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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Lampião: o cangaceiro intermídia


Prof. Luiz Zanotti     

 O cangaceiro Lampião se transformou numa figura lendária em vida no panorama sociocultural brasileiro, não só em razão dos seus feitos, mas também graças a uma mídia ávida de notícias sensacionalistas e a todo um trabalho literário, em que predominava a literatura de cordel e a musicalidade. No entanto, outras artes se apropriaram da temática lampiônica como por exemplo o cartoon. Nesta época esta sendo relançada a sua obra para marcar os vinte e cinco anos do falecimento do cartunista mineiro Henfil que buscou inspiração no fenômeno do cangaço para elaborar a uma crítica ao regime ditatorial brasileiro da época. Henfil cria nos anos 1960 “tiras de quadrinhos” para o jornal de oposição O Pasquim:
 

FIGURA 1. Zeferino, Bode Orelana e Graúna.

As personagens foram situadas na caatinga, onde o cangaceiro Zeferino, com seu chapelão incrustado e vestimenta de encourado, contracena a Graúna, uma ave típica da região, e, com Orelana, um bode de cartola.
 
Zeferino é o cangaceiro dos sertões brasileiros, cabra macho, protagonista das historinhas, simbolizando o povo em sua mistura de intuição e conhecimento, inocência e malandragem. Graúna é um pássaro preto do Nordeste, representando a ingenuidade e a irreverência da mulher classe média, ao mesmo tempo consciente, vulgar, dominadora e dominada. Francisco Orelana é um bode comedor de livros, típico representante da intelectualidade pequeno-burguesa, símbolo do medo e da auto-censura que predominam nos intelectuais brasileiros da década de 70, porém por vezes capaz de atitudes heróicas e idealistas. (SEIXAS, 1996, p. 50)
 
Também merece atenção o trabalho do ceramista Mestre Vitalino de Caruaru, que se encontra registrado no documentário Vitalino/Lampião (1969), de Geraldo Sarno. No filme, o cineasta apresenta o processo de criação de uma estatueta de barro de Lampião pelo artesão Manuel Vitalino – filho de Mestre Vitalino – fazendo ressoar, ao fundo, uma canção do repentista Severino Pinto sobre as razões que levaram Virgolino Ferreira ao cangaço:
 
O cineasta-narrador introduz o filme apresentando sua concepção de arte popular: uma arte que não cria, apenas materializa modelos propostos pela coletividade. Para ele, o artesão não é um criador, mas aquele que dá forma a temas criados pela "consciência coletiva". Artesão e cantador não participam da concepção artística; eles nada criam, apenas interpretam algo que já está dado. Entre a arte individual e a criação coletiva do mito, entre Vitalino e Lampião, cria-se uma relação através da qual a violência trágica de Lampião dá sentido e justifica o ato solitário do artesão. [...] Dessa forma o artista popular torna-se intérprete tradicional da sociedade a que pertence e o produto de seu artesanato reflete não apenas o mito trágico criado pela consciência coletiva mas o próprio destino trágico de toda a violência gerada pelo Nordeste tradicional. (D’ALMEIDA, 2009)
 
É interessante notar a afirmação feita pelo artesão a respeito da produção limitada:
 
ninguém é artista e todo mundo é artista. Porque a fôrma... Quem nunca viu um boneco de barro e nem sabe o que é, pegando na fôrma e pegando no barro pode fazer. A fôrma desenhada, vamos dizer, feita a cabeça do boneco. Forma o corpo e faz as cabeça tudo de fôrma. Então é de fabricar, vamos dizer, 50 e mesmo um cento de bonecos, de peças. Você olhar assim é tudo um só. Quer dizer que aí não é arte. É uma fôrma e tudo o que fizer fica igual. (VITALINO apud em D’ALMEIDA, 2009).
 
Outra mídia que utilizou a temática de Lampião é o universo das histórias em quadrinhos, também designados como romances gráficos.  Uma obra que vale a pena ser destacada é o comix Lampião: ...era o cavalo do tempo atrás da besta da vida (2006), de Klévisson Tupynanquim. Segundo Sidney Gusman[1] (2010), o comix foi selecionado pelo Programa Nacional do Livro Didático do Estado de São Paulo, bem como pelo Programa Nacional da Biblioteca Escolar, o que resultou em mais de quarenta mil exemplares distribuídos nas escolas públicas participantes do programa.
Segundo Gusman, um dos maiores especialistas de história em quadrinhos no Brasil, Klévisson dá uma verdadeira aula sobre comix, demonstrando enorme conhecimento do tema, obtido por uma profunda pesquisa bibliográfica e visual. Para o especialista, o cartunista criou desenhos expressivos, tendo o cuidado de escrever todos os textos dos balões “exatamente” como o povo local pronunciava na época.
Enfim, a diversidade midiática que se apropria da temática lampiônica é infinda e propicia a criação de verdadeiras obras de arte como é o caso do romance gráfico Lampião e Lancelote (2007), de Fernando Vilela, ganhador do premio Bolonha Ragazzi:
 FIGURA 2. Luta entre os cangaceiros de Lampião e os cavaleiros de Lancelote
 
O autor cria o seu romance partindo de uma perspectiva intertextual e  relativiza as antinomias através da escolha de uma diversidade de cores (preta, dourado e prata), da utilização de várias linguagens (verso, sextilha do cordel sertanejo, prosa, narrativa épica), recursos gráficos (carimbo e xilogravura) e outros símbolos. Vilela oferece um Lampião mais humano, um indivíduo que não foi mais violento do que o cavaleiro Lancelote, um exemplo paradigmático de herói medieval e, que assim como o cavaleiro amava Guinevere, também foi capaz de ter um grande amor por Maria Bonita.
 
