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sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

“PAI CONTRA MÃE” E OS DILEMAS DA MODERNIDADE BRASILEIRA


                                                                                                                 Prof.ª Dr.ª Greicy Pinto Bellin*

Em “Pai contra mãe”, escrito em 1906, Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e um dos mais importantes escritores brasileiros, retrata a difícil situação das classes desfavorecidas no século XIX, marcado pelo auge do imperialismo britânico e por seu principal efeito na economia brasileira oitocentista: a escravidão. A cessação do tráfico negreiro por pressões inglesas no ano de 1850, expressa na famosa lei Eusébio de Queirós, fez surgir uma verdadeira anomalia no mercado brasileiro de profissões destinadas ao que Maria Sylvia de Carvalho Franco, em estudo relevante publicado em 1969, chamou de “homens livres na ordem escravocrata”. Trata-se do capitão-do-mato urbano, que retirava seu sustento da captura de escravos fugidos em troca de gratificações que nem de longe conseguiam substituir um salário regular, dada a irregularidade e extrema flexibilidade da ocupação.
Cândido Neves, o protagonista de “Pai contra mãe”, tinha, na visão do narrador machadiano, um defeito grave: o caiporismo, denominação que emerge da mitologia popular indígena para qualificar o homem avesso às obrigações do trabalho ou, melhor dizendo, o “malandro”, conforme expresso por Antonio Candido em outro célebre ensaio, “Dialética da malandragem”. A narrativa machadiana torna claras as diferenças entre a ordem escravocrata brasileira, marcada pelo “jeitinho” e por demais arranjos que objetivavam liberar o homem das obrigações trabalhistas impostas pela hegemonia do capital britânico, e a sociedade norte-americana, que Candido percebia, não sem razão, como uma “sociedade moral” onde a religião protestante não admitia o relativismo ético. Apenas a sociedade brasileira poderia comportar a existência de um indivíduo como Cândido Neves ou Candinho, como é chamado no decorrer da narrativa. Tendo perdido o ofício de entalhador e se casado com a ingênua Clara, sofre a pressão de tia Mônica para arrumar um “trabalho certo”. O único que lhe apetece é o de caçador de escravos, que não o obriga a “ficar horas sentado” e lhe permite conversar horas na esquina até perceber a presença de sua vítima. Torna-se um óbvio ululante afirmar que Machado de Assis estava lançando mão desta representação para criticar o jeitinho brasileiro, bem como a falta de perspectivas de um homem ainda jovem e com força produtiva, mas que se vê impelido ao que Nicolau Sevcenko, em Literatura como Missão, chamou de “vagabundagem delituosa”, tendo em vista que a profissão de Cândido implicava em uma violência extrema contra os escravos. Tratava-se, por outro lado, de uma violência legitimada pelo poder senhorial, à qual Cândido recorre para afirmar um poder que não existe e que, ao fim e a cabo, apenas corrobora a sua inferioridade como homem branco e livre inserido em uma ordem escravocrata.
O problema maior aparece quando Cândido descobre que sua esposa está grávida, o que ocorre concomitantemente ao surgimento de “mãos mais fortes e ágeis” para realizar o seu trabalho. Em uma narrativa vertiginosamente cruel, que mistura o grotesco à desconstrução da idealização da pobreza, o narrador machadiano nos faz assistir cada passo da derrocada material de Cândido e sua família, desde o aparecimento do credor que ameaça o despejo até a constatação, por parte de tia Mônica, de que o filho do casal teria de ser entregue à Roda dos Enjeitados, instrumento criado com a finalidade de sanar os problemas de aborto e infanticídio decorrentes da promiscuidade sexual no Brasil do século XIX. O nascimento da criança em meio à penúria acaba por conduzir Cândido a entregar a criança, atitude para a qual ele vê possibilidade de salvação ao identificar, na Rua da Ajuda, a escrava fugida de nome Arminda, cuja captura lhe daria os cem mil-réis que resolveria, pelo menos temporariamente, a situação financeira lastimável de sua família. Um contundente paradoxo se instala quando Cândido, ao capturar a escrava, percebe que ela está grávida. Arminda tenta barganhar sua captura se oferecendo para ser escrava de Cândido, ao que ele obviamente nega, devido à necessidade premente pelo dinheiro. Ao lançar mão de sua condição de gestante para implorar a compaixão do caçador de escravos, Arminda escuta algo que poderia se aplicar ao próprio Cândido: “Quem lhe mandou fazer filhos e fugir depois?” (ASSIS, 2008, p. 638). O conto se encerra com a entrega da escrava a seu dono, acompanhado pelo pagamento da gratificação e pelo grotesco aborto no meio da rua, o que ratifica a existência de uma ordem social baseada no que o próprio Machado chamou de struggle for life, isto é, a luta pela sobrevivência, que implica na desgraça de uns para o regalo dos outros. Até porque, segundo as palavras do próprio Cândido Neves ao final da narrativa, “nem todas as crianças vingam – bateu-lhe o coração” (ASSIS, 2008, p. 638).
A ideia da modernidade econômica brasileira como simulacro, ou melhor dizendo, uma imitação dos padrões europeus é largamente aceita pela fortuna crítica machadiana, encontrando na expressão “ideias fora do lugar” a sua maior realização. No entanto, Roberto Schwarz, um dos desconstrutores da ideia segundo a qual a obra de Machado não possuiria qualquer relação com o social, simplifica o problema do simulacro apontando para um deslocamento das ideias europeias quando, na realidade, tais ideias simplesmente não eram adequadas a um contexto de independência recente, como era o caso do Brasil no século XIX, e a uma literatura que estava buscando sua própria identidade. “Pai contra mãe” nos dá mostras de que a modernidade brasileira engatinhava no ano de 1906, marcado pela euforia da reforma do engenheiro e prefeito Francisco Pereira Passos, pela Abolição da Escravatura e pela Proclamação da República, fatos estes que, pelo menos teoricamente, marcariam a entrada do Brasil na modernidade. Modernidade esta que, todavia, jamais poderia ser atingida com base na imitação de modelos culturais, literários e arquitetônicos franceses, e também com base na cópia do struggle for life britânico, que fazia com que homens como Cândido Neves, no auge de sua força de trabalho, permanecessem na eterna dependência de sistemas de dominação para garantir a sua própria sobrevivência.

Referências                                                                                                                                ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.                                      CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista de Estudos Brasileiros, n. 8, 1970, São Paulo, p. 67-89.                                                                                                                                  FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres em uma ordem escravocrata. São Paulo: Editora UNESP, 1997.                                                                                                                          SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 2000.                          SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 
                                                                                                             *Professora do Curso de  
                                                                                     Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE