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quarta-feira, 28 de maio de 2014

SHAKESPEARE 450 ANOS: A PERMANÊNCIA DO BARDO NO SÉCULO XXI


Profa.Anna Stegh Camati

 

William Shakespeare (1564-1616) é o dramaturgo mais encenado, imitado, parodiado, citado e adaptado de todos os tempos. Foi transformado em ícone cultural e em objeto de idolatria global. Ao longo do ano 2014, que marca os 450 anos do seu nascimento, uma série de eventos celebram, em âmbito global, o patrimônio literário e cultural que o bardo legou à humanidade. No Brasil, entre as inúmeros homenagens, palestras e cursos, destacou-se o Fórum Shakespeare, uma promoção conjunta do Centro Cultural Banco do Brasil e do British Council, que foi realizado em quatro capitais brasileiras, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, onde especialistas brasileiros e britânicos discutiram e repensaram os escritos do dramaturgo e poeta. Novas montagens de peças shakespearianas, queforam levadas ao palco em 2014 ou estão programadas para estrear até o final do ano, também fazem parte das comemorações. No Festival de Curitiba (final de março e início de abril de 2014), o público teve a oportunidade de assistir a duas produções brasileiras de Ricardo III: um espetáculo solo, no qual o ator Gustavo Gasparani interpreta 21 das 54 personagens do drama histórico, além de acumular a função de narrador; e uma produção cênica ligada ao projeto “39 Shakespeare”, que pretende montar todas as obras do autor em um período de 10 anos, com previsão de apresentação de quatro novos espetáculos até o final do ano. Diante de tantas manifestações de entusiasmo e admiração, a pergunta mais frequente é a seguinte: Como se explicam a crescente popularidade de Shakespeare no século XXI e a permanência de suas obras ao longo dos séculos?

Inúmeros fatores sãoapontados para elucidar o interesse perene da obra de Shakespeare, dentre eles a energia criativa, exuberância verbal, imaginação privilegiada e compreensão acurada dos mistérios e complexidades da natureza humana que caracterizam sua produção textual. Harold Bloom, em Shakespeare:a invenção do humano(2000), afirma que o dramaturgo inventou o conceito moderno de humanidade ao retratar comportamentos,sentimentos, paixões e contradições de centenas de personagens, de diferentes gêneros, etnias e classes sociais, que ilustram a condição humana como a entendemos hoje. E, em O cânone ocidental (1995), o crítico estadunidense coloca Shakespeare no centro da tradição literária do Ocidente, apontando-o como matriz e inspiração da psicanálise freudiana.

Além disso, o apelo duradouro da dramaturgia de Shakespeare, ontem e hoje, é derivado da matriz estética de suas obras que combina elementos da alta cultura e da cultura popular. Ao mesclar aspectos do teatro clássico greco-romano com recursos da rica tradição teatral medieval, o dramaturgoconsegue agradar a todos os segmentos da sociedade e não apenas aos mais letrados.

Outro argumento, utilizado por críticos e aficionados, para explicar a sobrevida de Shakespeare na contemporaneidade, é a universalidade de seus escritos que se adaptam à produção cultural de diferentes períodos históricos e localidades. Jan Kott, em Shakespeare – nosso contemporâneo (2003), confere o estatuto de mitos culturais aos textos do bardo, destacandoHamletcomo a narrativa mais arquetípica, porque tal qual uma esponja, ela imediatamente absorve a problemática  de nosso tempo.E, entre as frases mais famosas sobre a personagem Hamlet, que se transformaram em máximas ao longo do tempo, destaca-se a observação de William Hazlitt – “Todos nós somos Hamlet” –, que equaciona o príncipe dinamarquês ao homem universal.

Shakespeare continua a dialogar conosco por conta deseu uso de múltiplos pontos de vista para relativizar questões controversas. O crítico marxista Terry Eagleton, em Marxismo e a crítica literária (1976), argumenta que é difícil confinar a visão de mundo de Shakespeare ao período elisabetano-jaimesco, uma vez que seus escritos até hoje nos intrigam, provocando reflexões e questionamentos. A multiplicidade de releituras,de cunho marxista, feminista, neo-historicista e pós-colonialista, que abordam os textos shakespearianos a partir de óticas contemporâneas, lançam luz sobre o homem de hoje e suas relações com o mundo. Eagleton acredita ser possivel estabelecer um diálogo entre Shakespeare e diversos pensadores influentes, como Sigmund Freud, Henri Bergson, Stuart Hall, Michel Foucault, Jacques Derrida e outros.

Vale ressaltar, ainda, que as inúmeras adaptações dos textos de Shakespeare, para o palco, o cinema, os quadrinhos e outras mídias,também são responsáveis pela longevidade de sua obra.Linda Hutcheon, em Teoria da adaptação (2011), faz lembrar que Shakespeare era um exímio adaptador que transferiu as histórias da tradição oral e escrita de diversas origens e culturas para o palco, tornando-as, assim, acessíveis para o público que frequentava os grandes teatros londrinos no final do século XVI e início do XVII. E, sem sombra de dúvida, as adaptações e recriações dos escritos do dramaturgo são imprescindíveis para garantir sua sobrevida: se Shakespeare, hoje, permanece e continua atual e popular em âmbito global, isso se deve não somente aos múltiplos fatores apontados acima, mas também, e principalmente, aos notáveis produtos artísticos e midiáticos realizados porencenadores, cineastas, atores e criadores dos mais diversos campos de conhecimento, que sedimentaram um vasto tecido semiótico-cultural em torno de sua obra no decorrerdos séculos, divulgando, ampliando e enriquecendoo seu legado.

Nesse sentido, o arquivo digital Global Shakespeares, hospedado no Massachussets Institute of Technology (MIT), em Boston (EUA), é um veículo de pesquisa importante, visto que reúne produções cênicas contemporâneas, de culturas e línguas diversas, que inspiram criadores e estudiosos do século XXI. O site Shakespeare Digital Brasil (UFPR), lançado recentemente em Curitiba, um projeto que consiste aproximar o público brasileiro em geral do universo shakespeariano, também constitui fonte relevante de pesquisa.

 

REFERÊNCIAS

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

 

_____. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

 

EAGLETON, Terry. Marxism and Literary Criticism. London: Methuen, 1976.

 

GLOBAL SHAKESPEARES.<http://globalshakespeares.mit.edu/brazil>

 

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: EDUFSC, 2011.

 

KOTT, Jan. Shakespeare, nosso contemporâneo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003

 

SHAKESPEARE DIGITAL BRASIL. <www.shakespearedigitalbrasil.com.br>

 

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

A TECNOLOGIA SOBRE-HUMANA DE ELA


Verônica Daniel Kobs*

 

            O filme Ela (EUA, 2013), dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquin Phoenix, analisa o sujeito contemporâneo e sua relação com a tecnologia. A partir desse tema atual e complexo, surgem outras características que representam nosso tempo, como a solidão, a carência afetiva, o individualismo e a artificialidade das relações “pessoais”. Indicado em várias categorias (roteiro, ator, trilha sonora, canção, design de produção,...), Ela concorreu, inclusive, ao Oscar de Melhor Filme. Em um quesito, porém, o filme foi unanimidade: Spike Jonze levou o Globo de Ouro de Melhor Roteiro e também o Oscar de Melhor Roteiro Original.

            Ela conta a história de Theodore, que, recém-separado, resolve aderir à tecnologia para fugir da solidão. Ele compra um sistema operacional (“OS1”), que, no computador, ganha uma voz feminina e o nome de Samantha. Dessa forma, Theodore consegue preencher a falta de uma mulher em sua vida. Samantha tem acesso a todos os arquivos de Theodore e, assim, logo se torna íntima dele. Ela pode ler e responder os e-mails dele, ajuda na seleção e organização de alguns documentos, conhece seus temas de interesse, seus hobbies e até seus projetos. Samantha pode ver, falar e ouvir. Ela conversa com Theodore, dá conselhos e manifesta suas impressões sobre os restaurantes que frequentam, as pessoas que encontram na rua e as paisagens que veem. Samantha passa a conviver com Theodore e por isso ela se “humaniza”, ao mesmo tempo em que é “humanizada” por ele. Em determinada cena, ela diz que chegou a imaginar que tinha um corpo e que andava de mãos dadas com Theodore, ao que se segue este diálogo:

 

THEODORE: “Você é mais do que eu imaginava. Tem muita coisa acontecendo com você.”

SAMANTHA: “Estou me tornando mais do que me programaram.” (ELA, 2013)

 

A tecnologia remodela a vida de Theodore, que, consequentemente, propõe um novo modelo de relação interpessoal aos seus amigos, colegas de trabalho e à sociedade em geral. Theodore leva Samantha à praia, eles saem juntos à noite, vão jantar fora, viajam juntos e até aceitam o convite de amigos para um programa de casais. Em nenhum momento Theodore esconde o fato de Samantha ser um sistema operacional, todos tratam o fato com naturalidade e ela participa das conversas com desenvoltura, demonstrando cumplicidade e felicidade em seu relacionamento com Theodore.



Cenas de Ela que mostram a convivência de Theodore e ___.
Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>



No filme, Theodore experimenta as vantagens e desvantagens de se relacionar com um sistema operacional. Não há corpo, nem presença física, mas ele tem uma companhia agradável e, o mais importante, quando ele quer. Essa “comodidade” era o que também atraiu as pessoas que se fascinaram com Aibo, um cão-robô feito pela Sony: “Aibo imita um animal de estimação com vantagens: não precisa comer, tomar banho ou urinar (embora levante a pata simulando o ato). Aibo não pede para passear, não late para as visitas e não suja a casa com pelos.” (RÉGIS, 2012, p. 119). Entre Samantha e Theodore, a liberdade e a privacidade eram garantidas pelo controle total do tempo e da presença de Samantha em sua vida, afinal eles se conectavam e desconectavam pelo acionamento das teclas on e off. No mundo real de Theodore, as impossibilidades da realidade de uma pessoa comum tornam-se possíveis. Tudo isso, claro, graças à tecnologia, ao mundo virtual e à não presença do outro. O contato e as mediações não são mais pessoais. Tudo é feito eletronicamente. Evidente que isso ajuda a explicar as dificuldades do sujeito contemporâneo em se relacionar com as pessoas sem a interface tecnológica e em gerenciar conflitos. No filme, aliás, não é apenas Theodore que tem problemas no casamento. Depois da separação dele, um casal amigo também se separa e a mulher, a exemplo de Theodore, passa a se relacionar com um sistema operacional. Mais uma vez, Ela nos leva a refletir sobre nossa condição atual, participantes de relações fluidas, escorregadias, que não se consolidam, que se artificializam com a interface tecnológica e que possibilitam o rompimento das fronteiras de tempo, espaço e de realidade.

Ao colocar em discussão as relações sociais, os contextos de ficção e realidade e o valor da tecnologia, o filme também problematiza os conceitos de “homem” e “máquina”. Vamos, então, nos deter sobre alguns pontos importantes a respeito dessa questão. Em primeiro lugar vem a constatação de que “a diferença entre homens, animais e máquinas é (...) de complexidade, não de natureza” (RÉGIS, 2012, p. 82). Entretanto, a cibernética diminuiu expressivamente essa diferença: “(...) o estatuto da máquina muda. (...). Só os seres vivos eram organizados. A cibernética revoluciona a ideia de máquina e de organização. As noções de controle, retroalimentação (...) e tratamento de informação quantificada aplicadas às máquinas (...) fazem surgir (...) máquinas organizadas. (RÉGIS, 2012, p. 109). Depois disso, e de acordo com a mesma autora, que cita Dennett, vale lembrar que a inteligência e o processo mental não precisam mais estar vinculados à consciência, nem ao sujeito (p. 93). Finalmente, a partir de 1950, é divulgado o Teste de Turing, segundo o qual “a máquina é inteligente quando não há diferença discernível entre conversar com ela ou com uma pessoa” (TURING, citado em RÉGIS, 2012, p. 113), e surge o conceito “inteligência artificial”. Isso, sem dúvida, desmistificou os limites da máquina e o modelo do humano sem-limites, inigualável e sem par. Para Descartes, a capacidade de pensar, de formular e de encadear ideias sempre foi a principal diferença entre os homens e as máquinas (Cf. RÉGIS, 2012, p. 60), premissa que se torna inválida, depois do Teste de Turing.

No filme de Spike Jonze, Samantha age como uma mulher real e, para Theodore, “não há diferença discernível entre conversar com ela ou com uma pessoa”. Por isso, ele a sente como se ela de fato existisse e mantém um relacionamento amoroso com ela. O único limite a ser transposto é a ausência de um corpo, de uma existência física. Assim como outros personagens famosos da literatura e do cinema, Samantha quer ser real e ter um corpo, uma feição humana. Ela chega até a escolher uma mulher com a qual ela gostaria de se parecer, se fosse “real”, e a convida para um encontro com Theodore. A garota aceita e passa a ser o corpo que obedece aos estímulos gerados pela conversa entre Samantha e Theodore, até que a noite termine na cama. Para Samantha, assim ela seria completa e ofereceria ao seu parceiro um relacionamento também completo e normal. Ela não se dava conta de que as sensações, durante o sexo, nunca seriam sentidas de fato por ela, pois seriam experimentadas pela outra mulher, dona do corpo a serviço da voz de Samantha. Nunca seria um relacionamento normal. A garota era uma completa estranha para Theodore. Isso sem falar da impossibilidade de unificar, com o passar do tempo, duas consciências diferentes. Samantha não seria mais apenas um sistema operacional; passaria a ser uma espécie de híbrido, com um corpo real, é verdade, mas também com consciência, voz, nome, pensamentos e convicções também reais e totalmente diferentes da voz de Samantha e dos pensamentos e das convicções que ela já começava a esboçar, apesar de ser um sistema operacional.

Esse episódio já dá uma boa amostra dos conflitos vividos pelo casal, os quais faziam Theodore sentir, cada vez mais, que Samantha e o relacionamento que eles tinham eram reais. Tudo o que opunha o mundo real ao virtual refletia-se com muita intensidade na “vida” dos dois, até que o rompimento, inevitável, acontece. Um dia, Theodore procura por Samantha e não a encontra. A cada tentativa de contato, ele recebe a mensagem de que o sistema não pode ser localizado. Ele se desespera, sai pelas ruas atrás de melhor sinal e sente como se a tivesse perdido. Por um momento parece pensar que ela poderia estar em perigo. Nas ruas, aflito, ele observa as pessoas e estão todas como ele: falando “sozinhas”, com fones e com o celular na mão. Então ele entende tudo, descobre que se apaixonou por um sistema, o qual, aliás, era um produto não exclusivo e por isso podia ser partilhado com outras pessoas (Quantos, além dele, teriam comprado o “OS1”, a mais nova tecnologia do mercado?). Samantha confessa que conversava com Theodore com mais de oito mil pessoas, simultaneamente. Ela estava, de fato, apaixonada por ele, mas, além de Theodore, declarou-se apaixonada por mais de seiscentas pessoas. Nesse momento, a traição também é reconfigurada, porque é inserida no contexto virtual e na relação entre um homem e uma máquina. Samantha tenta se justificar, dizendo que com o tempo ela se tornou outras pessoas também (ELA, 2013), mas que nada do que “vive” com os outros abala ou diminui o que ela sente por ele. Os clichês da vida real migram para o mundo virtual, que padece da mesma fluidez e da mesma frivolidade que assolam os relacionamentos com pessoas reais.

Do início ao fim, a história de Ela consegue focalizar a ambivalência da tecnologia no mundo contemporâneo, razão pela qual a aquisição de um sistema operacional simboliza o triunfo e a ruína de Theodore. Essa duplicidade é salutar e, no filme, é também sinalizada pelas cores das roupas de Theodore. Elas refletem essa polaridade e a intensidade da história vivida pelos personagens. O amarelo, considerada uma das cores mais fortes e exuberantes, é uma “cor masculina, de luz e de vida” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 40). Entretanto, se, por um lado, representa o esplendor do verão, ela também anuncia o outono, em toda a sua sobriedade, relacionando-se ao “declínio”, à “velhice” e à “morte”. Além disso, como o alaranjado, o amarelo é associado à infidelidade. Entre o amarelo e o vermelho, o alaranjado simboliza “o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 27). Mas, pela dificuldade em se alcançar a harmonia entre esses dois aspectos, essa cor também se faz ambivalente e passa a ser associada tanto ao amor eterno quanto à infidelidade. Outra cor bastante utilizada no filme é o castanho, de conotação muito negativa, porque “faz lembrar (...) a folha morta, o outono, a tristeza. É uma degradação, uma espécie de casamento rebaixador das cores puras” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 198). Por fim, o vermelho completa o conjunto de cores matizadas que reforçam a gradação nos sentimentos de Theodore e no relacionamento dele com Samantha. O vermelho é o símbolo do poder, o que também sugere duplicidade: “(...) ação e paixão, libertação e opressão” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 946). 


Gradação de cores utilizada no filme Ela
Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>
 
No fim da história de Samantha e Theodore, a máquina triunfa, no primeiro momento, porque manipula e maquiniza o humano. Theodore trabalhava com as palavras (ele escrevia cartas para pessoas que lhe encomendavam essa tarefa; a função dele era escrever como se fosse outra pessoa, para forjar um contato desejado e esperado pelo destinatário, mas sem nenhum valor para o remetente, que simplesmente delegava essa função a outra pessoa, contratada especificamente para escrever uma carta), mas era também facilmente seduzido por elas. As palavras fizeram-no esquecer que Samantha era um apenas um sistema. Com ela ele viveu dias de intensa felicidade. Apesar da frustração causada pela ilusão de que Samantha era humana, Theodore reavalia as coisas, redesenha as fronteiras que separam o mundo real do virtual e novamente se reconfigura, ao lado da amiga, uma mulher plenamente real.
               
Referências:
 
ADORO CINEMA. Ela. Disponível em: Imagens disponíveis em:
<www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>. Acesso em: 22 abr. 2014.
CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
ELA. Direção de Spike Jonze. EUA: Annapurna Pictures; Sony Pictures, 2013. 1 dvd (126 min); son.
RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.
 
 
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* Professora e Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade; Professora do Curso de Graduação em Letras da FACEL e da FAE.
 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Por que incluir teorias de autobiografia e memória na programação de Linguagens da Alteridade?

Prof. Mail Marques Azevedo

A ementa da disciplina Linguagens da Alteridade, que ministro no primeiro semestre de 2014, prevê o estudo de “textos teóricos e narrativos que trabalham questões de gênero, etnia e classe social. A busca da identidade e a presença da alteridade. O tempo e o espaço da identidade/alteridade. As figurações do outro”.O princípio básico dos estudos propostosé a relação Self/Other, a oposição “eu”/“outro” que postula a existência de um “eu” (self) subjetivo que constrói tudo o que é alheio a ele como “outro” (other). A oposição, por vezes colocada em termos diferentes, tais como centro/margem ou dominante/dominado, origina-se de indagações sobre identidade no mundo da supremacia branca e masculina, onde o olhar do “outro” define parâmetros para a experiência do ser.
Colocado diante de um mundo que o rejeitacomo diferente pelo aspecto físico e politicamente inferior─ o escritor negro, artista cuja visão transcende a do homem comum, sente-se compelido a reverter o status de inferioridade social e psicológica de seu povo, mediante a afirmação da identidade do indivíduo e do grupo. Daí a importância das narrativas autobiográficas na literatura de minorias, para afirmação da dignidade do indivíduo, e da reconstituição da memória histórica da coletividade, para valorização do grupo.

Toni Morrison, detentora do Nobel de literatura em 1993, considera dever do escritor negro preencher as lacunas entre presente e passado, com imaginação e fantasia, para ajudar a construir a memória coletiva de seu povo. [1]

A obra não ficcional de Morrison e a série de entrevistas, iniciada em 1981, em que discute seu processo de criação, confirmam sua preocupação central como artista: o dever de utilizar a arte para fortalecer o povo negro, torná-lo capaz de sobreviver a circunstâncias difíceis no presente. Em entrevista a Taylor-Guthrie, em 1994, Morrison afirma: “Sei que não posso mudar o futuro, mas posso mudar o passado. É o passado, não o futuro, que é infinito. Nosso passado foi apropriado por outrem. Eu sou uma das pessoas que devem reapropriá-lo” (1994, p. 14-15).

 O processo de re-memória.


 A fim de reapropriar o passado de seu povo, Morrison afirma que é necessário confiar não apenas em suas próprias lembranças, mas também nas lembranças de outros – em outras palavras, recorrer à memóriaindividuale à memória coletiva.

            Embora em termos de função biológica a memória seja individual, por envolver a consciência do indivíduo, antropólogos e sociólogos, com destaque para Maurice Halbwachs, insistem em que toda memória é social. Os indivíduos lembram como membros de grupos; o fato de pertencer a um grupo empresta validade a suas recordações.

Ao discutir seu processo de reconstrução do mundo ancestral negro, torna-se evidente que Morrison emprega as duas categorias de memória: afirma partir da recordação individual de uma imagem – não um símbolo, mas simplesmente uma figura – e dos sentimentos que a acompanham, para a criação do texto. Mas quando tenta recriar aquele mundo e imaginar a vida interior das pessoas que o habitaram, é preciso recorrer às lembranças de todos os componentes do grupo, cuja memória coletiva confere credibilidade e coerência ao passado revivido.

Na questão da memória individual, é possível estabelecer paralelos com os conceitos proustianos de memória voluntária e involuntária, no processo de transcender o tempo e recordar experiências passadas, descrito em detalhe em Le TempsRetrouvé, último volume de À laRechercheduTempsPerdu (Em busca do tempo perdido), que Samuel Beckett discute no ensaio intitulado Proust.

Memória voluntária é a memória uniforme da inteligência, na reprodução daquelas impressões do passado formadas de maneira consciente e racional. Recordar, neste caso, é comparável à ação de folhear um álbum de fotografias, simples reproduções uniformes e apagadas que, efetivamente, nada contêm do passado.

            Por outro lado, a ação da memória involuntária, estimulada por um som, cheiro ou qualquer outro estímulo sensorial, é capaz de liberar na mente do indivíduo uma cadeia de associações, que trazem de volta o passado qual corrente impetuosa que se funde com o presente. A memória involuntária penetra na essência do ser, que é preservada em uma parte inacessível da mente, a salvo da ação corrosiva do hábito, que privilegia apenas o imediato e superficial.

 

Mas aqui, nesse “gouffreinterdità nos sondes”, está armazenada a essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, porque acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade reprimida cuja disfazionesussurrada afoga-se na vociferação saudável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e de cal. (BECKETT, 1970, p. 31)

 
Exemplo de memória involuntária, o famoso episódio da madeleine mergulhada no chá, narrado por Marcel Proust, traz à tona num ápice os sentimentos que acompanhavam as recordações do protagonista de sua juventude e das pessoas que amava.

Morrison descreve processos similares de recordar, tanto em experiências pessoais como nas que atribui a suas personagens. Como afirmado acima, seu processo de criação segue o caminho recordação da imagem (figura), significado, texto. Na criação de uma determinada cena, por exemplo, ela afirma que “vê” uma espiga de milho verde. A figura da espiga vai e vem, envolta em um “nimbo” de emoção: o prazer de comer milho doce quente, na companhia afetuosa de vizinhos e parentes.

