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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O romance da pedra do reino, múltiplos romances, múltiplo mundo


Profa. Dra. Edna da Silva Polese

 

Em Formas de tempo e de cronotopo do romance, Bakhtin apresenta a mutação sofrida pelo romance a partir da antiguidade grega e apresenta-as na seguinte ordem: O romance grego – romance de aventuras e provação; Apuleio e Petrôneo – romance de aventuras e costumes; Biografia e autobiografia antigas – romance biográfico; O problema da inversão histórica e do cronotopo folclórico; O romance de cavalaria; Funções do trapaceiro, do bufão e do bobo no romance; O cronotopo de Rabelais; Fundamentos folclóricos no cronotopo de Rabelais e, por último, o Cronotopo idílico no romance.

     Dessas chamadas “formas de tempo”, é possível destacar os seis primeiros para adentrar algumas maneiras de se ler a obra monumental de Ariano Suassuna.

     Romance que representa um projeto ainda inacabado, o Romance d´A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta, reúne em si não uma ou duas, mas várias das características que a forma do romance, de acordo com os ensaios de Bakhtin, apresenta.

     Se fizermos uma breve visita à abertura do livro, já estaremos emaranhados num leque de possibilidades de leituras que a obra possui:

     As epígrafes, localizadas logo no início do romance, podem ser utilizadas como um dos exemplos da variedade possível que a leitura desse romance proporciona. Vale lembrar que, de acordo com o Dicionário de Termos Literários, a epígrafe alcança o sentido moderno de representar o lema ou divisa de uma obra, demonstrando algum tipo de articulação do conteúdo do texto com o fragmento apresentado na epígrafe. No romance de Suassuna, fica claro que a epígrafe tem a função articulatória, pois os “autores” relembrados pelo autor, ou pelo narrador da obra, são, em seqüência: Dom Sebastião, o Desejado; Dom Antônio Conselheiro; Dom Pedro I; Dom José Pereira, denominado rei pelo narrador do texto, por ter participado do confronto ocorrido em Princesa, Sertão da Paraíba em 1930; e Dom João Ferreira-Quaderna, o rei da Pedra Bonita.

     Desse modo, é possível perceber, logo na abertura da obra, que a formulação de Suassuna, através de Quaderna, o protagonista, foge aos dogmas do romance convencional, pois apresenta epígrafes de figuras históricas que sequer são conhecidas como literárias e, ao mesmo tempo, apresenta o link que ocorrerá com a proposta final: a elaboração de um romance sertanejo, épico, clássico, picaresco, histórico, poético que reviverá os acontecimentos factuais ocorridos em várias regiões do sertão nordestino, como o massacre da Pedra do Reino, assim como fatos políticos que envolveram vários anônimos, mas também o pai do autor, assassinado em circunstâncias políticas à época dos acontecimentos envolvendo a figura política de João Pessoa. Também é clara a lembrança de um dos temas recorrentes no romance, o sebastianismo, configurado na figura do rei português, desdobrado nas figuras de Antonio Conselheiro e João Ferreira, beatos que em diferentes momentos agruparam seguidores numa jornada religiosa e social em busca de uma vida melhor.

No prefácio dessa edição de A pedra do reino, Rachel de Queirós registra:

 

À primeira vez em que Ariano Suassuna me falou da Pedra do Reino disse que estava escrevendo “um romance picaresco.” (...) Mas o paraibano me enganou. Picaresco o livro é – ou antes, o elemento picaresco existe grandemente no romance, ou tratado, ou obra, ou simplesmente livro - sei lá como é que diga! Porque depois de pronto A Pedra do Reino transcende disso tudo, e é romance , é odisséia, é poema, é sátira, é apocalipse...”

 

A falta de uma qualificação exata e, principalmente por registrar o elemento picaresco, faz do romance de Suassuna um enigma– faltam-lhes registros, conceitos. A Pedra do Reino está dividida em 86 folhetos, enumerados em romanos, separados em cinco livros. A continuidade desse projeto, o romance História d´O rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da Onça Caetana, ainda sem previsão de publicação, dá a idéia da dimensão do trabalho que Suassuna realiza em sua vida literária.

 

[1] BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética – A teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1993.

[1] SUASSUNA, Ariano. Romance d´A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. 5º ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

[1] MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1999.p. 189

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Considerações sobre Esse ofício do verso de Jorge Luis Borges


Profa. Sigrid Renaux

Entre 1967 e 1968,   Borges proferiu uma série de palestras em inglês na Universidade de Harvard. Essas “palestras perdidas”, transcritas de fitas só recentemente descobertas e publicadas sob o título Esse ofício do verso (do original This craft of verse), são “um testemunho inédito da leveza e elegância com que um dos maiores escritores do século XX trata os enigmas da língua e da literatura”, como consta na orelha do livro.  As seis “lições” de Borges abrangem desde “O enigma da poesia”, “A metáfora”, “O narrar uma história”, “Música da palavra e tradução”, “Pensamento e poesia”  até “O credo de um poeta”.

Concentrando-nos na primeira palestra, o “Enigma da poesia”, destacam-se, entre outros tópicos,  algumas ponderações memoráveis, como sua afirmação inicial a “uma platéia de leigos”:

não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo, analisando, escrevendo (...) e desfrutando. Descobri ser esta última coisa a mais importante de todas. ‘Sorvendo’ poesia, cheguei a uma derradeira conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de redescobrir a literatura para mim mesmo. (BORGES, 2007, p. 10)

Essas palavras nos remetem diretamente ao tópico “o enigma da poesia”, não apenas  no sentido de que existe algo oculto na poesia, que precisa ser revelado, mas no sentido de que a própria palavra “poesia” parece afastar o leitor comum de sua leitura, por considerá-la mais difícil de ser assimilada rapidamente, como se dá com a prosa. E é exatamente a palavra “desfrutar” – usufruir, ou no sentido figurado, “deleitar-se com; apreciar”– e, como Borges diz adiante, “sorvendo poesia”, com seus sentidos de

 

- inspirar (o ar, com os aromas ou substâncias nele contidos); inalar, aspirar

- embeber-se ou impregnar-se de; sugar, absorver

  - (metaforicamente)  escutar com grande atenção, como que a beber as palavras

 

que nos levam ao âmago da questão: a poesia não deve ser apenas lida linearmente, como a prosa, mas necessita ser inspirada  como o ar por nosso corpo, através dos olhos, absorvida por nossos ouvidos para podermos nos impregnar dela,  através de nossa sensibilidade, o que acontece, evidentemente, quando escutamos atentamente sua leitura, como que bebendo as palavras do poeta que a recita.  Portanto, é um ato simultaneamente físico, intelectual e estético, pois a poesia  é “uma paixão e um prazer” (p. 11).

         Como Borges continua sua argumentação  – e esse é um outro aspecto muitas vezes negligenciado pelos alunos – fazemos  geralmente uma “confusão corriqueira”: pensamos que, ao lermos Homero, Dante, ou Shakespeare, estamos  “estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poesia” (p. 11),  ou seja, “um livro é apenas um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras – ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos – saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra” (p. 11-12).

         É esta relação de contato, de fruição entre texto e “leitor certo” que precisa existir quando lemos livros de poesia, para a palavra num texto readquirir vida e saltar de sua leitura linear para a multi-dimensional,  transformando-se de  símbolo abstrato em palavra ressurgida.

        

 

 

domingo, 2 de dezembro de 2012

SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO: A INSCRIÇÃO DO PROCESSO DE ADAPTAÇÃO CÊNCIA NO TEXTO SHAKESPEREANO


 

Profa. Anna S. Camati

 

Enquanto outros dramaturgos da época elisabetana, como Ben Jonson e Thomas Heywood, escrevem ensaios teóricos sobre questões dramatúrgicas, Shakespeare insere dimensões metateatrais na estrutura dramática e nas falas das personagens que podem ser lidas como comentários críticos sobre a cena. Como a maioria dos seus textos, Sonho de uma noite de verão é essencialmente metateatral: há a peça dentro da peça, personagens com consciência dramática, cenas de aproximação entre o palco e a plateia, ruptura da ilusão dramática e reflexões sobre o fazer teatral.

Alguns críticos afirmam que ao flagrar os processos de apropriação textual e os mecanismos da adaptação do texto dramático para a cena, o objetivo de Shakespeare teria sido mostrar a superioridade de sua prática dramatúrgica e ironizar o teatro amador anterior a ele. Contudo, os intrincados procedimentos metalinguísticos inscritos no texto que fazem uso do código para falar dos códigos (JAKOBSON, 2005, p.67) fornecem indícios de que ele reflete sobre seu próprio fazer teatral numa atitude autorreflexiva, lúdica e metacrítica. Tudo indica que, longe de querer denegrir, o bardo presta uma grande homenagem às trupes de atores amadores da rica tradição do teatro popular medieval da qual ele tanto se beneficiou.

 

O texto adaptado por Peter Quince, o duplo paródico de Shakespeare

 

Na segunda cena do primeiro ato de Sonho de uma noite de verão, Shakespeare (2004, p.27-32) introduz uma companhia de teatro amador, formada por artesãos das corporações de ofício, dentre eles Pedro Quina, um carpinteiro[1] que também exerce as funções de ator e dramaturgo-ensaiador[2]. Assim como Shakespeare, ele se revela um exímio adaptador de fontes matriciais, das quais ele se apropria para escrever um novo texto. Esse Johannes factotum[3] apresenta, para sua trupe, uma proposta cênica derivada de um texto clássico que ele pretende submeter ao mestre de cerimônias do Duque Teseu para ser apresentada no dia do casamento do regente.

O texto-fonte de Quina, um poema narrativo do quarto livro das Metamorfoses de Ovídio (2003, p.74-77), intitulado “A história de Píramo e Tisbe”, é antigo e clássico: para garantir a eficácia da tradução, ele teria de levar em conta as interferências da situação de enunciação de uma língua para a outra e de uma cultura para outra, como ensina Pavis (2008, p.124) em um artigo que discute a série de concretizações de um texto dramático tendo em vista a encenação: “O texto traduzido faz parte igualmente tanto do texto e da cultura-fonte quanto do texto e da cultura-alvo: eles têm, portanto, necessariamente, uma função de mediação”.

Cumpre assinalar que as especificidades que caracterizam um bom texto adaptado, conhecidas e observadas por Shakespeare, estão completamente ausentes na tradução de Quina. Trata-se, apenas, da transliteração para o inglês e da transformação genérica do poema narrativo de Ovídio para o gênero dramático, rebatizado como “A mui lamentável comédia e crudelíssima morte de Píramo e Tisbe”. Teria sido necessário traduzir a narrativa de Píramo e Tisbe para o imaginário cultural renascentista, como fez Shakespeare quando reinventou a história de Romeu e Julieta baseada em fontes italianas (Salernitano, Da Porto e Bandello), francesas (Boaistuau) e inglesas (Arthur Brooke e William Painter). Apesar de se apropriar de elementos de várias versões anteriores sobre a história dos amantes infelizes, Shakespeare se destaca pelas diferenças introduzidas em seu texto e pela modernização do pensamento ocidental.

Em Romeu e Julieta, Shakespeare introduz, dentre outras inovações, novas temáticas, novos enfoques e uma nova moral. Em seu texto, um novo contrato social é inaugurado com base na escolha individual. Prevalece a valorização da noção de indivíduo, dotado de vontade e sentimentos, exemplificada por meio da conduta transgressiva de Julieta que questiona e se rebela contra a autoridade paterna, priorizando sua identidade pessoal em detrimento da social e nominal. Além da focalização da dimensão interna do indivíduo, ou seja, a revelação do que se passa no íntimo dos amantes, a história é contada de uma maneira totalmente nova: as narrativas de Matteo Bandello e Arthur Brooke, ambas de cunho moralizante, com ênfase na lei da retribuição, são atualizadas e a moral tradicional é subvertida: os amantes não são inteiramente responsáveis pelo seu infortúnio, visto que há muita interferência do acaso. Na visão do bardo, eles não cometeram nenhuma falta, por isso não merecem castigo; são vítimas, pelo menos em parte, do ódio violento que move o feudo entre as duas famílias.

No enredo dos artesãos do Sonho percebe-se, de imediato, a ironia de Shakespeare ao inserir na peça um duplo de si mesmo que se apropria de um texto clássico, mas não conhece os meandros dos processos tradutórios. A preocupação de Quina parece ter sido traduzir literalmente partes do poema narrativo de Ovídio para compor o texto dramático, o que explica uma série de incongruências no texto adaptado. No entanto, como veremos mais adiante, no processo de adaptação do texto dramático para o palco, Quina se mostra totalmente aberto para fazer as mais diversas interpolações e modificações para adequá-lo à cena.

            A brincadeira do duplo paródico, ou seja, a representação de um dramaturgo-ensaiador que se aventura em traduzir e adaptar um texto clássico parece ser uma resposta de Shakespeare aos seus pares que faziam referência à sua falta de proficiência em línguas clássicas.[4] Além do mais, de acordo com alguns críticos contemporâneos, para sublinhar o cunho irônico ao compor o texto da peça dentro da peça, Shakespeare realizou uma extensa pesquisa, coletando pérolas de diversas traduções literais do texto de Ovídio que circulavam na Londres da época elisabetana. 

            No artigo “When everything seems double: Peter Quince, the other playwright in A Midsummer Night’s Dream” (“Quando tudo parece ser duplo: Pedro Quina, o outro dramaturgo em Sonho de uma noite de verão”), A. B. Taylor (2003, p.55-66) argumenta que, no texto traduzido por Quina, muitas falas são transliterações do latim e apropriações da sintaxe latina, falhas que eram frequentes em traduções das obras de Ovídio. A proximidade com o texto latino é inequívoca e pode ser comprovada por inúmeras frases e falsos cognatos traduzidos ipsis litteris do latim para o inglês, visto que os tradutores da época cometiam enganos pelo desconhecimento das dimensões semântica, sintática, rítmica, acústica, conotativa, dentre outras, de ambas a línguas, a do texto-fonte e a do texto-alvo, elementos do processo tradutório que Shakespeare dominava com maestria. Taylor (2003, p.56) relata, ainda, que muitas situações hilárias são ironias criadas por Shakespeare que, com certeza, escreveu o texto com um exemplar do texto latino de Ovídio aberto à sua frente. Acontece que não há nenhum leão na história de Ovídio. A criação do papel do Leão para Justinho, o marceneiro, decorre de um equívoco cometido por Quina, que não se dá conta que o significado da palavra leaena é “leoa” ao invés de “leão”. Além disso, a descrição de Píramo como sendo um “belíssimo Judeu” (most lovely Jew) decorre do esforço ingênuo do tradutor para encontrar um equivalente literal para iuvenum pulcherrimus que significa “belíssimo jovem”. Outra incongruência que provoca risadas na plateia é o uso do vocábulo “deflorar” ao invés de “devorar”:

 

PÍRAMO:

Por que a natureza fez leões?

Um leão deflorou minha amada

Que é – não, era – a dama mais bonita,

Bela, boa, brilhante e abençoada. (SHAKESPEARE, 2004, p. 114)

 

Estes procedimentos paródicos e metadiscursivos utilizados como estratégias de construtividade textual revelam que o bardo faz uma grande brincadeira, e dá uma resposta irônica às críticas daqueles que, à maneira de Ben Jonson, subestimavam seus conhecimentos linguísticos. Ao criar o enredo dos artesãos no Sonho, Shakespeare retoma suas origens lançando mão de técnicas e formas consagradas pelo teatro de rua medieval e do jogo do improviso da commedia dell’arte que, segundo diversos depoimentos da época, havia estado de passagem por Londres. E, para divertir-se, e oferecer entretenimento ao público, Shakespeare insere em seu texto um carpinteiro, pertencente a uma classe da qual ele próprio descende (seu pai era luveiro) e, pasmem os incrédulos, esse rústico dramaturgo-ensaiador teve a ousadia de traduzir um texto latino. No irônico subtexto, Shakespeare dá a entender que não basta falar latim ou grego para escrever uma peça de sucesso.

