos, amantes, maridos –, envolve-se numa trama surpreendente, repleta de mistério, sedução e erotismo, construída por Durrell.
Narrado em terceira pessoa, Mountolive, o terceiro volume, (re)apresenta os eventos dos dois primeiros sob uma nova perspectiva. Desta vez a trama gira em torno do diplomata Mountolive e tem início com a paixão dele por Leila, mulher casada com um homem inválido e mãe de dois filhos. Aspectos desconhecidos da vida de Darley, o narrador dos dois primeiros volumes, Justine, Melissa e das outras personagens são revelados e surpreendem o leitor a cada momento, enquanto a trama se intensifica. “É um caleidoscópio de imagens através do qual percebemos novos ângulos das histórias contadas em Justine e Baltazar.”
Em Clea, romance narrado em primeira pessoa, Darley, depois de passar anos isolado em uma ilha com a pequena filha de Nessim, marido de Justine, e Melissa, retorna para Alexandria, o local que lhe traz lembranças de um conturbado passado com seus antigos amigos, entre eles Clea. Esta lhe fornece informações cruciais para que ele e o leitor possam preencher algumas das lacunas que foram deixadas nos romances anteriores. Pursewarden, um dos personagens, parece esclarecer um dos propósitos de Durrell ao escrever O quarteto de Alexandria. Ele diz: “Preste atenção leitor, pois o artista é você, somos todos nós: a estátua que precisa libertar-se do monótono bloco de mármore que a aloja para então começar a viver” – em clara alusão a Michelangelo.
O estilo de Durrell também sofre alteração nos romances. No primeiro, ele sugere uma mente tentando encontrar um sentido no emaranhado de eventos caóticos ou pelo menos ininteligíveis em Alexandria. Estes são relatados de acordo com a ordem de importância na mente de Darley, e nós, leitores, nos vemos em busca de um sentido tal qual o narrador. Em Balthazar, temos um narrador mais relaxado, há passagens narrativas mais longas e o foco do romance se expande. A visão da “realidade” de Darley tem que se adaptar a novas descobertas, seu estilo não sugere mais a ansiedade de um narrador em busca sedenta por causas. O segundo volume também prenuncia a técnica tradicional que será usada no terceiro. Temos a sensação que o estilo de Durrell – sua linguagem e técnica narrativa – torna-se uma metáfora para mundo caótico em processo de organização na tetralogia. Caso essa sensação seja válida, temos que aceitar a noção de que, em Mountolive, Durrell sugere uma organização da experiência ou pelo menos uma progressão reconhecível em direção à organização da experiência de Darley. Mas, talvez possamos dizer que, se por uma lado, concordamos com o comentário do narrador sobre o fato de que ele apresenta a relatividade da “verdade” nos três primeiros volumes, por outro lado, temos que acrescentar que Justine, Balthazar e Mountolive, apesar de apresentarem diferentes aspectos da “verdade”, se predispõem em cada volume subsequente a negociar com a “verdade” oferecida no(s) anterior(es) e a modificá-la.
Em O quarteto de Alexandria, a escritura literária é também um dos temas do texto: “é o fio condutor de uma história estruturada numa linguagem sofisticada e intertextual, repleta de referências a outros livro e outros autores”.  Nós, leitores, ficamos cientes, ao ler a tetralogia, que estamos diante de uma das mais instigantes obras literárias da metade do século XX, onde “realidade” e literatura se entrelaçam para criar uma tessitura novelística densa, profunda e inusitada.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O BANHO DE LAMA COMO RITUAL DE PASSAGEM E DE CARNAVALIZAÇÃO
                                                                                                    
Sigrid Renaux   



Festa dos novos universitários: aprovados no vestibular da PUCPR comemoraram ontem com o tradicional banho de lama, em Curitiba. A festa, que começou por volta das 14 horas, também contou com banho de espuma e trio elétrico. (Gazeta do Povo, 4 de novembro de 2014, p.1).

Na fotografia acima, pela alegria que expressam esses jovens, rindo e gesticulando com vestes e corpos cobertos de lama, poderíamos concluir que esta tradição do ensino superior brasileiro – o trote do banho de lama como uma forma de inserir os calouros numa nova fase – seria uma maneira de aproximar os calouros dos veteranos, por meio de um “ritual de passagem”. De acordo com Antonio Zuin (UFSCar),  autor de O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação,

os candidatos aos cursos das primeiras universidades europeias não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos e, portanto, assistiam às aulas a partir dos "vestíbulos"- local em que eram guardadas as vestimentas dos alunos. "As roupas dos novatos eram retiradas e queimadas, e seus cabelos, raspados. Essas atividades eram justificadas sobretudo pela necessidade de aplicação de medidas profiláticas contra a propagação de doenças" (citado por Marina Dias em “A origem medieval do trote universitário”).

O trote do banho de lama, especificamente, utilizado como “ritual de passagem” pelos universitários veteranos brasileiros, faz parte, portanto, de um simbolismo muito mais amplo. Pois, como é de conhecimento geral, em todas as sociedades primitivas, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias especiais, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, mais do que representarem uma transição particular para o indivíduo, representavam igualmente a sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto tanto o cunho individual quanto o coletivo.
Basta lembrar, entre outros, os rituais realizados pelos índios pataxós para comemorar a chegada das chuvas, quando faziam o plantio de roças e, ao final do ritual, acontecia um banho de lama e água para purificação do corpo e da mente, num momento de alegria e descontração entre todos, celebrando e lembrando sobre como surgiu o povo Pataxó os filhos da água. http://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Patax%C3%B3. Ou ainda os festivais da lama em Yotsukaido, ao leste de Tóquio, com homens de trajes característicos participando destes festivais, que têm como objetivo desejar boa colheita e boa saúde para os bebês.
Entretanto, existem muitas outras tradições em que os banhos de lama, como cerimônias especiais, têm destaque. Entre elas, dentro da história da cultura, as festividades de tipo carnavalesco. O carnaval, definido por Bakhtin como “forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares” (2005, p. 122), com suas diversas categorias, ações, imagens e locais de festejo, irá acrescentar sua polivalência simbólica a este ritual universitário.
Se o trote é definido como uma “tentativa de ridicularizar calouros, por parte dos veteranos” (HOUAISS), o ritual do banho de lama, ao se inserir dentro das festividades de tipo carnavalesco, concretiza também a “ alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição hierárquica” (BAKHTIN, 2005, p.124). Pois, assim como a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval – a principal ação carnavalesca – o banho de lama a que os calouros se submetem de livre vontade, lembra os veteranos de seu próprio banho de lama no ano anterior e aponta para os novos calouros que no próximo ano eles serão os que irão aplicar este trote nos próximos calouros. A brevidade do trote, portanto, como “vida carnavalesca” de um dia, na qual a vida é “desviada de sua ordem habitual”, não apenas estimula o “livre contato familiar” entre estudantes que ainda não se conheciam, nesta “praça pública carnavalesca” onde se encontra a grande fossa cheia de lama.
Os estudantes, ao se banharem na lama – como mistura de terra e água, a lama une o princípio receptivo e matricial (terra) ao princípio dinamizante da mudança e das transformações (água) (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1973, p.230) –, estão inseridos num ritual  de passagem e de iniciação, mas também de carnavalização, ao manifestarem sua libertação (provisória) do sistema e da ordem da vida comum (os jugos da vida de estudante  preparando-se para o vestibular) que os determinava na vida extracarnavalesca, para usufruirem, por um dia, uma vida carnavalesca.



segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A FICÇÃO AUTOBIOGRÁFICA DIANTE DO TEMPO PARA A MORTE: NARRAR OU
 MOSTRAR COMO POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DA VIDA

Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE)

Paul Ricoeur atrela a narrativa literária àquele ponto da existência em que o ser consciente olha o tempo já transcorrido como sendo uma “distensão da alma” e pode refletir. Narrar o passado representa a possibilidade de construir seu sentido. A narrativa literária sabe disso, como aponta Ricoeur ao dizer que ela não explica o tempo real, mas torna as pessoas reflexivas acerca da verdadeira temporalidade, que é um desafio para o ser consciente. Existe o passado, como distensão, mas também o futuro, como propensão. Diante desse futuro a ser vivido, o ser olha para a limitação do tempo que lhe resta. O futuro é o tempo para a morte, mas é nele, conforme Heidegger, que o ser constrói o sentido da sua existência. A narrativa literária contém exemplos dessa tomada de consciência, pelo narrador, de que olhar para o tempo que se distende, como passado, é forma de construir o sentido inclusive para aquele tempo que resta antes da morte.
Proust é modelar nas páginas finais de Em busca do tempo perdido, ao pensar a literatura como elemento perene diante da mudança. Fazer literatura é reter, pelo sentido e, sobretudo, pela beleza, o fluxo incessante. A ficção autobiográfica coloca-se diante de tal dilema: o tempo para a morte representa a possibilidade de reter a vida. No entanto, as ficções moderna ou pós-moderna assumem o dilema retórico apontado por Booth: narrar ou mostrar.
Ao narrador autobiográfico não basta assumir a posição de adulto que observa e explica o passado distendido. Não basta narrar fazendo uso de uma voz narrativa adulta. Falando sobre a infância, a narrativa oscila entre uma enunciação adulta e uma outra, fingidamente infantil. O texto prefere mostrar a passagem por situações escolhidas como portadoras de conflito e que, consequentemente, implicam na construção da personalidade da personagem. Pode haver um verdadeiro problema. Mas esses conflitos passam, muitas vezes, pelo tipo de problema que Deleuze considera como “falso” ao comentar Bergson: na narrativa literária, o corriqueiro ganha foros de conflito para que, ainda que predomine o comentário, exista uma história sendo narrada.
Em Munro, as personagens vivem situações em que há conflitos, mesmo quando motivados pela rotina. Muitas vezes, a natureza destes é intensa, o que leva a desfechos trágicos. A autora ainda narra situações que se ampliam, causam desconforto, mas que gerariam apenas atmosferas em que um elemento é causa de desequilíbrio, se não fosse a presença da ação que modifica os estados; o fato trágico é uma mão sobre os contos, a garantir que eles contenham história e não apenas comentário, para retomar a terminologia de Weinrich. Em Vilela, ao contrário, essas personagens-crianças estão diante de situações corriqueiras da infância, o que faz com que os contos ganhem um contorno anedótico. O contista prefere que os enredos percam o valor de elementos capazes de mudar um estado durável. Há comentário, há atmosferas, mas existe uma história a ser contada, mesmo corriqueira. Por isso, ela pode parecer o efeito da lembrança de um adulto que talvez narre não à procura de sentidos diante da morte, mas sob o efeito de afecções, como a saudade, ou da noção de pitoresco. Não se pode negar, mesmo quando a possibilidade heideggeriana de produzir sentido a partir da narrativa volta-se para a produção da beleza, antes que à interpretação do real, que é o mesmo impulso provocado pela visão do tempo da morte, diante da possibilidade de produzir algo perene. Tanto o impulso de interpretar o passado, perceptível em Munro, quanto o de gerar processos narrativos altamente literários, em Vilela, são execuções dessa possibilidade de a literatura instaurar-se em outro fluxo temporal, diferente daquele que reduz as pessoas à condição proustiana de fantoches ou as leva à morte. Em ambos, quer-se mostrar, através de recursos que especificam uma enunciação infantil diante de uma situação, seja de forma oral ou escrita, a posição do narrador como ambíguo. Não se trata de uma criança tomando a palavra, mas também não se tem integralmente uma dicção adulta, no plano do fingimento. Às vezes, percebe-se o adulto refletindo; outras vezes, o desnorteamento da voz infantil mostra o conflito, como se concomitante à narração. Exemplos notórios dessa técnica são os contos de Luiz Vilela, em Contos da infância e da adolescência, e os de Alice Munro, em Vida querida. Enquanto o escritor brasileiro persegue a experimentação, a variação nos procedimentos enunciativos fingidos, que faz com que tais contos passem da conversa ao desabafo, da carta à redação escolar, a escritora canadense ratifica, em cada texto, o seu estilo reconhecível, o modo de narrar dos narradores munrianos que contam fatos de um passado real ou fingido, mas que nunca abandonam a condição daquele que olha o tempo distendido para tentar compreendê-lo.
Existe, para Deleuze, uma concomitância entre o tempo passado e o presente; esta se percebe nos contos feitos pelos dois autores abordados. Tal concomitância está contida na imagem deleuzeana do cone como representação do tempo: o vértice contém o estreito presente em que se narra (um tempo da narração, na terminologia de Genette), o passado se alarga, por isso precisa que o cone se expanda, tempo da memória (e da narrativa, na terminologia genetteana). No entanto, os tempos se imbricam quando os narradores assumem uma enunciação que confunde: pode ser a criança ainda falando, algo que é evidente em alguns dos contos de Vilela, no qual o desafio técnico é não fingir ser a voz do adulto que relembra o passado, mas fingir ser o menino que, tantas vezes, comenta os fatos, procurando não os afastar demais do presente da narração. Em Munro, os narradores se colocam no presente, mas o estilo cria muitas vezes a sensação de que é a personagem-criança que usa a voz e apenas comenta. Os efeitos provocados pelos narradores não conseguem mudar a natureza dessa ficção: fora do fingimento, são adultos falando de situações da infância, atribuindo a elas a condição da beleza, possibilidade proustiana da permanência do passado como arte. Não há dúvida de que a narrativa autobiográfica é forma de se olhar o tempo decorrido e entender ou criar seu sentido, sobretudo em Munro; em Vilela, mostrar o passado através da beleza já é pleno de sentido. Algo que funciona, em ambos, como um suporte para a elaboração de elementos essenciais à literariedade da narrativa. Essa abordagem de exemplares da narrativa autobiográfica como modelos das possibilidades de se olhar o tempo, conforme propunha Ricoeur, pode ilustrar o que o filósofo considerava uma das razões de se fazer literatura. Mas também alguns dos modos pelos quais a narrativa literária constrói esse olhar. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

BRASA XII, King’s College, Londres
Profa. Anna Stegh Camati

            A Associação de Estudos Brasileiros (BRASA) é um grupo interdisciplinar e internacional de pesquisadores que promove os estudos brasileiros em âmbito global. De 20 a 23 de agosto de 2014, participei do 12º Congresso Internacional da Associação que aconteceu no King’s Colllege em Londres. O congresso contou com aproximadamente 200 painéis, formados por pesquisadores de diversas áreas de conhecimento, sessões plenárias e eventos especiais. No dia 21 de agosto,  apresentei o meu trabalho, intiltulado “Brazilian Outdoor Shakespeares: Street Theatre as Public Art” (Shakespeare ao ar livre no Brasil: O teatro de rua como arte pública), parte de um painél chamado “Shakespeare in Brazil: Investments in the Local and the Global” (Shakespeare no Brasil: Investimentos locais e globais), coordenado pela Profa. Cristiane Busato Smith (Arizona State University). A minha apresentação girou em torno da eclosão de produções shakespearianas no teatro de rua brasileiro, com ênfase em três coletivos de teatro, de diferentes regiões do Brasil,  reconhecidos nacional e internacionalmente: os Clowns de Shakespeare  (região nordeste), o Grupo Galpão (região sudeste) e o Grupo Ueba (região sul). Enquanto o Grupo Galpão e os Clowns de Shakespeare promovem o abrasileiramento de Shakespeare e  exploram a  interculturalidade, optando por um tipo de expressão que incorpora as tradições populares das regiões que representam, o Grupo Ueba recorre à dramaturgia shakespeariana para problematizar questões de classe, gênero e sexualidade. O painél contou, ainda, com outras apresentações de pesquisadoras brasileiras e estadunidenses, a saber: Liana de Camargo Leão (Universidade Federal do Paraná) – “Shakespeare Brasil: New Tools for Digital Education in Brazil” (Shakespeare Brasil: Novas ferramentas para a educação digital no Brasil); Sheila Cavanagh (Emory University) – “Sing and Dance it Trippingly: Othello and Samba in a Digital World” (Cante e dance com passo leve e rápido: Otelo e samba no mundo digital); Marcia Amaral Peixoto Martins  (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) – “Rewritings of Shakespeare’s Plays for Young Readers: The Manga Shakespeare Series” (Reescrituras das peças de Shakespeare para jovens leitores: A série mangá de Shakespeare); e Cristiane Busato Smith (Arizona State University) – “Shakespeare, Samba, Solace and Escape: An Analysis of Otelo da Mangueira” (Shakespeare, samba, consolo e escapismo: Uma análise de Otelo da Mangueira).

Disponível em: < http://www.brasa.org/Panel/Details/129>

BRAZILIAN OUTDOOR SHAKESPEARES: STREET THEATRE AS PUBLIC ART
Anna Stegh Camati
Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE – Curitiba PR
Regional Editor for Brazil at Global Shakespeares (MIT)

In her recent book Extramural Shakespeare (2010), Denise Albanese argues that Shakespeare’s position in American culture has changed in the years around the turn of the millennium. He is no longer located at the top of highbrow culture, but has become public property. Borrowing from Michel Foucault’s essay “What is an Author?” (1969), which demystifies authorship and establishes the concept denominated author-function, she coins an analogous term – Shakespeare-function – to account for the multiple roles the bard plays in our time. This change is a global tendency which also applies to Brazil. The successful intercultural experiments by Eugenio Barba, Peter Brook and Ariane Mnouchkine have encouraged Brazilian theatre practitioners to desacralize or brazilianize Shakespeare, rejecting orthodox practices and presenting his plays in the open as public art. Since the 1990s, theatre groups from different Brazilian regions, among them Minas Gerais, Rio Grande do Sul and Rio Grande do Norte, have tended to renegotiate the Shakespeare-function by means of displacing his legacy from the realm of the elite. Their main objective is to adapt Shakespeare’s plays for popular audiences, performing them in the streets, squares, parks, marketplaces and other venues of great public circulation, following the contemporary trend of popularization of the bard, also accomplished by the film industry, graphic novels, new media and other manifestations of mass culture. In the light of contemporary theoretical perspectives, this paper proposes to discuss the emergence of Shakespeare in Brazilian street theatre, mainly as regards Grupo Galpão’s Romeu e Julieta (1992), also presented at London’s Globe Theatre in 2000 and 2012, Ueba Troupe’s A megera domada (2009) and Clowns de Shakespeare’s Sua Incelença, Ricardo III (2010). Full videos and additional scenes of these productions are available on the Global Shakespeares (MIT) open access archive.


KEYWORDS: Shakespeare. Brazilian street theatre. Regional accents. Public art. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

SOBRE LITERATURA E CINEMA

Verônica Daniel Kobs*

Umberto Eco, que, em vários textos, analisa o parentesco entre cinema e literatura, falando sobre a obra de Manzoni, em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, escreve: “Não venham me dizer que um escritor do século XIX desconhecia técnicas cinematográficas: ao contrário, os diretores de cinema é que usam técnicas da literatura de ficção.” (ECO, 1994, p.77). Tal citação, ao mesmo tempo que menciona a ligação entre as duas artes, coloca a literatura como pioneira na utilização de recursos que serão, também, usados pelo cinema. É claro que isso se deve ao fato de a literatura ser muito mais antiga que o cinema, arte extremamente nova.
Há autores que são radicais ao defenderem a supremacia da literatura em relação ao cinema. É o caso de José Martínez Ruiz, que afirma, categoricamente: “El cine es literatura, si no es literatura, no es nada.” (CARDOSO, 2005, p. 1). Essa citação desconsidera filmes que não surgiram de obras literárias, ou seja, que não são adaptações. No entanto, pode-se compreender tão enfática afirmação, se for considerada a semelhança entre as estruturas das narrativas literária e fílmica.
Em contrapartida, há críticos que se opõem ao estabelecimento de uma relação tão estreita entre cinema e literatura. É o caso de Sylvio Back, para o qual a relação entre essas artes é “conflituosa”, porque “cinema é visibilidade; literatura é invisibilidade” (BACK, 2005, p. 1). O cineasta vai mais além ainda, rejeitando a possibilidade de comparação entre livros e filmes e afirmando: “Quanto maior a traição, melhor o resultado.” (BACK, 2005, p. 1). Porém, se o intento é dedicar-se ao cinema, considerado por ele um tipo de arte totalmente avesso à literatura, por que usar o texto literário como base? É possível fazer roteiros bastante originais, sem o texto literário servir como matéria-prima, como bem exemplificam os filmes de Glauber Rocha, por exemplo, e tantos outros. 
Para se ter idéia de quão antiga é a utilização que o cinema faz dos textos literários, basta atentar para o fato de que A gata borralheira virou filme, em 1868. Esse processo de transposição de uma arte à outra ganhou maior relevo em 1908, com a criação da Sociedade de Filmes de Arte, que, por sua vez, tinha como principal meta reagir aos modelos ou às fórmulas para se fazer filmes. A saída era, então, investir nas adaptações. Dessa forma, os filmes não seriam previsíveis, nem similares. Porém, o desafio da adaptação era, e ainda é, pensar em soluções para transpor o material literário para as telas, da melhor forma, pensando, inclusive, que o cinema dispõe de recursos que não são acessíveis à literatura e vice-versa.
Essa relação entre literatura e cinema intensifica-se dia após dia, o que pode ser comprovado não só pelas inúmeras adaptações de obras literárias para o cinema, mas também pela criação do Projeto PIC-TV — Programa de Integração Cinema e TV, que estreou com a adaptação da obra O auto da compadecida para a televisão, em um primeiro momento, em formato de minissérie, exibida na Rede Globo, e que, posteriormente, em 2000, foi transformada em filme. O projeto deu certo, pois a idéia de ver, no filme, um resumo do que a TV exibiu em formato de minissérie não afastou o público. Pelo contrário, no cinema, a obra repetiu o sucesso.


Linguagens e recursos das artes fílmica e literária

Talvez a definição mais aceita de adaptação seja a de “transcriação”, termo de Haroldo de Campos que prevê a transferência de um sistema de signos (literatura) a outro (cinema), mas não de forma extremamente fiel. A criação é permitida, mas de modo que a base da história literária não seja alterada. Portanto, desvios mínimos são permitidos, à medida que o roteirista, para fazer a adaptação do texto original, deve partir da seleção de cenas, o que, resulta em cortes, principalmente, e na condensação de vários personagens em apenas um. Ambos os processos são amplamente utilizados, já que, nas adaptações, o que dita as regras é o tempo, pela necessidade de contar uma obra de duzentas páginas ou mais em apenas duas horas, duração média dos filmes de longa metragem. Outros processos que aparecem nas adaptações são os acréscimos e a ampliação da participação de determinado personagem.
Para transpor para as telas um texto primeiro pensado literariamente, o cinema empresta recursos literários, o que é possível, pela presença dos elementos da narrativa também no filme. O filme, assim como o texto escrito, deve ter um enredo, que envolve personagens, que, por sua vez, movem-se em determinado ambiente, agindo de forma a inscrever os fatos em determinada ordem, cronológica ou não. Além disso, o papel do narrador no texto pode ser relacionado ao posicionamento da câmera, por exemplo, já que os recortes do que é mostrado na tela determinam se o espectador terá um ângulo amplo ou restrito de visão. Isso sem falar nos filmes que optam por uma narração explícita, como é o caso do filme Memórias póstumas, de André Klotzel. A câmera funciona para aproximar o espectador do personagem, por exemplo, quando a opção é pelo primeiro ou primeiríssimo plano. Isso equivale ao narrador detalhista e que enfatiza a emoção suscitada no leitor, pelas ações dos personagens. Da mesma forma, as câmeras baixa e alta podem indicar atitudes de enaltecimento e inferiorização, respectivamente, do narrador frente aos personagens. A cena também é uma unidade do universo literário, apesar de, hoje, seu conceito ser imediatamente relacionado ao aspecto visual e aos meios de comunicação que têm a visualidade como elemento principal, como o cinema e a televisão.
Marinyse Prates de Oliveira, em seu artigo Laços entre a tela e a página, faz referência ao surgimento do videocassete como um marco do entrelaçamento entre literatura e cinema, já que as possibilidades oferecidas por esse aparelho, de adiantar e retroceder o filme, equivalem às possibilidades que o livro oferece ao leitor, de avançar algumas páginas e, principalmente, de voltar a partes, para tentar compreender melhor determinada parte da história. Nas palavras da autora: “O surgimento do videocassete, não há dúvida, possibilitou um aprofundamento dessa relação que já era naturalmente estreita. Ao facultar ao espectador interferir no processo de projeção, retrocedendo, adiantando ou interrompendo-o, o vídeo conferiu ao espectador do filme as facilidades de manuseio próprias do leitor de livros.” (OLIVEIRA, 2005, p. 2).
E há que se mencionar a aproximação feita por Aguiar e Silva, que define também o filme como texto, definindo – como um “conjunto permanente de elementos ordenados, cujas co-presença, interação e função são consideradas por um codificador e/ou por um decodificador como reguladas por um determinado sistema sígnico”. (SILVA, 1988, p. 597-598).  Não só a literatura sempre serviu, desde que o cinema foi inventado, como matéria- prima para os filmes, dos mais diferentes gêneros, como vários escritores da literatura universal foram contratados como roteiristas. Como exemplos, podem ser citados os nomes de Scott Fritzgerald, William Faulkner e Aldous Huxley, entre outros. Além desses, Marinyse Prates lembrou ainda os nomes de Gore Vidal, James Age e Nathanael West.
Marynise Prates, em seu artigo, já mencionado, cita Paulo Emílio de Salles Gomes, que vai além do parentesco entre literatura e cinema. Para ele, “o cinema é tributário de todas as linguagens, artísticas ou não, e mal pode prescindir desse apoio que eventualmente digere”. (OLIVEIRA, 2005, p. 2). De todas essas linguagens, o crítico menciona a literatura e o teatro como as artes que têm mais afinidade com o cinema.


