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terça-feira, 28 de junho de 2016

A POESIA DE TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O XX: OLAVO BILAC E AUGUSTO DOS ANJOS

Otto Leopoldo Winck*
Na periferia do capitalismo, ourivesaria e paroxismo

            Em 1880 o Brasil era uma monarquia (a única na América Latina), escravagista (a última nação do continente a alforriar os escravos), com uma população, basicamente rural, de cerca de dez milhões de habitantes. O romantismo, dominante até algumas décadas atrás, agonizava, acossado por uma poesia que se pretendia científica, socialistas e realista. Uma geração depois, em 1920, o país já contava com uma população de 30 milhões, era uma república consolidada, não obstante instável. A industrialização, ainda que incipiente, ao lado de uma nova burguesia, produzia os primeiros proletários. Na elite dirigente, reinava o positivismo, o qual, de doutrina que pretendia combater a ignorância e a superstição, transplantado para os trópicos, assumia curiosos ares de culto religioso. Ao mesmo tempo, os imigrantes europeus traziam para cá as novas ideias do anarquismo e do marxismo. Na literatura, realismo, naturalismo, parnasianismo e simbolismo, muitas vezes imbricados e sem mais a pujança inicial, já ostentavam um rol considerável de realizações, enquanto aquilo que viria a ser conhecido como modernismo ainda não dera o ar da sua graça, como o faria de maneira ruidosa em 1922, na Semana de Arte Moderna – curiosamente no mesmo ano da fundação do Partido Comunista. A imigração mudara profundamente o perfil da demografia brasileira, “branqueando a raça”, enquanto os ex-escravos e seus descendentes, preteridos como mão-de-obra assalariada, engrossavam os cortiços nos morros e nos subúrbios das grandes cidades que pontuavam num país de feições ainda agrárias. Com efeito, não obstante algumas mudanças políticas e econômicas, o Brasil continuava um país de inserção subalterna no capitalismo global, pagando um pesado óbolo por sua herança colonial. O Rio de Janeiro exemplificava de maneira sintomática essas contradições. No começo do século a capital federal, inspirando-se na reurbanização de Paris, passava por uma profunda reforma, com a abertura de amplas avenidas, túneis e uma maquiagem no antigo centro. Os ambientes saneados e urbanizados, nos quais são combatidos os focos de epidemias como a febre amarela e a varíola, contrastavam com os morros e áreas periféricas, para onde era impelida a população pobre residente na região central. Com essa situação, crescia a delinquência, aumentando o número de delitos de toda ordem. Ao mesmo tempo, nas livrarias e cafés das áreas nobres, agitava-se toda uma fauna de boêmios e literatos, do sofisticado João do Rio ao marginal Lima Barreto. É a Belle Époque carioca, cenário onde circulava a alegre intelligentsia tupiniquim, antes da irrupção,  por conta do modernismo, de uma nova geração de artistas e intelectuais baseados em São Paulo. Na poesia desse período, dois poetas podem ser convocados para exemplificar o espírito da época: o parnasiano Olavo Bilac e o “simbolista” Augusto dos Anjos.