Em Amada, eventos aparentemente insignificantes da vida cotidiana podem originar uma cadeia de lembranças cruéis, cuidadosamente reprimidas na memória de Sethe, a protagonista. Trata-se de um exemplo de memória involuntária:

Então alguma coisa. O barulho da água, a visão dos sapatos e meias largados na trilha, ou Here Boy lambendo a poça perto de seus pés, e, de repente, lá estava Sweet Home rolando, rolando diante de seus olhos, e, embora não houvesse uma única folha naquela fazenda que não lhe desse ganas de gritar, Sweet Home desenrolava-se diante dela numa beleza desavergonhada. (MORRISON, 1987, p. 14-15)

 

No dizer de Beckett, a memória involuntária é “um mágico rebelde que escolhe seu próprio tempo e lugar para a operação do milagre” (1976, p. 33). Por outro lado, para Morrison, memória, ou o ato deliberado de relembrar, é uma forma de criação voluntária (willedcreation)que descreve no ensaio “Memory, CreationandWriting”. O importante, diz ela, é deter-se no modo como a imagem do passado surge e por que aparece nessa forma específica, e deter-se nos sentimentos que acompanham o evento recordado. Mesmo fragmentos reduzidos de lembranças põem em funcionamento o mecanismo de criação, que é o processo pelo qual Morrison aglutina esses fragmentos em partes – que ela preferemanter independentes, sem conexão. Assim, a memória fornece tanto o germe de um tema como a estrutura não linear de seus romances, que espelham a fragmentação característica das recordações.

Na criação da personagem-título de Sula, romance publicado em 1986, Morrison afirma que partiu das recordações fragmentadas de uma visitante, uma mulher que fascinou a Morrison criança: seu perfume, a cor, o alheamento, mas, principalmente, a aura indefinível que a envolvia, resultante da atitude das outras mulheres quando pronunciavam seu nome, “Hannah Peace”, em tom que mesclava respeito, deslumbramento e mais alguma coisa que soara para a menina como perdão.

O caráter coletivo da narrativa negra é, de fato, uma tradição dos povos africanos: histórias com muitos autores, transmitidas oralmente, que visam a uma verdade maior. Como um modernogriot- o contador de histórias da tribo – Morrison constrói suas histórias a partir de recordações pessoais e lembranças da comunidade. “Essas pessoas”, diz ela ao falar de seus ancestrais, “representam meu acesso a mim mesma; minha entrada em minha própria vida interior. É por isso que as imagens que flutuam à sua volta – os resquícios, vestígios, por assim dizer, que restaram no sítio arqueológico – são os primeiros a vir à tona […] (1998, p. 195).

A questão dos sítios da memória é de suma importância também para Halbwachs, para quem os espaços mentais das lembranças sempre se reportam ao espaço físico ocupado pelo grupo: “Nossas imagens de espaços sociais, em razão de sua relativa estabilidade, produzem em nós a ilusão de não mudar, de redescobrir o passado no presente. Conservamos nossas recordações referindo-as ao meio material que nos rodeia” (1982, p. 23).

De forma semelhante, a re-apropriação de experiências passadas dos escravos negros nos Estados Unidos, em Amada, é um processo que Toni Morrison denominare-memória, que envolveos atos de “des-(re)lembrar” (dis(re)membering) e “re-lembrar” (re-membering).

As conotações antitéticas de re-memberingedis(re)memberingpõem em destaque a tensão entre memória e esquecimento, que prova o significado central do romance. A moldura espacial é o sítio da memória, apresentado ao leitor na conversa de Sethe com a filha Denver, em Amada.

Algumas coisas se vão. Passam. Outras simplesmente ficam. Eu costumava pensar que era minha relembrança (re-memory). Você sabe. Algumas coisas a gente esquece, outras jamais. Mas não é bem assim. Os lugares continuam ali. Se uma casa é incendiada, ela some; mas o lugar, a imagem dele, permanece, e não só em minha relembrança (re-memory), mas lá fora, no mundo. O que recordo é uma imagem flutuando fora de minha cabeça. Quero dizer, mesmo que eu não pense nela, mesmo que eu morra, a imagem do que fiz, conheci ou vi continua lá. Bem no lugar onde tudo aconteceu. (p. 50-51) (grifos da autora)

 

O processo de rememória nos romances de Morrison, portanto, enfatiza a função dos espaços materiais, embora poucos vestígios (imagens) possam ser encontrados no “sítio arqueológico”.

Neste particular, Morrison afirma não confiar nas narrativas dominantes como instrumentos na busca das raízes culturais negras. Prefere apoiar-se no que chama de “ardis” da memória para desencadear o processo de invenção. Sua narrativa transcende até mesmo os limites da história e do mito, entrando no campo da contra-memóriaque, nas palavras de George Lipsitz, “é um modo de recordar e esquecer que tem início com o local, o imediato e o pessoal […] e a seguir se expande para construir uma história completa.” A contra-memória é comum nas narrativas de minorias e focaliza “experiências localizadas com a opressão, utilizando-as para colocar em novos parâmetros e reformular o foco de narrativas dominantes que pretendem representar experiências universais.” Se tais narrativas não oferecem respostas à atual crise do pensamento histórico, indicam certamente outros meios de buscar respostas (1990, p. 213).

Em Canção de Salomão, o mito do escravo que voa de volta para a África, celebrado em canções folclóricas, inspira o protagonista, Macon Dead, a empreender a busca pela verdadeira história de sua família e dos afro-americanos, em épocas anteriores à sua escravização. Só então consegue viver efetivamente no presente. Não se trata de uma rejeição da história, mas de sua reconstituição com base nas tradições orais e na experiência local, no tempo da contra-memória.

Desse modo o artesanato da memória e da ficção congregam-se nos romances de Toni Morrison, para a re-apropriação do passado de seu povo. O objetivo declarado de Morrison é o acesso à vida interior não escrita de seu povo, que não aparece nem mesmo nas narrativas de escravos. Sua arte pretende reconstruir a memória racial dos afro-americanos – a que atribui valor maior que a realizações individuais. Para atingir seu objetivo, é necessário apoiar-se na imaginação. Em consequência, o trabalho de Morrison, para a maioria das pessoas, se enquadra no fantástico, mítico, mágico, inverossímil. Mas como evitá-lo, pergunta-se ela, se o seu trabalho deve transmitir uma realidade diferente daquela veiculada em narrativas históricas aceitas oficialmente.

 

 

Se meu trabalho deve confrontar uma realidade diferente da realidade aceita pelo Ocidente, deve centralizar e dramatizar informação desacreditada pelo Ocidente – desacreditada não por não ser verdadeira ou útil ou mesmo de algum valor racial, mas porque é informação normalmente descrita como “lore” ou “boato” ou “mágica” ou“sentimento”. (MORRISON, 1984, p. 388)

 

 

Que sua narrativa assuma características míticas ou fantásticas é irrelevante, pois a diferença essencial não está entre fato e ficção, mas entre fato e verdade. Morrison reconstrói o mundo de seus ancestrais, explora sua vida interior, seguindo o caminho de imagens vívidas e arrebatadoras, que emergem de lembranças compartilhadas não escritas, e que conduzem à revelação de uma espécie de verdade.

A relevância das narrativas autobiográficas na expressão da identidade individual e o mecanismo da memória como instrumento de criação literária e resgate da memória coletiva de um povo, observado na obra de Toni Morrison,esclarecem o motivo da inclusão de autobiografia e memória em um programa que discute linguagens da alteridade.

 



[1]Excertos do trabalho intitulado TONI MORRISON´S “SITE OF MEMORY” WHERE MEMOIR AND FICTION EMBRACE”, publicado em inglês na Revista da ANPOLL 22.
 
REFERÊNCIAS
BECKETT, Samuel. Proust.London: Calder & Boyars, 1970.
HALBWACHS, Maurice. On Collective Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
LIPSITZ, George. Time Passages.Collective Memory and American Popular Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.
MORRISON, Toni. Memory, Creation, and Writing. In: Thought,vol 59, # 235 (December 1984). P. 385-390.
______. Amada.Trad. E.K. Massaro São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
______. The Site of Memory. In: ZINSSER, William. Inventing the Truth.The Art and Craft of Memoir.Boston & New York: Houghton Mifflin Co., 1998. p. 185-200.
TAYLOR-GUTHRIE, Danille (Ed.). Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press of Mississippi, 1994.
 
 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

O sabor de “Hamlet – minha maior criação”, de Norman N. Holland


Prof. Brunilda Reichmann

Apresentado no encontro da American Academy of Psychoanalysis, Beverly Hills, California, em maio de 1975, e publicado no Journal of the American Academy of Psychoanalysis, no mesmo ano, o artigo “Hamlet – minha maior criação” tem sido citado como um dos exemplosmais ousados da abordagem crítica denominada Estética da Recepção. O artigo, segundo minha pesquisa, nunca foi traduzido para o português, mas alguns trechos merecem ser conhecidos pelos interessados naresposta do leitor. Seguem, portanto, alguns trechos traduzidos para o português.

Você deve imaginar, pelo título deste artigo, que fui além da ousadia até a completa blasfêmia. Ousadia seria o layout da placa no velho Yiddish Theater que via quando era menino. Em letras grandes “Hamlet”, em letras menores, “de William Shakespeare”. E em letras maiores que todas, “Traduzido e Aperfeiçoado por Moishe Schwartz”. Mas, vou além do grande Moishe Schwartz. Estou proclamando que não apenas perfeiçoei Hamlet. Eu criei Hamlet. E creio realmente que Shakespeare vai arremessar, de qualquer Elíseo que agora habita, um soneto e me partir em 14 pedaços. [...]