Do texto literário ao filme

Para Jorge Furtado, a principal dificuldade do roteirista é concretizar sentimentos e sensações, pois, segundo ele, o roteiro de um filme deve ser visual, já que no cinema não ocorre como na literatura, que, através das palavras, leva o leitor a imaginar o que está sendo descrito. O filme já é o resultado de uma leitura. Por isso, deve transformar tudo o que na obra literária é abstrato em algo visível e concreto. Por esse motivo, a adaptação é extremamente subjetiva, o que pode ser facilmente percebido depois de um número de pessoas que foram assistir a uma adaptação qualquer comentarem: “Não gostei do filme” ou “Não foi o que eu esperava”. Dessa forma, a adaptação será mais bem aproveitada se o espectador já tiver lido a obra-base, para poder julgar a transposição do texto à tela, argumentando e, até, comparando sua visão, no momento da leitura, à visão apresentada no filme. Ítalo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, menciona: “No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro ‘vista’ mentalmente por um diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidade num set para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme.” (CALVINO, 1993, p. 99)
Quando trata das lacunas do texto literário, que, segundo Jorge Furtado e outros autores, já aparecem preenchidas, no filme, Umberto Eco diz que não pode ser esquecido o fato de o produto cinematográfico exigir também a colaboração do espectador:

Também no filme, às vezes mais do que no romance, existem os ‘vazios’ das coisas não ditas (ou não mostradas) que o espectador tem de preencher se quiser  dar sentido à  história. Aliás, se  um
romance pode ter páginas à disposição para tracejar a psicologia de um personagem, o filme, não
raro, tem de limitar-se a um gesto, a uma fugaz expressão do rosto, a uma fala de  diálogo. Então
‘o espectador  pensa’, ou  melhor, diria, deveria pensar. Como diz Fumagalli, ‘as  técnicas da  es-
escrita dramatúrgica ensinam cada vez mais a trabalhar como se na tela só pudessem aparecer  as
pontas dos icebergs’, e freqüentemente ‘vemos um, mas — se prestarmos atenção  —  compreen-
demos dez’. (ECO, 2005, p. 98)

Jorge Furtado reforçou essa idéia, quando citou, em uma palestra intitulada Adaptação literária para cinema e televisão, em Passo Fundo (RS), na ocasião da 10ª Jornada Nacional de Literatura, uma lista imensa de recursos e técnicas que o cinema herdou da literatura:

De Homero o cinema aprendeu o flash-back e a idéia de que cronologia  é vício.  De Petrônio,  o
poder dramático da prosódia e a subjetividade do discurso.  De Dante, a  vertigem dos  aconteci-
entos, a rapidez\ para mudar de assunto. De Boccaccio, a idéia da fábula  como entretenimento.
De  Rabelais, os delírios  visuais e a  certeza de que a arte é tudo que a natureza  não é. De  Mon-
taigne, o esforço para  registrar a condição  humana. De  Shakespeare,  Cervantes (e  também  de
Giotto) a corporalidade do personagem e  o poder da tragédia. Da  comédia de  Moliére o cinema
aprende que a  história é uma  máquina. Voltaire ensinou  a decupagem, a técnica do holofote e o
humor como forma avançada da filosofia. De Goethe o  cinema (e também a televisão) aprendem
o prazer do sofrimento alheio. De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narração off e o autor  co-
mo personagem. De  Flaubert, vem a imagem  dramática e o roteiro como  tentativa de literatura.
Brecht é o pai do cinema-teatro e da idéia de que realismo tem hora. (FURTADO, 2005, p. 4)


REFERÊNCIAS

BACK, S. Cinema e literatura. Disponível em: <http://www.ufmg.br/online/arquivos/000574.shtml>. Acesso em: 23 jul. 2005.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CARDOSO, L. M. O. de B. Literatura e cinema: simbioses narratológicas. Disponível em: <http://www.ipv.pt/forumedia/5/17.html>. Acesso em: 23 jul. 2005.
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
_____. A diferença entre livro e filme. Entre livros, ano 1, n. 7.
FURTADO, J. A adaptação literária para cinema e televisão. Disponível  em:
<http://www.casacinepoa.com.br/port/conexoes/adaptac.htm>. Acesso em: 23 jul. 2005.
OLIVEIRA, M. P. de. Laços entre a tela e a página.  Disponível em:
 <http://www.joaogilbertonoll.com.br/estudos.html>. Acesso em: 23 jul. 2005.
SILVA, V. M. de A. e. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1988.

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*Professora de Imagem e Literatura e Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária. Professora dos Cursos de Letras, na FACEL e na FAE.


terça-feira, 14 de outubro de 2014

EM BUSCA DE RAÍZES GEOGRÁFICAS E ESPIRITUAIS:
O SUJEITO DIASPÓRICO NO SÉCULO XXI.[i]
Mail Marques de Azevedo

As palavras proféticas de W.E.B. Du Bois - “O problema do século XX é o problema da linha da cor” - ressoam ainda mais fortes no século XXI, quando o sujeito diaspórico de pele escura continua na busca de um lugar de pertença, tema dominante na chamada literatura pós-colonial. O lócus do romance de estréia da anglo-jamaicana Zadie Smith, Dentes brancos (2000), é o mundo multicolorido, multirracial e plurilingüístico do distrito londrino de Brent. O conto alegórico “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo, escritora mineira conhecida pela celebração de suas raízes afro, dá vida a uma comunidade negra mítica que se regenera, após um longo período de esterilidade, com o nascimento de uma criança. As duas narrativas se encontram em um ponto comum: a focalização de personagens diaspóricos de cor, embora em diferentes estágios do processo pós-colonial.
Este trabalho examina na prosa irreverente e humorística de Smith, e no texto poético da escritora brasileira, o papel da literatura como mediação. O termo designa na teoria pós-colonial o papel da literatura como comentário ou defesa de um determinado ponto de vista, bem como de crítica e resistência a problemas decorrentes do processo colonizador europeu: diáspora, deslocamento, perda de identidade, racismo, opressão econômica e desvalorização cultural, que atingem particularmente o homem de cor.
Os termos correlatos pós-colonial, pós-colonialismo, pós-colonialidade, largamente empregados nos meios acadêmicos, sofrem o problema da imprecisão semântica, concretizada já no prefixo “pós”, cuja acepção de “o que vem depois” está em desacordo com o âmbito do campo de estudo, que engloba todo o processo de colonização. A imprecisão se estende ao objeto e aos métodos da crítica e das teorias ditas pós-coloniais.
Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin demonstram no seminal The Empire Writes Back (1989) uma agenda para os estudos pós-coloniais em inglês e definem seu objeto:

Usamos o termo pós-colonial para cobrir toda a cultura afetada pelo processo do imperialismo, do momento da colonização até o dia de hoje. Sugerimos também que é o termo mais apropriado para a nova critica cross-cultural que emergiu nos últimos anos e para o discurso em que se constitui. Neste sentido este livro se ocupa do estado do mundo durante e após o período da dominação do imperialismo europeu e os efeitos nas literaturas contemporâneas. (Ashcroft et al., 1989, p. 2)

Quanto à crítica pós-colonial, igualmente ampla é a definição de Bart Moore-Gilbert que a vê como “conjunto de práticas de leitura mais ou menos distintas (...) voltadas principalmente para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam (...) relações de domínio e subordinação” (Apud HUGGAN, 2001, p. 12). Relações essas que “têm raízes na história do moderno colonialismo e imperialismo europeu, mas que são ainda aparentes na era atual do neocolonialismo”. O espaço temporal de séculos é superado apenas pela amplitude espacial do processo imperialista, que abrange a quase totalidade do mundo moderno, se considerarmos seus pólos opostos: o dominador e o dominado.
A seguirmos Moore-Gilbert, justifica-se a inclusão dos textos selecionados para o corpus deste trabalho como objeto da crítica pós-colonial. O imperialismo europeu tomou formas diversas em tempos e locais diferentes, daí a procedência de colocarmos lado a lado textos díspares, para um estudo que vai “além dos pós-colonialismos e dos pós-nacionalismos”.
Não há como discutir que as consequências da opressão imperialista assumem os mesmos aspectos em todos os povos e regiões, em todas as culturas e línguas. A diáspora dos povos africanos – os “imigrantes” involuntários da expansão européia para além-mar – está na base das histórias de vida de Zadie Smith e de Conceição Evaristo, bem como na construção de suas personagens em seus respectivos enclaves étnicos.
No conto alegórico de Evaristo, não há personagens individualizadas, mas um conjunto de traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem dela a protagonista da narrativa. Resistente diante do sofrimento, sábia, forte e paciente, a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade física da mãe-terra, quando se rompe o ciclo de morte e renascimento que comanda a natureza:

E então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejo para os nossos corpos (. . . ) O milagre da vida deixou de acontecer também, nenhuma criança nascia e, sem a chegada dos pequenos, tudo piorou. (. . . ) agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole. (EVARISTO, 2005: p. 35; 37)

No significado alegórico do conto está representada a esterilidade da vida do homem negro, que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão do imperialismo europeu, ainda aparentes na era atual do neocolonialismo. De fato, a problemática da posição do sujeito colonial e pós-colonial, - e nisso os críticos estão de acordo -, é o que mais se aproxima de um tópico prioritário ao qual se poderia subordinar a teoria pós-colonial. Independente da idade, o indivíduo diaspórico olha para o passado a fim de reconhecer o que sobrevive dele no presente: “Os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo  ... (EVARISTO, 2005, p. 36)
Na análise dos textos, a posição do sujeito diaspórico, foco principal deste trabalho, é examinada no relacionamento mais restrito do indivíduo com a ambientação física, psicológica e cultural. Em espectro mais amplo, analisam-se as relações persistentes de desigualdade ─ social, política, econômica ─ no quadro da sociedade multicultural que habita um dos centros irradiadores da cultura branca européia, sob o foco da apropriação da cultura das minorias como representação do “exótico”, cuja valorização estética põe em relevo seu caráter de objeto de curiosidade.
É esse o quadro que se percebe na Willesden Green criada por Zadie Smith para abrigar o mundo multicultural de Dentes brancos, formado por paquistaneses, hindus, chineses, jamaicanos, árabes, cujos destinos vêm desembocar ali, deixando para trás raízes geográficas e espirituais. “What is past is prologue”: a citação de The Tempest, epígrafe do romance evidencia a importância da pré-história das personagens, o legado de suas origens e a questão de como chegaram até o presente, ao mesmo tempo em que fornece o esquema para o desenvolvimento do enredo.
O romance narra a saga de várias gerações que abrange o século vinte, mas atinge as raízes mais remotas do quebra-cabeças cultural de seu background: as personagens vão e vêm entre Bangladesh, Bulgária, Jamaica, Itália e Escandinávia, mas todos se reúnem nas ruas da Londres de Zadie Smith. Envolve três famílias ─ os Joneses, casal misto, ele inglês e ela, jamaicana; os Iqbals, de Bangladesh, e os judeus-católicos, os Chalfens ─, que vivem nas proximidades, e cuja localização geográfica comum se sobrepõe a heranças culturais díspares e liga seus destinos.
Se postulamos que em “Ayoluwa” o papel de protagonista é desempenhado pela comunidade, em Dentes brancos, a função se distribui entre os membros da geração mais jovem dos três grupos familiares, que estabelecem a conexão entre as famílias. A análise do modo característico como enfrentam a complexidade do ambiente multicultural de Willesden Green, que se repete dentro de casa, ilustra um dos temas centrais do romance: o legado do império, a reunião de imigrantes nos velhos centros  imperiais, e a consequente constituição de sociedades multiculturais.
Quer se trate de comunidades afrodescendentes, isoladas fisicamente, no conto de Evaristo, ou multiculturais, perdidas como fragmentos multicoloridos no mosaico de línguas, religiões e manifestações da cultura material desenhado por Zadie Smith na antiga metrópole do Império Britânico, tais grupos partilham os mesmos problemas decorrentes da diáspora iniciada com a expansão marítima do século XVI.
Apesar de inconsistências de definição e de metodologia, é indiscutível que o conjunto dos estudos pós-coloniais — teoria e critica – provou ser uma força catalisadora para algumas das produções intelectuais mais estimulantes do presente. No caso deste trabalho, forneceu importantes parâmetros para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam relações de domínio e subordinação na natureza do sujeito diaspórico no século XXI.

REFERÊNCIAS
ASHCROFT, B. et al. The Empire Writes Back. Theory and Practice in Post-Colonial Literatures. London and New York: Routledge, 198
EVARISTO, Conceição. ”Ayoluwa, a alegria do nosso povo” In. Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje: Ed. dos Autores, 2005.

MAKARIK, Irena. R. (Ed.) Encyclopedia of Contemporary Literary Theory. Approaches, Scholars,
SMITH, Zadie. White Teeth. New York: Vintage, 2001.
__________. Dentes brancos. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Cia das Letras, 2003.




[i] Reproduzem-se aqui as páginas iniciais do texto Em busca de raízes geográficas e espirituais: o sujeito diaspórico no século XXI, publicado na coletânea Para além dos nacionalismos e pós-colonialismos, páginas127-148. O texto completo pode ser downloaded no site da HN Editora & Publieditorial, endereço www.editorahn.com.br

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O nascimento de Vênus: transposições inter- e intramidiáticas
para a arte e cultura brasileiras da contemporaneidade”


                                                                                                                                                                    Sigrid Renaux  

Este trabalho foi apresentado como parte do painel “Intermidialidade: produções culturais no Brasil”, coordenado pela profa. Thais Nogueira Diniz da UFMG, no 12º Congresso Internacional da Associação de Estudos Brasileiros (BRASA: Brazilian Studies Association). A BRASA é um grupo interdisciplinar e internacional de acadêmicos que apoia e promove os estudos brasileiros em todas as áreas do conhecimento e ao redor do mundo. O congresso,  realizado entre 20 e 23 de agosto de 2014 no King´s College em Londres, reuniu mais de 900 participantes. Segue um resumo de minha apresentação:
A transposição intersemiótica – a recriação de um texto em código diferente – tornou-se não apenas um procedimento muito usado na arte contemporânea, mas também se tornou, consequentemente, objeto de intenso debate crítico nas concepções atuais de intermidialidade. Lembrando-nos de que a função de releituras intermidiáticas pode ser tão diversificada quanto a própria natureza dessas traduções/recriações, esta pesquisa tem como objetivo discutir as transposições inter- e intramidiáticas de O nascimento de Venus para a arte e cultura brasileiras da contemporaneidade.
Partindo do poema Teogonia (700 a.C.) de Hesíodo –
http://www.sacred-texts.com/cla/hesiod/gtheo.htm
 no qual se descrevem a origem e genealogia dos deuses gregos e, especificamente, o nascimento da deusa Afrodite emergindo da espuma do mar e flutuando numa concha para a ilha de Cítera – e de sua transposição pictórica no quadro de Sandro Botticelli O nascimento de Vênus (1485),
 http://en.wikipedia.org/wiki/The_Birth_of_Venus_%28Botticelli%29
esta pesquisa concentra-se então em discutir as recriações desta obra renascentista na tela modernista O nascimento de Venus (1940) de Di Cavalcanti
http://www.dicavalcanti.com.br
e no quadro Monica no nascimento de Venus (1992) do cartunista Maurício de Souza:  
https://www.google.com.br/search?q=Mauricio+de+sousa%3A+o+nascimento+de+venus
em Di Cavalcanti, a mistura de elementos míticos tradicionais com mulatas, como personificações de figuras míticas modernistas brasileiras; em Maurício de Souza, o desenho humorístico da “turma da Mônica” substituindo as figuras míticas originais a fim de introduzir as crianças ao mundo da arte clássica.
Usando como referenciais teóricos textos de Claus Clüver, Solange Ribeiro de Oliveira, Jan Mukarovsky e Irina Rajevski, entre outros, essas recontextualizações nos fazem perceber não apenas o processo de transposição inter- e intrasemiótico – do texto para a pintura e para o cartum – mas também como as diversas percepções da pintura “original” de Vênus em épocas e contextos diferentes enfatizam características importantes de manifestações estéticas e culturais brasileiras.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014