O Príncipe dos Poetas

Juntamente com Alberto de Oliveira (1857-1937) e Raimundo Correa (1859-1911), Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), cujo nome já é um alexandrino perfeito, forma a famosa “trindade parnasiana”. Nascido como reação aos excessos da subjetividade romântica e ao seu famigerado desleixo formal, o parnasianismo chega ao Brasil por influxo direto de seu similar francês. O vate se transforma em joalheiro, o vidente em ourives. Em vez da inspiração, o lavor; no lugar do sestro, a perícia técnica. O modelo ideal são as artes visuais, em especial a escultura. O culto da forma, não raro confundido com fôrma (como disse Manuel Bandeira), a arte pela arte, a impassibilidade são erigidas em virtude, como no ideal clássico, e toda a temática da Antiguidade volta à tona, com sua carga alienígena de deuses e heróis greco-romanos. Num país de não-leitores, os poetas parnasianos alcançam invejável glória, sobretudo a supracitada trindade, da qual destaca-se, em evidente primazia, o primeiro príncipe dos poetas brasileiros, Olavo Bilac.
Jornalista, polígrafo, inspetor de ensino, Bilac talvez seja o representante mais típico de nossos triunfantes literatos da Belle Époque – sem dúvida o poeta mais popular de sua época. Contrariando o conselho que deu em “A um poeta”, não fugiu “do estéril turbilhão da rua”, mas antes envolveu-se em intensa atividade política: defendeu a Abolição e a República, engajou-se na oposição a Floriano Peixoto, na campanha pelas reformas urbanas,  na defesa da instrução primária, e, no fim da vida, na propaganda pelo serviço militar.
Já no intróito de seu livro de estreia, Poesias (1988), o poema “Profissão de fé” é um exemplo do ideário parnasiano, felizmente nem sempre seguido à risca pelo poeta: “Torce, aprimora, alteia, lima / A frase; e, enfim, / No verso de ouro engasta a rima, / Como um rubim.” Das três partes constitutivas do livro, a primeira é a que mais se identifoca com o ideal parnasiano – na escolha dos temas, na ênfase descritivista, no caprichado refinamento, na chave de ouro dos sonetos. Sobretudo, é na segunda parte, Via Láctea, que se revela outro veio do poeta, o que o salva dos excessos da rigidez da escola. Aí se percebe a influência do lirismo da matriz portuguesa, sobretudo Bocage, e um sensualismo de inspiração epicurista. Mas é sobretudo no livro Tarde, publicado postumamente em 1919, que esse lirismo logra ás vezes libertar-se da camisa de força parnasiana e, envolto num doce clima crepuscular, atingir alguns altos vôos poéticos.
Devido a tendência parricida das novas gerações, Olavo Bilac foi um dos alvos preferenciais dos modernistas, o que turvou durante muito tempo sua correta apreciação pela crítica. Todavia, nos últimos decênios, sua obra vem sendo aos poucos revalorizada, não apenas seus poemas “oficiais” como também sua atividade na imprensa, sobretudo as crônicas e os poemas de circunstância.


Poesia agônica

Se Olavo Bilac, salvo em alguns momentos, é um representante típico do parnasianismo, o mesmo não se pode falar de Augusto dos Anjos (1884-1914) com respeito ao simbolismo. É claro que não é apenas sob o ponto de vista cronológico que o poeta paraibano é aproximado ao simbolismo, pois este não é tanto posterior ao parnasianismo como muitas vezes concomitante a ele. Entre Augusto dos Anjos e a escola do Símbolo, não apenas alguns temas mas a sensibilidade os aproxima. No entanto, se o simbolismo, ao contrário da visualidade do parnasianismo, preferiu o encantamento da música, esta soa de modo estridente e dissonante em Augusto dos Anjos. Ao contrário da surdina verlaineana de um Alphonsus de Guimaraens, os acordes do autor de Eu, lançado em 1912, causam estranheza por sua aguda dissonância. Todavia, junto ao poeta de Mariana e Cruz e Souza, uma vocação para a marginalidade e para a melancolia os une. Ademais, ao contrário dos aplausos da trindade parnasiana, esta tríade “simbolista” não conheceu a fama, não gozou de prestígio literário. Contudo, ainda que membro inconteste desse trio, só podemos denominar Augusto dos Anjos como simbolista com aspas de protesto. Ao contrário dos outros, nele não encontramos a fuga para a Torre de Marfim do Parnaso ou do Símbolo, mas sim um amargo mergulho na sordidez da realidade, com fortes cores escatológicas. Em vez do evanescente, a dura materialidade expressa não raro com “antipoéticos” termos científicos. Em vez do sonho, o pesadelo do prosaico. Em vista dessas particularidades, alguns críticos denominam Augusto dos Anjos como pós-simbolista, outros, como ferreira Gullar, como pré-moderno, embora esses termos nos pareçam demasiado imprecisos. Há ainda quem vislumbre nele traços expressionistas, aproximando-o ao poeta alemão Trakl. De toda forma, Augusto dos Anjos pertence a esta geração na qual o simbolismo, em todas as suas vertentes, preparou o terreno para a irrupção da poesia moderna.
Ao contrário de Bilac, célebre em vida e atacado depois de morto, Augusto dos Anjos, que em vida não encontrou mais que ostracismo, conquistou uma grande popularidade póstuma. Seu livro, o único publicado em vida, vem recebendo seguidas reedições, superando em muito o número de leitores do colega parnasiano.


Referências bibliográficas

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BILAC, Olavo. Poesias: Panóplias, Via-Láctea, Sarças de fogo, Alma inquieta, As viagens, o caçador de esmeraldas, tarde. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 1998.
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de janeiro: G. Ermakoff, 2007.
CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed. São Paulo: USP/Itatiaia, 1975.
GIL, Fernando Cerisara. Do encantamento à apostasia: a poesia brasileira de 1880-1919. Curitina: Editora UFPR, 2006.
HELENA, Lúcia. A cosmo-gonia de Augusto dos Anjos. Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1977.

SIMÕES JUNIOR, Álvaro santos. A sátira do parnaso: estudo da poesia satírica de Olavo Bilac de 1984 a 1904. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade

segunda-feira, 20 de junho de 2016

BOYHOOD: O TEMPO COMO EXPERIÊNCIA REAL QUE SUPERA A REPRESENTAÇÃO

Edson Ribeiro da Silva*


Quem viu Boyhood sabe que não se trata de uma experiência cinematográfica convencional. O filme foi criado e produzido a partir de um conceito, uma ideia nova. Aquilo, afinal, que diferencia a arte realizada com intenções estéticas no mínimo ambiciosas da realização corriqueira do já-visto, do já-feito, pobreza esta que caracteriza tantas produções de nossa época.
Ter levado doze anos para se filmar uma história corriqueira poderia soar como um indício de que algo não estava bem nessa produção. Falta de recursos? Condições adversas? Nada a ver. Apenas a realização de uma ideia, uma proposta estética. Em vez de se contar uma história cuja narrativa levasse doze anos, trocando os atores, fazendo reconstituições de época, o que se vê são atores sofrendo as modificações do tempo. Ao mesmo tempo, veem-se as modificações que o tempo provoca naqueles elementos corriqueiros, como a música que se escuta e o aparelho através do qual ela é escutada. Tudo inserido em sua devida época, sem reconstituições. 
O ator Ellar Coltrane, que era um garoto de seis anos de 2002, quando as filmagens começaram, talvez nem pudesse ser chamado então de ator. Era cedo demais para que soubesse a dimensão do projeto em que estava inserido. Em 2014, quando as filmagens acabaram, o rapaz de dezoito anos já apareceria nos inúmeros festivais em que o filme foi premiado, na condição de profissional. No projeto cinematográfico em que foi incluído, interessam sobretudo as transformações físicas na imagem do menino que, como diz o subtítulo do filme na sua versão brasileira, passa “da infância à juventude”.
O roteiro foi produzido para essas transformações, e a produção se direciona no sentido de inserir, a cada ano em que ocorrem as filmagens, sempre no verão, essa imagem em contextos históricos, culturais, tecnológicos, que possam evidenciar que existem momentos diferentes ao longo dessas mudanças na pessoa. Momentos que ficam evidentes, por exemplo, na trilha sonora, que exibe a cada ano o sucesso ouvido por aquela geração. Mas ainda, na presença de recursos tecnológicos, aqueles que acompanhavam o desenvolvimento de novos aparelhos que a geração toma como rotineiros. Desde os bichinhos virtuais e computadores imensos aos minúsculos telefones e tablets do presente. 


De um modo geral, é possível ver-se nesse registro de componentes de uma época aquilo que Benedito Nunes chama de tempo histórico, que é uma forma cultural de se segmentar o tempo físico ou cósmico. Há um contexto histórico-cultural, e ele não está lá apenas para ilustrar a época. É nela que a vida normal do garoto se desenrola. Usar um computador “da época” é apenas uma condição para se mostrar a rotina de um menino que chega à idade adulta e termina o filme como universitário de forma realista. Roland Barthes chamou a presença de tais componentes, no texto literário, de “efeito de real”. Em Boyhood, é um real localizado no tempo, e permite que se veja, a cada momento, a rotina como típica de um garoto, ou de um adolescente, ou de um jovem adulto daquele tempo histórico. O efeito, aqui, não é uma estratégia de representação, mas elemento do real em si.


O mesmo efeito de real, no resultado final do filme, até para aquele que não conhece as condições de produção em que foi realizado, aparece nos modismos de cada época. E o diretor teve o cuidado de pedir que, a cada ano, os atores aparecessem tais como estavam, seja em relação a roupas ou a cortes de cabelo. Difícil pensar que jovens que a cada verão compareciam para filmar uma produção cinematográfica pudessem contar com uma espontaneidade rotineira quando os dias de filmagem se aproximassem. Mas o real está lá, com seus cortes de cabelo, suas roupas, tudo que acaba revelando especificidades de épocas próximas no tempo físico, mas portadoras de uma possibilidade de salto quando se refere à fase da vida captada pelo filme.



Ainda segundo Nunes, existe um tempo físico, que pode ser chamado aqui de biológico, aquele das transformações nos seres e que nos indica que para alguém a vida está passando. Ele é um tempo cruel, pois irrevogável. Foi para ele, mais que para qualquer outro, que Boyhood foi concebido. É um filme que mostra o rosto que ganha espinhas para, mais tarde, ganhar os primeiros pelos e, depois, aquela complexão adulta da pessoa que cresceu. E o filme procura deixar claro que a história não acaba junto com o filme. Por isso, nada de clímax ou desfechos definitivos. A infância passou e com ela aquela inocência do menino que dizia saber que vespas surgem da água jogada para o alto. Ou a dor banal, a “pagação de mico” do pré-adolescente que precisa aparecer na escola com a cabeça raspada e sofre a gozação dos amigos. O rosto de Coltrane exibe esse tempo biológico. Seria frugal em um álbum de família. Em um filme de pouco mais de duas horas, ganha uma dimensão sofrida, de estranhamento, pois a sensação de a vida passar rapidamente incomoda quem assiste. Ainda assim, é possível voltar ao início do filme; na vida real, não há regressos.


A imagem de Patricia Arquette sofrendo as transformações do tempo físico não possuem a dimensão lírica da condição de formação que identifica as mudanças do ator protagonista. No caso dela, o que se tem é uma mudança indesejada. Por isso, a fala que mais marca a personagem, a mãe do protagonista, ocorre no momento em que o rapaz está se mudando para o alojamento da universidade onde vai estudar. Ela diz que, após ter criado os filhos e tê-los entregue ao mundo, só lhe resta morrer.


Se o tempo biológico incomoda, é ele que resulta em um roteiro que unifica uma experiência cinematográfica tão original, como mostrar o tempo real antes mesmo de sua representação como enredo. Há um enredo que pode ser considerado muito menor que a fábula que o organiza, para usar as expressões do Formalismo Russo. O enredo é feito de banalidades, do ponto de vista de quem espera uma trama cheia de peripécias. Assim, as críticas chamam o roteiro de mediano: não há grandes conflitos, dramas fora da rotina. O que o roteiro faz é mostrar a vida normal, ao longo dos anos que vão da infância à juventude (ou à idade adulta). Ali estão os trabalhos escolares; os passeios com o pai nos finais de semana; o momento em que o adolescente, junto com seu círculo de amigos, aprende a beber, fuma escondido; conhece o sexo; forma-se e consegue ser aceito em uma universidade. Nada fora do eixo. O filme apenas ganha um tom de peripécia na cena em que o padrasto alcóolatra é abandonado pela família. O filme ficaria bem sem ela. Afinal, a sua opção pela vida comum lançada em um tempo efetivo, que tudo muda, faz lembrar as grandes obras literárias que perseguem a representação da duração, como Mrs. Dalloway e Ulisses, com seus dias comuns, As ondas, com a experiência do crescimento, ou as grandes durações do bildungsroman, como ocorre em Os buddenbrooks.
No cinema, a representação da vida banal de um garoto, da infância à juventude, em sequências marcadas por momentos rotineiros, aqueles que podem ser vistos em qualquer teen movie, daqueles que a televisão exibe sem nenhuma ambição de audiência, pode resultar em recusa. Aquele estranhamento de que falava o Formalismo Russo, como sendo uma qualidade da obra literária realmente inovadora e que partisse de um conceito que rompesse com o já-visto. No cinema, o estranhamento ainda é uma atitude perigosa. Estranhos são os filmes de arte, mas quase nunca aqueles feitos para o grande público. O filme conseguiu prêmios merecidos; público, talvez pela curiosidade. Ser considerado um dos melhores filmes da década é algo recusado por aquele público que não entendeu que o conceito complexo, que a produção demorada, que o tempo em suas várias modalidades, tudo isso resultou em uma reflexão poderosa sobre a vida comum, no que ela se repete para quase todo mundo, porque ultrapassa os limites da simples representação como mímesis e ganha a dimensão de documento que registra os efeitos reais (e não meros efeitos de real) da duração.
Se ainda se tomarem Benveniste ou Nunes como guias, há o tempo linguístico, constituído pelos recursos de que a língua dispõe para representar a experiência humana, a partir sempre do momento em que se enuncia. Boyhood complexifica esse tempo. Afinal, o agora é o momento em que se filma cada etapa da vida de uma pessoa. No sentido aristotélico, o tempo é uma sequência de agoras dispostos de modo a formar uma linha. Todo filme é isso. Bergson chamou essa forma de representação de ”ilusão cinematográfica da realidade”, algo que aqui, em Boyhood, torna-se uma provocação. A ilusão de que a duração é uma sequência de agoras, como quadros de um filme colocados um após o outro, faz com que a relação entre o tempo representado pelo filme e o tempo em que é produzido se confundam e a vida comum, submetida ao tempo real, surja como um conjunto de mudanças biológicas e históricas, identificadas também como lançadas naquele tempo que Benveniste definia como crônico, e Nunes como físico, e que é apenas o conjunto das mudanças visíveis. Estar em 2002 ou em 2014 é o modo oficial de indicar que o planeta girou, que o menino cresceu, que os hábitos mudaram. Como dizia Bergson, o movimento dos astros não é o tempo. O tempo real é essa duração que pode ser visível, de fato, nesse corpo que cresce, no rosto da mãe enquanto envelhece. Essa duração é condição para que o público, acostumado a um conceito menos filosófico do tempo, possa apreender o filme em sua dimensão como tempo biológico e histórico, para depois entendê-lo como tempo linguístico. A linguagem cinematográfica, como arte temporal, está nessa sequência de quadros que, mesmo filmados fora da ordem do roteiro, criam a ilusão da duração. Em Boyhood, essa sequência de fases de uma vida obedece ao tempo real, precisa dele para criar a representação ficcional. E a mudança não é ilusão. Até mesmo a linguagem, como língua, é um recurso usado para mostrar que a pessoa está em mudança. A linguagem típica de cada fase do crescimento está representada com cuidado. É um trabalho eficiente de mostrar que houve mudança naquilo que Nunes chama de tempo psicológico, as características da personalidade que identificam a conformação subjetiva. A linguagem do menino vai mudando tal qual sua aparência.
A moral de toda essa história, seja da concepção que norteou o filme, seja do roteiro sem sobressaltos, está na frase final, em que o rapaz diz à nova namorada que a vida é isso, uma sequência de agoras na qual o que importa é apenas viver cada um deles de cada vez. Por isso, a metalinguagem da cena assume a condição de explicação: o filme quer do público a compreensão de que existe uma beleza específica em cada agora, seja em cortar o cabelo na marra, jogar boliche com o pai, tomar uma cerveja escondido, formar-se, beijar uma garota, cada coisa de uma vez, sem que o conjunto precise resultar em peripécias fora do banal, reviravoltas na cotidianidade ou surpresas para o público. Metalinguagem que mostra os agoras da filmagem a cada ano, mas também as fases do crescimento de uma pessoa, dos seis aos dezoito anos.


Como diria Bergson, a falha dessa ilusão cinematográfica está nos saltos entre as fases, como se as mudanças não fossem progressivas, contínuas, impossíveis de serem quebradas em agoras. O filme mostra uma possibilidade adequada a essa ilusão que o cinema possibilita. Um esforço, mesmo assim, complexo para se mostrar uma linha temporal em que mudanças estão ocorrendo e não pararão de ocorrer depois que o filme é encerrado. O tempo real, vital, não pode ser reduzido à ilusão proporcionada pelo cinema. Há mérito em se fazer pensar sobre isso.


*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

(AUTO)BIOGRAFIAS PARA CURTIR

Verônica Daniel Kobs*

De uns tempos pra cá, a sétima arte tem privilegiado histórias as reais (de celebridades e de desconhecidos notáveis), alavancando o mercado de biografias. O motivo disso é bem simples, afinal o interesse do público pela vida alheia é cada vez maior. No final do século XX, a revista Veja, de 26/07/95, assinalava a ascensão do gênero, “que só perdia para as publicações de ‘auto-ajuda’ – tanto que entre julho de 1994 e julho de 1995 haviam sido lançadas 181 biografias, o que significa uma a cada dois dias, e quatro a cada semana” (SILVA, 2009, p. 153). Já no século XXI, o jornal Correio do Povo de 19/12/04 reiterava: “As biografias ainda são grande destaque entre as preferências dos leitores e boa atração das editoras” (CORREIO DO POVO, 2004, p. 20).
Hoje, mais de dez anos depois, as biografias continuam a fazer sucesso. No início de 2015, Sergio Almeida analisou o mercado editorial português e constatou o “‘voyeurismo’ crescente da sociedade” (ALMEIDA, 2016), anunciando, já no mês de janeiro daquele ano, a publicação de 6 grandes títulos (com destaque para o livro de Emily Herbert, sobre a vida de Robin Williams) e de vários outros, todos sobre o Papa Francisco. No mesmo ano, é importante mencionar que, após discussões polêmicas, foi liberada a publicação de biografias sem a necessidade de permissão prévia. Em 2016, o site da Amazon divulga o lançamento de 20 biografias no formato e-book, com 10 títulos bastante aguardados pelo público, incluindo duas publicações sobre o juiz Sérgio Moro. No cinema e na TV, os filmes biográficos reafirmam a tendência já consolidada na literatura. Títulos de sucesso, como Clube de compras Dallas, O lobo de Wall Street, Selma, Grandes olhos e Doze anos de escravidão, ainda estavam entre os mais comentados pelo público. Recentemente, porém, inúmeros filmes do mesmo gênero foram lançados, alimentando o gosto e o debate pela vida alheia e renovando a lista. Considerando os principais festivais e premiações de cinema e TV, com ênfase ao Festival de Toronto 2015, Oscar 2016 e Festival de Berlim 2016, as biografias surpreendem:

- Minisséries / filmes para a TV (2015-16): Bessie; Grace Kelly; The secret life of Marilyn Monroe; e Luther.
- Filmes (2015): Spotlight; A grande aposta; Joy, o nome do sucesso; O regresso; Carol; A garota dinamarquesa; Trumbo; Aliança do crime; The programBorn to the blue; I saw the lightUnder the influence;  Eva no duerme;  e El clan.   
- Filmes (2016): Miles Ahead; Alone in Berlin; Nise, o coração da loucura; e O dono do jogo.