 

O artigo na íntegra foi publicado na  Revista de Letras, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 127-141,  jan./jun. 2011 e está disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/5109>      

 

 

 

 

 

 

 

 

                          



[1] O fato de Pedro Quina ser um carpinteiro não é um mero acaso. Ainda hoje, usa-se o termo carpintaria teatral para referir-se à construção de um texto dramático.
[2] Como na época elisabetana os escritores de peças também acumulavam as funções de ensaiador e ator, uso o termo dramaturgo-ensaiador para fazer referência a essa figura polivalente.
[3] Em 1592, Shakespeare já era um autor muito popular e causava inveja aos University Wits (dramaturgos universitários), dentre eles Robert Greene. Em um panfleto editado por um amigo, Greene chamou Shakespeare de Johannes factotum, uma pessoa que exerce vários ofícios, mas não é proficiente em nenhum. Esse termo pejorativo não se aplica a Shakespeare que foi bem sucedido em todas as atividades que empreendeu, mas pode ser atribuído a Pedro Quina que não apresenta habilidades nos ofícios de poeta e dramaturgo.
[4] No prefácio da primeira edição da obra de Shakespeare (Primeiro Fólio/1623), Ben Jonson, para homenagear o bardo, publica um poema, intitulado “To the Memory of My Beloved Master William Shakespeare, and What He Has Left Us”. Nesse poema, ele assevera que Shakespeare é uma estrela de primeira grandeza, apesar de saber “pouco latim e menos grego”.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

CONVITE PARA LER E RELER VALÊNCIO XAVIER


Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs

 

              Na literatura contemporânea, a colagem, recurso amplamente utilizado na maioria dos movimentos de vanguarda do início do século XX, na pop arte e na poesia visual, empresta ao texto um efeito artesanal. Algumas partes do livro são componentes estranhos à literatura convencional e ao próprio significado de texto. Fotos, pedaços de jornal, bilhetes, manchetes e anúncios transformam o texto em produto de bricolagem e relativizam o conceito de autoria.

              A autoria, na colagem, é responsável pela seleção e pela organização dos materiais, de modo a propor um novo significado, pela recontextualização de elementos antes pouco utilizados no contexto da arte e pela articulação de elementos às vezes essencialmente diferentes no significado, na função que desempenham e no valor estético. No ready-made, técnica muito usada por Marcel Duchamp nas artes plásticas e por Oswald de Andrade na literatura, a criação dava-se a partir de coisas prontas. No entanto, o fazer da nova arte propunha novos modos de usar e ver determinados objetos, redimensionando-os e rompendo com a convenção artística.

              Ao fragmentar algo já pronto e escolher algumas peças para formar um novo conjunto, o artista descontextualiza para recontextualizar. Nesse processo é que ocorre a mudança que faz evoluir o conceito de arte e o significado do próprio objeto. Evidentemente, a transformação, que exige nova postura do leitor/espectador, é resultado da ação crítica do artista diante do objeto reutilizado. Valêncio Xavier utilizou a colagem em vários textos. Dentre inúmeros elementos que ajudam a compor as narrativas do autor, o jornnal é o mais utilizado. A mistura é inusitada, para muitos, porque rompe com a divisão feita pelo senso comum, segundo a qual a literatura é sinônimo de ficção e o jornal, de realidade. Ao emprestar notícias de jornais, Valêncio Xavier chama a atenção do leitor para a manipulação discursiva, demonstrando que o texto jornalístico, como qualquer outro, é mera construção sobre um fato.

              O autor, inclusive, age, na criação de seus livros, como um redator de jornal. Ele seleciona as palavras; escolhe como dar a notícia. O fato pode ser o mesmo, mas ele é, invariavelmente, apresentado com variações, nos diferentes jornais, que têm linhas editoriais distintas e, consequentemente, público e linguagem também divergentes. Desse modo, fica claro que as características do jornal e o estilo do autor influenciam na criação textual. É certo que o Jornalismo, assim como a História, são vinculados à realidade, mas Valêncio Xavier revela a simplificação grosseira que existe por trás dessa e de qualquer outra categorização.

              O principal objetivo da utilização de textos de jornal dentro do texto literário é a desmistificação do status da imprensa e dos discursos produzidos por ela. Neste artigo, serão analisados dois contos do autor, Um mistério no trem-fantasma e O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de Curitiba, e dois textos maiores, considerados novelas, O mez da grippe e Rremembranças da menina de rua morta nua. Em todos eles, a relação entre Jornalismo e Literatura é dupla. Para os leitores especializados, é fácil perceber que tudo é construção. É como se os fragmentos de textos jornalísticos emprestassem as características dos textos do universo ficcional, de que agora são parte. Em contrapartida, ao leitor mais ingênuo, a notícia de jornal se sobrepõe ao texto literário, que de verossímil passa a ser considerado real por muitos leitores, que não duvidam de nada veiculado nos meios de comunicação de massa. Sendo assim, essas pessoas também não encontram motivos para desconfiarem de uma história que é feita com recortes de jornais.

              Esse efeito paradoxal de afirmação da realidade do texto literário pelo jornal e de negação do vínculo do jornal com a realidade pela literatura é resultado da dissolução da fronteira que, antes, separava realidade e ficção. Atualmente, essa distinção não existe mais:

 

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado (...). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos mas nos sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. (HUTCHEON, 1991, p. 122)

 

              Valêncio Xavier, ao tirar as notícias de seu contexto de origem, dá espaço ao questionamento sobre os limites da realidade e da ficção, confirmando os postulados de Linda Hutcheon e de outros teóricos da pós-modernidade. As colagens que caracterizam os textos do autor escolhidos para análise podem ser um convite à reflexão ou uma armadilha que pode fazer o leitor desconsiderar a ficcionalidade da literatura. A escolha depende do perfil do leitor e, consequentemente, de sua predisposição ao jogo intelectual ou ao mero entretenimento.

 

(Introdução do artigo A literatura, o jornal e as verdades dos fatos, publicado na revista Miscelânea, vol. 8)

 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

NOTÍCIAS DO CENÁRIO NACIONAL DA PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS.


Mail Marques de Azevedo

A convite da coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, campus de São José do Rio Preto, participamos do IV Congresso Nacional de Pesquisa em Literatura e do XIII SEL Seminário de Estudos Literários, realizados simultaneamente, de 23 a 26 de outubro, centrados na temática VISÕES E REVISÕES DO BRASIL: NÓS E OS OUTROS.
  A participação em uma das seis mesas debatedoras de projetos de pesquisa, apresentados para discussão no XIII SEL, permitiu-nos observar algumas tendências dominantes na pesquisa para dissertações e teses, na subárea de Estudos Literários.
Os projetos que debatemos ilustram duas dessas tendências, que se repetem em outros dentre os vinte apresentados:
Comparativismo:
  1. Estudo de obras diversas de um mesmo autor, cujo  foco é determinado pela temática, a exemplo do projeto da mestranda Ana Carolina dos Santos Marques, que pretende discutir a desumanização do individuo no mundo pós-moderno, nos romances White Noise e Cosmopolis de Don DeLillo.
  2. Estudo de obras de autores contemporâneos que apresentam pontos em comum. Questões de gênero e o formato do Bildungsroman, ou romance de educação, constituem o núcleo da análise das obras Salto Alto, de Lygia Bojunga, e The Secret Life of Bees, de Sue Monk Kidd, proposta pela mestranda Juliane Camila Chatagnier.
 
História e discurso ficcional:
  1. A (re)criação da história na literatura pós-moderna é o tema da leitura que João Carlos Vani faz do impactante romance Extremely Loud and Incredibly Close, de Jonathan Safran Foer, cujo assunto é o ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. O trauma da morte pela violência e destruição, no contexto do bombardeio de Dresden, se repete 56 anos mais tarde com o único descendente da família, um menino de nove anos, que procura entender o desaparecimento do pai, na destruição das torres.
 
Ainda na tendência do comparativismo, pareceu-me particularmente original e pertinente a pesquisa SOR JUANA Y ANTONIO VIEIRA, EL HERMETISMO EM LOS ORÍGENES DE LA CIÊNCIA FICCIÓN LATINOAMERICANA (1650-17500).
Entre projetos de caráter intermidiático incluem-se uma leitura televisual de Guimarães Rosa e a narrativa visual de Lourenço Mitarelli, além de um estudo sobre O Guarani, de José de Alencar,” como produto cultural midiático.“ A pesquisa faz o levantamento da trajetória da obra de Alencar que nasce como romance folhetinesco, no rodapé da página do Diário do Rio de Janeiro, seria reunida em livro, transformada em ópera, atravessaria o século XX com sete versões cinematográficas e chegaria ao século XXI com mais de uma versão em HQ.
Este último projeto, por coincidência, faz exatamente o tipo de estudo realizado por uma de nossas orientandas com o romance Frankenstein, de Mary Shelley: as diversas re-edições; modificações na transposição para o teatro; a criação do mito de Frankenstein pela mídia cinematográfica de Hollywood; a transposição para revistas em quadrinhos e séries de televisão; a disseminação da temática do monstro em animações e séries televisivas, além do uso da imagem do “monstrinho Frankenstein” como commmodity da indústria cultural. (Disponível no site do Curso de Mestrado. Autora: Sônia Tognolli).
No cômputo geral, é possível concluir que as pesquisas desenvolvidas em nosso curso de mestrado em Teoria Literária (UNIANDRADE), que seguem algumas das tendências apontadas ─ comparativismo, intermidialidade, pós-modernismo, história, memória e discurso ficcional ─ mostram-se atuais e relevantes.
 
IV CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISA EM LITERATURA
 
De especial interesse para os cursos de pós-graduação stricto sensu foi a intervenção da professora Dra. Sandra Regina G. Almeida, da Diretoria de Avaliação (DAU) da CAPES , sobre A Avaliação de Programas na área de L&L: Recomendações e Perspectivas.
 
RECOMENDAÇÕES ESPECIAIS AOS PROGRAMAS:
 
Incentivar a interlocução com a educação básica
Discutir formas de interfaces pós-graduação-graduação.
Estimular a rede interna de intercâmbio entre programas.
Programas nível 3. Tomar todas as medidas para melhorar o nível. Lançar mão dos recursos possíveis: professores visitantes, intercâmbios entre pares, etc.
Avaliar a qualidade dos egressos.
 
PERSPECTIVAS da DAU
Monitorar os programas com dificuldades, realizando visitas estratégicas. É preocupante  que o programa se mantenha no nível 3 por mais de três avaliações.
Fortalecer os mestrados e incentivar a abertura de doutorados.
Incentivar a criação de Fóruns Regionais de Coordenadores.
Apoiar eventos organizados por discentes.
Atingir erro zero no Coleta Capes. Análise esmiuçada dos programas.
Responder a questões básicas: como a pós-graduação está atendendo às demandas da sociedade? Como está definindo suas diretrizes futuras?
 
CONFERÊNCIAS
 
Duas das conferências se encaixaram de modo especialmente apropriado na temática do IV Congresso, VISÕES E REVISÕES DO BRASIL: NÓS E OS OUTROS, ao trazer uma visão dos brasileiros que imigraram para os Estados Unidos, conhecidos como brazucas.
 Na conferência de abertura, o professor Dr. Antonio Luciano Tosta, professor assistente da University of Illinois at Urbana-Champaign , Estados Unidos, analisou alguns dos aspectos mais comuns dos gêneros literários praticados pelos brazucas, sua inclusão na comunidade latina  (sob protesto dos falantes do português, que se julgam um grupo à parte) e as percepções que essa literatura revela sobre a interação Brasil-Estados Unidos.
O professor Dr. Welson Tremura discutiu sua experiência com o aprendizado acadêmico da música brasileira, na universidade de Louisville, na Flórida. Seu projeto interdisciplinar “Instituto de Musica Brasileira” aposta na importância do programa, que integra alunos, professores e membros da comunidade local. O caráter interativo de seu offshoot mais importante, o grupo musical Jacaré Brazil, polariza o aprendizado da música brasileira e contribui para construir a presença permanente da cultura brasileira no exterior.
A mostra que nos foi dado assistir em vídeo documenta o elevado nível artístico do grupo de instrumentistas e cantores que inclui, em projetos eventuais de integração, artistas brasileiros de renome. O intercâmbio internacional entre programas abre múltiplas possibilidades para que NÓS conheçamos os OUTROS e para nos darmos a conhecer.
 
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Modos de ler Dom Quixote


Edna da Silva Polese *

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) foi responsável por escrever uma obra que cristalizou-se como verdadeiro marco para a composição do romance na Europa. Apesar de ser autor de outras obras importantes para o período, como Galatea, de 1585, Novelas exemplares, de 1616 e Os trabalhos de Persiles e Segismunda, de 1617, foi com O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, 1605, que Cervantes passou para a ala dos imortais na literatura ocidental. A obra foi reconhecida, como registra Otto Maria Carpeaux em História da Literatura Ocidental, como “o romance dos romances”. A segunda parte de Dom Quixote foi publicada em 1615, em meio ao atribulado problema de se confirmar como o verdadeiro Dom Quixote de Cervantes, já que o sucesso do primeiro livro fez surgir alguns falsos Dons Quixotes. Uma ironia que parece própria da narrativa cervantina.

O sucesso imediato de Dom Quixote está vinculado ao momento de sua escrita. As mudanças radicais vividas na Europa e o endurecimento da Igreja Católica na Ibéria, são panos de fundo para um enredo inspirado no passado: a impossibilidade de se viver como cavaleiro medieval quando não se estava mais nesse período. Daí o romance ser a grande paródia dos romances de cavalarias, verdadeiros best sellers de época. Desses, o Amadis de Gaula, publicado em 1508, foi, depois da Bíblia, o livro mais lido de todos os tempos, segundo Carpeaux.

Dom Quixote é um fidalgo de poucas posses que endoidece após ler muitos livros – os conhecidos romances de cavalaria. Sai pelo mundo para realizar sua missão como cavaleiro ao lado do escudeiro, o analfabeto e desajeitado Sancho Pança. O Cavaleiro da Triste Figura enxerga gigantes nos moinhos de vento, exércitos inimigos em ovelhas pastando, um elmo de guerreiro numa bacia de lavatório. O idealismo de Dom Quixote esbarra o tempo todo numa realidade que ele não quer enxergar. Realidade vista, interpretada o tempo todo pelo companheiro fiel que tenta, sem sucesso, chamar seu amo para a realidade.

Por conta desse idealismo e desse choque sofrido por Dom Quixote, a obra alcança uma outra forma de leitura no período do romantismo: o contraste entre as aparências e a realidade, presente na obra, será o cerne do romance realista. Dos títulos, podemos citar o Tom Jones, de Fielding e, em solos brasileiros, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

O Dom Quixote é ainda representante daquele grupo de obras cujo personagem se deixa levar pela ficção, como a Ema Bovary de Flaubert.

De acordo com Maria Augusta da Costa Vieira, em prefácio da edição da Editora 34, a obra, a partir da década de 1960, apresenta uma nova vertente interpretativa:

Um ponto fundamental dessa revisão crítica se apoia na ideia de que a obra é cômica. Essa comicidade, por sua vez, se estrutura a partir da criação do burlesco, ou seja, do desequilíbrio entre o nível estilístico e o tema. Desequilíbrio que tanto pode estar na utilização de um estilo elevado para referir-se a temas banais quanto na criação de um estilo tosco para referir-se a grandes temas.

Essa nova maneira de ler Dom Quixote está embasada, principalmente, na questão da linguagem, no modo como Cervantes uniu o erudito e o popular e, assim como Erasmo de Roterdã em O Elogio da Loucura, ridicularizou a erudição pedante. O burlesco, a paródia e a ironia estão de volta, mas sob outro tipo de análise: a da arte de colocar em mesmo nível de diálogo o fidalgo culto, Dom Quixote, e o analfabeto Sancho, o grande iluminador do caminho de Dom Quixote, pois conhecemos figura do Quixote através de Sancho.

Bakhtin com suas novas teorias sobre a linguagem e a literatura nos traz sangue novo com as ideias acerca da carnavalização, do riso e do grotesco, elementos encontrados na narrativa cervantina. O Dom Quixote segue sempre como uma nova faceta a se mostrar, amalgamando-se a cada tempo com sua incrível capacidade de se comunicar com novos leitores. Seu personagem, enlouquecido pela leitura, diverte, ensina e provoca.

 

* Edna da Silva Polese é professora de Teoria e Estudos Literários do  Curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

 

 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

O lirismo de P.K.Page: (re)leituras de um discurso complexo

Sigrid RENAUX

Resumo: Esta pesquisa visa examinar, através da análise da produção lírica de P.K.Page, o uso que esta poeta canadense faz da intertextualidade explícita, como a inserção de motes de renomados poetas (Neruda, Rilke, Auden, entre outros) como temas para o desenvolvimento de suas próprias glosas. Esta abordagem nos permitirá avaliar melhor como Page, ao entrar numa relação de transformação, transgressão e amplificação dos textos originais, está simultaneamente fazendo uso da criação como da crítica, através da metapoesia, confirmando deste modo as possibilidades criativas da intertextualidade como instrumento de palavra privilegiado para um diálogo entre textos, literaturas e nações.

 

Introdução

Partindo da pressuposição de que “um texto propõe sempre determinadas estratégias de abordagem que o leitor deverá atualizar num movimento de cooperação interpretativa” (REIS & LOPES,1988, p. 168), a leitura da obra poética de P.K.Page, com sua grande variedade temática, formal e estilística, revela-se particularmente fértil na proposta de estratégias de abordagem. Pois, ao iniciar numerosos poemas com motes de poetas renomados como Pablo Neruda, Rainer Maria Rilke, W.H. Auden, Elizabeth Bishop e T.S. Eliot, entre outros, intertextos esses que servirão como matriz para o desenvolvimento de suas próprias glosas, Page está fazendo uso não apenas de uma intertextualidade poética explícita, mas, através dela, também de uma intertextualidade implícita (JENNY, 1991, p. 3), ao dialogar simultaneamente com outros fragmentos intertextuais, remetendo-nos destarte ao confronto das unidades morfológicas, sintáticas ou semânticas comuns ao texto nutriente e ao novo contexto.

Assim, diante de material tão rico e versátil, esta pesquisa irá se concentrar no uso que Page faz dessas duas formas de intertextualidade e demonstrar como, ao inserir motes como parte integrante de seus próprios poemas, Page está não apenas ludicamente fazendo uso da glosa – forma métrica espanhola inventada pelos poetas da corte no final do século XIV e que consiste num mote introduzindo o tema do poema, seguida por uma estrofe para cada linha do mote, comentando ou glosando a linha (CUDDON, 1992, p. 378).  Está, concomitantemente, entrando num diálogo altamente complexo com os motes, ao não só incorporá-los e comentá-los mas assimilá-los, transformá-los e recriá-los de tal maneira que esses textos-origem não são mais determinantes ou controladores do sentido mas fragmentos significantes à procura de um outro referente. E, ao se rearticularem em novas construções metalingüísticas, não ampliam apenas seu próprio espaço semântico mas levam as glosas, conseqüentemente, a operar uma “reescrita crítica”( JENNY, 1991, p. 44) dos textos originais.

Ao adotarmos como estratégia de trabalho a intertextualidade como definida por Kristeva – “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação dum outro texto” – definição à qual Jenny acrescenta “trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido” ( JENNY, 1991, p. 13-14) e tomando portanto como texto centralizador o poema “Planet Earth” (PAGE, 2002, p. 14-15), cuja epígrafe é um mote de Pablo Neruda (1904-1973), estamos simultaneamente levantando as seguintes questões: como se opera a assimilação, transformação e recriação, no poema de Page, dos enunciados pré-existentes em Neruda? Em que relação estão esses enunciados assimilados com o seu estado primeiro? De que modo o poema de Page como criação pode ser considerado simultaneamente uma reescrita crítica de Neruda?

A fim de podermos trabalhar essas questões de modo coerente, iremos recorrer também, como reforço teórico, à proposta de Jenny quanto aos tratamentos que um enunciado sofre ao ser inserido num novo conjunto textual, quais sejam: a verbalização, a linearização e o engaste. Se os dois primeiros – a nível de expressão – já se encontram normalizados e explicitados no poema de Page, pois a substância significante do texto está verbalizada e o significante verbal, integrando o material transcrito – o cut up – com o novo texto, desvenda-se progressivamente ao longo das linhas, são os engastes intertextuais – a nível de conteúdo –, assentados em isotopias metonímicas e/ou metafóricas, que irão nos auxiliar na análise da palavra poética de Neruda em sua relação com a de Page. Essas três operações, incidindo na transformação do condicionamento contextual, serão complementadas com o auxílio do arsenal de figuras de retórica, que oferece uma matriz lógica para classificar os tipos de alteração sofrida pelo texto no decurso do processo intertextual, ou seja, as modificações imanentes às quais os fragmentos intertextuais estão sujeitos. Dentre essas figuras faremos uso principalmente da amplificação, ou seja, a transformação dum texto original por desenvolvimento de suas virtualidades semânticas (JENNY, 1991, p. 30-44).