MAIS OU MENOS REAL, NO CINEMA E NA TV
Verônica Daniel Kobs*

Embora, hoje, o cinema seja considerado o tipo de arte talvez mais adequado para a ficção, no que diz respeito ao ilusionismo gerado pelos efeitos especiais, no início de sua História ele manteve estreita relação com a realidade. Os pioneiros do cinema brasileiro, por exemplo, são filmes que mostraram tomadas da Baía de Guanabara e que registraram o Carnaval em diversas cidades do país, como João Pessoa, Rio de Janeiro, Curitiba, entre outras. Depois disso, os sucessos foram os filmes de enredo, baseados nos crimes de maior repercussão na mídia nacional. Do mesmo modo, a TV, com as telenovelas, um dos principais produtos culturais brasileiros dos meios de comunicação de massa, privilegiou, desde o início, personagens e histórias bastante verossímeis**.
Evidente que os documentários, os filmes de enredo e as telenovelas são textos ficcionais, mas, com base nessa breve retomada, percebe-se que é muito tênue a divisão entre ficção e realidade. Entretanto, apesar da semelhança que essa aproximação representa, é imprescindível observar que, enquanto o cinema recorria à realidade para enfatizar as vantagens da nova arte (o registro e a reprodução da imagem na grande tela), a TV usava a representação da realidade de modo bastante específico, invertendo o efeito alçando pelo cinema. Nas novelas, os núcleos “ricos” ganhavam mais destaque, fazendo com que o produto televisivo fosse rapidamente aceito, propagando-se junto ao público das classes mais populares. Funcionava mais ou menos assim: As pessoas da classe alta assistiam às histórias para ver a representação de seu próprio mundo. Porém, a maioria das pessoas seguia as novelas para conhecer mais de perto aquele mundo de dinheiro e glamour, ao qual não tinha acesso, a não ser pela TV. Dessa forma, embora a TV recriasse a realidade burguesa, em certa medida ela propiciava a fuga da realidade àqueles que recorriam às novelas para esquecer os problemas e sonhar com a riqueza.
Voltando ao cinema, depois da incursão pela realidade e da grande interferência desse universo nas narrativas ficcionais dos filmes, pode-se verificar um afastamento progressivo da realidade, afinal, há outros tipos de filmes. Nas animações da Disney e nos clássicos da ficção científica, por exemplo, impera a suprarrealidade, com a diferença que, no primeiro caso, a história geralmente se faz como uma espécie de alegoria da realidade; já, no segundo caso, a base real é quase que inteiramente suplantada, considerando-se que as histórias se passam em tempos e espaços muito diferentes do tempo e do espaço presentes (e reais).  Tanto a animação quanto a ficção científica consolidaram o cinema como arte da ilusão e das possibilidades, rompendo com a “coerência” do mundo real. Cinderela, Fantasia, Alice no país das maravilhas, Star wars, De volta para o futuro e Matrix são apenas alguns bons exemplos disso. Mas o fato é que há muitos mais e essa consolidação, feita a partir de imagens “impossíveis” ou “irreais”, fez com que, hoje, o público de cinema espere ver cenas espetaculares, exageradas nos detalhes e nos efeitos especiais,  até mesmo nos filmes que têm as histórias e os personagens mais normais e verossímeis. Sabe-se que há desvios em qualquer ficção, por mais “real” que seja a história, mas com os efeitos do cinema é claro que a realidade representada na ficção se artificializa ainda mais, distanciando-se de seu referente na mesma proporção em que é modificada.
Em contrapartida, a televisão aproxima-se cada vez mais do efeito de realidade. As novelas tornaram-se mais democráticas, com a ampliação dos núcleos que fogem ao padrão de vida burguês, da classe alta. A novela Vidas opostas, da Record, exemplifica bem essa mudança. Além disso, os estereótipos de mocinho e vilão foram completamente renovados. Atualmente, nenhuma mocinha de novela pode ser totalmente boa, afinal, esse perfil maniqueísta já não convence mais. Por fim, restam os reality shows, que fazem com que todos torçam para um ilustre desconhecido ficar na casa ou ser votado para se tornar a mais nova celebridade da música. Deixando de lado o altíssimo padrão de produção de algumas emissoras e desconsiderando o fato de que qualquer reality show que se preze tem um script a ser seguido, o importante é que não é mais necessário ser famoso para fazer sucesso. Pelas redes sociais ou pela TV, o que vale mesmo é poder espiar a vida alheia.
Nesse ponto, porém, há uma guinada e TV e cinema parecem  trocar de lugar e de função, rompendo, respectivamente, com as tendências de proximidade e afastamento em relação à realidade. Tomando como exemplos duas novelas recentes exibidas pela Globo, Saramandaia e Meu pedacinho de chão, pode-se constatar que a  televisão, agora, inverte o processo e promove o afastamento da realidade, pelo uso de características das narrativas fantásticas. Em Saramandaia, a rotina dos moradores era frequentemente perturbada pelos uivos do lobisomem, pelos voos de João Gibão, pelas visões da matriarca da família Rosado, pelos calores intensos de Marcina ou pelo medo de que dona redonda explodisse a qualquer momento.  Em Meu pedacinho de chão, a realidade era completamente alterada pelo tom parodístico dos personagens, pelo figurino inusitado e pouco convencional (como os vestidos de plástico da professora Juliana), pela reprodução de partes do cenário em pequeníssima escala, com o auxílio de maquetes e carrinhos de brinquedo, e pelos elementos artificiais que compunham o cenário (lenha multicolorida, árvores com caules rendados, passarinhos de desenho animado, etc.). 

Maquete usada na novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://www.bdxpert.com/wp-content/uploads/2014/04/pedacinho2.jpg

Cenário da novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://revistaimoveis.zap.com.br/imoveis/wp-content/uploads/2014/04/novela-pedacinho-de-chao-2.jpg

Cenário e figurino da novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://www.oficinadamoda.com.br/upload/imagens_upload/novela_das_seis_1.jpg

E no cinema? A sétima arte, tão reverenciada pelo afastamento constante entre realidade e ficção, agora investe em histórias de pessoas comuns e lança biografias de desconhecidos notáveis, que chamaram atenção por algum feito inusitado. Entre os vários exemplos desses filmes “baseados em uma história real”, dois concorreram ao Oscar 2014: O lobo de Wall Street e Clube de compras Dallas. O primeiro filme, que repete a parceria Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio, conta a incrível história de Jordan Belfort, corretor que conquistou dinheiro, poder e fama vendendo ações de empresas nada promissoras. O outro longa-metragem, estrelado por Matthew McConaughey, é baseado na vida de Ron Woodroof, caubói e eletricista que, ao descobrir que está com AIDS, precisa lutar pela vida e contra o preconceito. Sem dúvida, trata-se de dois grandes filmes, que concorreram a várias categorias da maior premiação mundial do cinema. Essa repercussão, claro, é resultado da boa recepção por parte do público e da crítica, sintoma claro do interesse por histórias notáveis, e “verdadeiras”. É evidente que, quando vividas por alguém famoso, há um apelo a mais, mas o que é de fato revelador, no caso dos dois filmes aqui citados, é que as histórias ganharam notoriedade, mesmo sem um personagem que fosse famoso, além de real. A partir disso, algumas conclusões são possíveis: a) as histórias eram boas; b) o interesse do público pela vida alheia é cada vez maior; c)as duas alternativas anteriores são verdadeiras.



Capas de O lobo de Wall Street e Clube de compras Dallas. Imagens disponíveis em:
http://br.web.img2.acsta.net/pictures/13/12/30/18/11/111145.jpg e http://s2.glbimg.com/yDh5QJyRDriYsR9fdB0jI4CfoS0Xpj1ECKFSTiX1EjlIoz-HdGixxa_8qOZvMp3w/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2014/01/14/filmes_10.jpg

Depois deste breve paralelo entre cinema e televisão, cumpre mencionar os objetivos deste ensaio. O primeiro é pensar sobre as mudanças que ocorrem constantemente, nas mídias e nas artes. O segundo é analisar como a nossa realidade interfere na produção cultural, de modo a provocar alterações significativas. E o terceiro objetivo (talvez também o mais importante) é afirmar a relação de complementaridade que existe, nos contextos intermídias e interartes, pois não há como escolher entre a “realidade” do cinema contemporâneo e a “artificialidade” da televisão atual. Precisamos das duas coisas, em todos os momentos e a qualquer tempo. Realidade e ficção. TV e cinema.

*Professora de Imagem e Literatura e Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária. Professora dos Cursos de Letras, na FACEL e na FAE.

**O termo “verossímil”, aqui, está sendo usado em seu sentido mais popular, como adjetivo que caracteriza uma representação próxima da realidade.