Para tentar explicar o sucesso das biografias no mercado contemporâneo, a pesquisadora Paula Sibilia afirma que o elemento-chave é o tempo: “(...) tudo que existe, existe no tempo” (SIBILIA, 2005, p. 41). Porém, o tempo, agora, “não é mais compartimentado geometricamente. E ao se converter em um contínuo fluido, ondulante e total, sua função (...) parece ter se intensificado e complexificado” (SIBILIA, 2005, p. 41). A conclusão parece óbvia: as biografias constituem, hoje, tentativas de registrar e eternizar histórias como reação à transitoriedade e ao imediatismo, afinal, o nosso tempo tempo não é mais o mesmo. No cotidiano do novo século, ele é “líquido” (Cf. Bauman, 2007), invisível e excessivamente acelerado.

O sucesso editorial das biografias e das autobiografias (...) excede as margens de um mero fenômeno de mercado: há uma revalorização das histórias individuais e familiares, e um revigorado interesse pelas vidas alheias. Nas mais diversas mídias, percebe-se uma voracidade com relação a tudo que remeta a “vidas reais”. Da proliferação de documentários em primeira pessoa ao sucesso internacional dos reality-shows e ao surpreendente auge dos blogs (...). (SIBILIA, 2005, p. 45-46)
      

Paula Sibilia ainda enfatiza o alargamento da esfera privada, que passa a ser de domínio público, transição que se relaciona intrinsecamente com a “espetacularização do eu” (SIBILIA, 2005, p. 47). A partir dessa perspectiva, pode-se associar a ideia da autora aos postulados de Guy Debord e Vanessa Schwartz, que sublinham, respectivamente, o interesse humano pelo espetáculo e pela morbidez. Aliás, nesses quesitos, um filme de 2015 que obteve grande destaque foi Aliança do crime (EUA), dirigido por Scott Cooper e estrelado por Johnny Depp. Todos conhecemos bem o comportamento do espectador médio de cinema, quando um filme termina e os créditos começam a subir: assim que as luzes se acendem e a expressão The end aparece na tela, a maioria sai da sala, sem nem ao menos ler os nomes dos atores que fizeram os papéis principais da história. Entretanto, no caso de Aliança do crime as coisas aconteceram de modo bastante diferente. Os créditos do longa mostravam fotos e reportagens reais dos assassinatos cometidos por Whitey Bulger e isso chamou a atenção do público, que permaneceu na sala de cinema até que as últimas palavras e imagens aparecessem na tela. Essa combinação de realidade e ficção nos leva aos primórdios da sétima arte. Os primórdios do cinema brasileiro, por exemplo, foi marcado por filmes que mostravam tomadas da Baía de Guanabara e que registravam o Carnaval em João Pessoa, no Rio de Janeiro e em Curitiba. Depois disso, os sucessos foram os filmes de enredo, baseados nos crimes de maior repercussão na mídia nacional. E o que dizer da experiência dos irmãos Lumière, que filmaram uma locomotiva em movimento?
Acompanhando o panorama que Vanessa Schwartz descreve, de Paris, no fim do século XIX, é impossível não se dar conta das coincidências que aproximam o público daquela época do leitor/espectador contemporâneo, o que nos leva a outro raciocínio: o interesse do homem pelo espetáculo e pela tragédia transcende ao tempo. É universal e eterno. Para demonstrar isso, a autora estabelece a função do necrotério parisiense, mencionando que o local “atraía tanto visitantes regulares quanto grandes multidões de até 40 mil pessoas (...), quando a história de um crime circulava na imprensa (...) e os visitantes curiosos faziam fila (...) para ver a vítima” (SCHWARTZ, 2001, p. 413). Seguindo a mesma proposta de espetacularização e morbidez, os parisienses contavam também com as atrações do museu Grévin, idealizado para ser “um aprimoramento dos jornais, como um modo mais realista de satisfazer o interesse do público pelos fatos diários” (SCHWARTZ, 2001, p. 421). Em função disso: “Os fundadores do museu prometeram que sua exibição iria ‘representar os principais eventos correntes com fidelidade