Mas se Shakespeare colocou certo conteúdo na peça, que conteúdo foi esse? Se criou Hamlet, que Hamlet ele criou? Em três séculos e três-quartos, desde que a peça foi produzida pela primeira vez, temos visto pelo menos três versões do herói, portanto, da peça. No meu entender, os séculos XVII e XVIII, mais próximos ao próprio Shakespeare, consideraram Hamlet como um jovem com grandes expectativas, promessa e vivacidade, um príncipe da Renascença. O século XIX curtiu o Hamlet de Goethe, um homem gracioso, delicado e poético, incapaz de levar a cabo a vingança que seu pai exige. E, certamente, em nosso próprio século [século XX] tivemos Hamlet como um exemplo do complexo de Édipo. Não queremos dizer que cada século teve seu próprio Hamlet, o príncipe, e Hamlet, a peça. Se observarmos os volumes e volumes de comentários sobre a tragédia, tomaremos consciência que, finalmente, cada pessoa tem seu próprio Hamlet. Vejo também, que o Hamlet do qual falo hoje é diferente do Hamlet sobre o qual escrevi, digamos, em 1964 ou 1965 ou 1961. A peça muda até para a mesma pessoa no curso da vida. [...]

Hamlet é uma peça imensa, a mais longa de Shakespeare. Uma produção sem cortes leva de cinco a seis horas. Para lhes contar sobre minhas reações a toda a peça levaria semanas, mas posso lhes contar sobre minha reação às minhas cinco favoritas, dentre as aproximadamente 39.000 linhas da peça. Elas são:

Oh, que simplório e ignóbilescravo eu sou! [...]

 

O que é Hecuba para ele, ou, ele para Hecuba,

Para que chore por ela? [...]

 

Como todos os acontecimentos voltam-secontra mim,

E impelem minha vingança inerte! [...]

O que essas linhas me permitem fazer que é tão gratificante? 

Para responder a esta pergunta, tenho que falar não apenas das linhas, mas de mim. Deixe-me contar-lhes algumas coisas sobre mim mesmo, coisas, por sua vez, que eu publiquei antes mesmo de envolver-me com a tentativa de explicar meu prazer com essas cinco linhas de Hamlet. Tenho “um desejo apaixonado de saber sobre o cerne das coisas, com um sentimento igualmente forte de que alguém está mais seguro com o exterior”. O cerne de minha identidade envolve “preservar um sentido de si mesmo e garantir a autoestima para ganhar poder sobre as relações entre as coisas, em particular, sobrepujando-as ao saber ou vê-las do exterior ao invés de participar realmente dos relacionamentos”. Pode-se ver como ser um crítico de cinema e de teatro ajustou-se à minha identidade, particularmente na forma mais particular, a moderna, da análise linguística. “Gosto de examinar a superfície verbal de um texto, procurando principalmente por uma ‘unidade orgânica’ no modo que todas as partes se relacionam.” [...]

Considero que minhas linhas favoritas me possibilitam criar e explorar várias possibilidades gramaticais e semânticas dentro de um único pensamento. Elas são, de fato, a oposição da negação. Elas sugerem e mesmo solicitam que siga todas complexidades e possibilidades alternativas. Portanto, mesmo se as linhas individuais de Shakespeare não me permitem encontrar a unidade sólida e orgânica que procuro, elas me permitem assenhorear-me do cerne, como se fosse, da sentença ao entender complexidades verbais e imagéticas. Posso permanecer fora da sentença e, por assim dizer, explorar relações com seu interior. [...]

Resumindo, essas sentenças começam com simplicidade, movem para algo repleto de alternativas e complexidades, e retornam à simplicidade. Este, com certeza, é o padrão da tragédia como um todo. Ao ver o fantasma, Hamlet resolve puramente e simplesmente acertar as coisas. Como vocês sabem, então passamos aos três atos longos e envolventes nos quais ele faz tudo menos se vingar. Ele não retorna à sua vingança até a cena final da peça quando aceita seu destino. [...]

Palavras, nessa tragédia, são, para mim, certamente, e talvez também para Hamlet e Shakespeare, um tipo de espaço potencial no qual posso criar alternativas e possibilidades ao invés de ser confrontado com ações violentas e indiferença familiar. Dei exemplo de cinco, mas há cerca de 4.000 linhas, cada uma delas, de certa maneira, me permite usar palavras para desenvolver alternativas e assim controlar meus temores profundos. Temo que pais ou figuras paternas possam se zangar comigo – prefiro ficar zangado com eles. Temo que me ignorarão – prefiro ignorá-los. Apesar de apreciar correr esses riscos. Quero, finalmente, tê-los sob controle tão facilmente como se pode controlar palavras. Tudo que é necessário é um verso ou uma frase com escansão tão regular quanto “Para que chore por ela” ou “E impelem minha vingança inerte”.

Hamlet tem sido descrito como um “grande neurótico”. Não tenho certeza do significado do termo. Tenho certeza, no entanto, que Hamlet permite uma grande contratransferência. E esse é o segredo da grandiosidade dessa tragédia e, finalmente, de todas as grandes obras de arte: elas permitem que nos tornemos criadores.