O poema de Page já traz o próprio título como elemento marcado por excelência – “Planet Earth” – visto que, pelo fato de nos remeter à definição de “Planeta Terra” e portanto fazendo-nos visualizar o globo terrestre como um corpo celeste, parte de um sistema de planetas que giram sobre si mesmos e à volta do sol, o título já antecipa um vínculo entre “Earth” como planeta habitado pelo homem e “Earth” em relação ao cosmos, vínculo esse que será ampliado e detalhado ao longo dos versos. E, como elemento paratextual, o título será recuperado não apenas através do mote de Neruda, mas principalmente através de isotopias metonímicas e metafóricas, presentes tanto no plano de expressão, como no plano de conteúdo do poema. Simultaneamente e dentro de nosso século XXI, no qual a grande tônica recai sobre a conscientização da preservação do planeta Terra, o título também adquire uma conotação ecológica, como o desenvolvimento do poema irá confirmar.


IV CICLO DE INTEGRAÇÃO GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ATIVIDADE REUNI
AUTORES INTIMISTAS BRASILEIROS: LÚCIO CARDOSO, CORNÉLIO PENNA E CLARICE LISPECTOR

ATIVIDADE GRATUITA

QUARTAS, 16h às 18h [INÍCIO 07 de novembro]

(com certificado de 30hs)

Informações e Inscrições 
Universidade Federal do Paraná

Rua General Carneiro, 460, 10° andar

(041) 33605102

Das 10 às 12 e das 14 às 17

gabrielaszabo@hotmail.com

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

CURITIBA ZERO GRAU: A PREVISÃO É DE TEMPO BOM.

Verônica Daniel Kobs*

Na semana de estreia do filme, apesar de a produtora e o diretor do filme terem considerado o filme uma produção “não bairrista”, foi justamente o fato de o filme ser curitibano que repercutiu, nas entrevistas veiculadas em programas culturais e também nas propagandas de rádio. Como curitibana, boa provinciana e apreciadora de cinema, fui conferir o filme e confesso que esperava algo “para turista ver”.
Evidente que o bairrismo existe: o espaço curitibano está lá, como cenários de quatro histórias e de quatro personagens, assim como o sotaque tão particular de quem é de Curitiba e fala “piá” e “leite quente”. Por isso, o espectador curitibano tem uma relação especial com o filme. Eu gostei de ver um modo de falar diferente dos sotaques carioca e paulista e me surpreendeu, em muitos sentidos, a qualidade técnica do filme, que é uma produção a altura das grandes produções. Não foi à toa que o longa, antes de ser exibido nos cinemas, em todo o Brasil, participou do Festival de Cinema do Rio, em 2010, e, em 2011, conquistou o prêmio do público, no Cinesul.
O filme impressiona pela simplicidade das histórias, cotidianas e universais, que refletem muitos dos problemas do novo século. Em algumas críticas sobre o filme, li que “Curitiba zero grau fala da sobrevivência nas grandes cidades”. Verdade. E isso me fez pensar sobre a relação já anunciada no título, entre o filme curitibano e o polêmico Rio 40 graus, dirigido por Nelson Pereira dos Santos e lançado na década de 1950. A semelhança é o entrelaçamento de histórias de personagens que têm de tratar de ganhar a vida na capital. A diferença é a temperatura.
O frio curitibano está em várias paisagens de inverno do filme, a mais bonita delas no Parque Barigui. Mas se engana quem pensa que a produção elege só os cartões postais da cidade como cenário. Não mesmo. Acompanhando a história, vamos da Cidade Industrial ao Centro, depois ao Rebouças, ao Jardim Ambiental, ao Boa Vista e chegamos ao bairro Santa Cândida... Nossa cidade está lá, com a modernidade e os projetos urbanísticos que os turistas querem ver de perto, com os grandes parques, mas também com favelas, pequenas praças e vilas (anônimas para muitos), conjuntos residenciais populares... Espaço e identidade são ampliados, multiplicados, e são o lado bom do filme de Eloi Pires Ferreira.  
Quanto ao outro lado, claro que há tentativas de acerto, mas que não atingem plenamente o objetivo. Durante todo o filme, acompanhamos as histórias dos quatro protagonistas. Esse esquema de enredos paralelos sempre requer algum cuidado e exige uma escolha difícil: diminuir a intermitência narrativa, usando um espaço mais longo para cada história; ou investir na rapidez e na descontinuidade, com trechos mais curtos de cada narrativa. O ideal mesmo seria conseguir um equilíbrio, justamente o que faltou em Curitiba zero grau. Percebemos essa falha no final, quando os personagens se encontram e as histórias são retomadas. Mas alguns detalhes ficaram longe... O espectador já tinha até se esquecido deles. Resultado: A intensidade do problema não é retomada no mesmo nível de ansiedade e expectativa que havia no momento em que a história daquele personagem foi contada, lá no início.
Além disso, o cinema atual nos condiciona a esperar finais pouco otimistas e Curitiba zero grau contraria essa tendência. A isso se deve a frustração que tive (ainda que acompanhada de uma pequena dose de surpresa) com o final do filme: Tudo dá certo e o que não dá certo revela o bom caráter dos personagens. De um modo ou de outro, depois do frio, o sol volta a aparecer para todos. Pelo menos, o fim da história é coerente com o otimismo do trailer do filme...
Em Curitiba zero grau, a previsão é de tempo bom. Temperatura amena, com sol entre nuvens: uma paisagem tipicamente curitibana.

FICHA TÉCNICA DO FILME: CURITIBA zero grau. Direção de Eloi Pires Ferreira. BRA: Produzido e distribuído por Tigre Filmes e Camarada Filmes; 2012 (105 min); son.

* Verônica Daniel Kobs é professora de Imagem e Literatura do Curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.