escrupulosa e precisão impressionante’, funcionando como ‘um jornal vivo’” (SCHWARTZ, 2001, p. 421). Com base nos dois exemplos de entretenimento dados pela autora, verifica-se o papel primordial do jornal, em ambos os casos, associado de modo bastante salutar ao voyeurismo e à flânerie, e havia uma razão para isso: “O fim do século XIX na França foi chamado de ‘era dourada da imprensa’ (...)” (SCHWARTZ, 2001, p. 415). Para nos ajudar a entender essa incômoda e surpreendente semelhança entre as sociedades dos séculos XIX e XXI, os estudos de Debord trazem valiosa contribuição, sobretudo no que diz respeito à crise identitária do sujeito, que pode chegar à negação do eu e da própria realidade: “O espetáculo (...) manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real” (DEBORD, 2005, p. 135); “O espetáculo (...) é a extinção dos limites do moi e do mundo (...), é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vivida (...). (...) compensa o sentimento torturante de estar à margem da existência” (DEBORD, 2005, p. 137-138).
Com base nesse panorama, fica mais fácil compreender as principais vantagens da biografia (hoje e sempre): reter o tempo; registrar o presente e o passado; delimitar o território do eu, representando-o a partir do outro e para os outros; revelar detalhes da vida alheia; proporcionar um espetáculo, seja ele com final feliz ou trágico; e, claro, alimentar o consumismo, afinal só há oferta quando há demanda.
Na atualidade, tudo isso faz sentido, afinal, a vida diária de qualquer pessoa é registrada e remontada, por meio de posts e fotos, no Facebook e no Instagram: selfie com os amigos; foto do que foi servido no restaurante; vídeo do bebê; foto da tempestade chegando, ou dos estragos causados pela chuva...  Todos escrevem sua história presente, para compartilhá-la com inúmeros seguidores. Surgem, então, milhares de autobiografias instantâneas em um único dia, as quais revelam indícios importantes. O primeiro deles é a rapidez (tanto do registro quanto do “consumo” da postagem). O interesse, tanto de quem escreve como de quem lê, é pela ação imediata: o agora ou, no máximo, a viagem do fim de semana, o que acaba redimensionando a função, o ritmo e o próprio status da História. Outra questão relevante é a predominância do fato desimportante, quase banal... A curiosidade, hoje, não é pelos grandes feitos, mas pelo comum, pelo corriqueiro. Mais um aspecto que surpreende é o relato não confessional, pois a publicação é obrigatória e condiciona a escrita ou a foto desde a simples ideia de escrever ou fotografar para compartilhar com o(s) grupo(s). Por último (mas não menos importante), surge o velho gosto pelo espetáculo, mas com uma diferença crucial: além de espectador dos outros, somos também protagonistas. Nós somos o espetáculo e nos mostramos em diversos ângulos, em todos os lugares, com muitas pessoas diferentes e fazendo todo tipo de coisa.
Por tudo isso, o mercado das biografias agradece. Viva o (auto)biografismo!

Referências:
ALMEIDA, S. Biografias em alta nas apostas para 2015. Disponível em:
<http://comunidade.jn.pt/blogs/babel/archive/2015/01/06/biografias-em-alta-nas-apostas-para-2015.aspx>. Acesso em: 20 mai. 2016.
CORREIO DO POVO. Livros para conhecer a vida alheia. Correio do Povo. Caderno “Variedades”, 19/12/04, p. 20.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
SCHWARTZ, V. O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 411-440.
SIBILIA, P. A vida como relato na era do fast-forward e do real time: algumas reflexões sobre o fenômeno dos blogs. Em Questão, v. 11, n. 1, Porto Alegre, jan./jun. 2005, p. 35-51.
SILVA, W. C. L. da. Biografias: Construção e reconstrução da memória. Fronteiras, v. 11, n. 20, Dourados, jul./dez, 2009, p. 151-166.

* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Teoria e Estudos Literários, no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia no Curso de Graduação de Letras da FAE.