 
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


[1] Sydnei Guzman no artigo “Lampião de Klévisson Viana adotado em escolas de todo o Brasil”. Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/2007/n02042007_07.cfm. Acesso em: 20 set. 2010.


[1] Sydnei Guzman no artigo “Lampião de Klévisson Viana adotado em escolas de todo o Brasil”. Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/2007/n02042007_07.cfm. Acesso em: 20 set. 2010.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Amar, Verbo Intransitivo de Mário de Andrade


Prof. Edna da Silva Polese

A obra Amar, verbo intransitivo foi publicada em 1927 reforça uma das marcas mais recorrentes do autor. Além de focar o tema do amor, chamado por ele de amor idílico, subtítulo da obra, destaca-se o experimentalismo com a própria língua. É fato a presença de um português mais realista, se é que podemos chamar assim, pois Mário de Andrade sempre acreditou nesse projeto da literatura poder expressar-se de uma maneira mais solta, personificando a língua viva e falada. Anos mais tarde, o que se percebe é essa tentativa de Mário como necessária para dar novos rumos à literatura – proposta de toda a geração de 1920. Alguns trechos do romance parecem exagerados nesse sentido de se expressar como a língua viva. Mas essa marca era bastante consciente no autor. Assim, em notas sobre essa e outras obras, ele mesmo comenta sobre essas questões. As idas e vindas do texto para os editores mostram o cuidado que Mário de Andrade tinha com a questão da língua. Não se supunha uma atitude leviana, mas pensada em seus detalhes. No prefácio da edição da Nova Fronteira, de 2013, Marlene Gomes Mendes resgata trechos de notas do próprio Mário de Andrade tecendo comentários sobre a obra:

Desde que principiei abrasileirando a minha literatura, tomei sempre tento nisso: se emprego termos, locuções, sintaxes de povo, não faço fala de povo porém literatura, isto é, busco enobrecer na linguagem escrita os monumentos populares. Carece não esquecer que entre  linguagem falada e linguagem escrita vai um abismo quase. É lógico que não basto eu para enobrecer modismos populares porém muitos estão fazendo a mesma coisa. Daqui a 100 anos os nossos netos saberão o que ficou corrente na língua brasileira. Edifico na areia sei bem. Porém as ruínas de mistura com a areia vão fazer chão duro para edificações futuras. Não faço arte. Minhas obras não passam de ações. (p. 11)

Mário de Andrade deixa claro que seus textos correspondem a um projeto, uma postura diante da arte e da literatura. Ao enfatizar que suas obras não passam de ações, o autor aponta essa postura, de que não pretende escrever algo definitivo, nem obedecer às regras de um romance. Assim, a leitura de Amar, verbo intransitivo, apesar de mais leve, também cobra do leitor uma certa esperteza, algo que é bem mais evidente com a leitura de Macunaíma, para muitos, ainda, um tipo de texto estranho. As inúmeras pausas do autor, seja para comentar sobre o próprio andamento da narrativa, seja para conversar com o leitor, entre outras, revelam as marcas do romance pós-moderno em que as fronteiras entre texto, autor e leitor ficam tênues. Há longos trechos no corpo do romance em que Mário de Andrade comenta sobre a personagem principal: sua personalidade, seus sonhos e desilusões. Comenta ainda sobre a maneira como escolheu para montá-la, como se inspirou, como a percebe. Comenta ainda, com ares de humor, qual a pretensão de leitores que terá: “Volto a afirmar que o meu livro tem 50 leitores. Comigo 51.” Brinca ainda com a recepção do leitor, pois, para cada um deles, se fixarmos o número 51, ter-se-ia, segundo Mário, 51 Elzas, 51 Fräuleins, 51 personagens diferentes, cada uma fruto da imaginação particular de cada leitor. Toda essa ousadia, todo esse modo de narrar que fugia do tradicional, marcam a obra de Mário de Andrade. A leitura soa estranha ainda hoje.
Em carta a Manuel Bandeira, Mário de Andrade sintetiza essa postura crítica de perceber toda a ação artística como um projeto, uma forma de pensar como a literatura deveria expressar-se:

O livro é uma mistura incrível. Tem tudo lá dentro. Crítica, teoria, psicologia e até romance: sou eu. E eu pesquisador. Pronomes oblíquos começando a frase, ‘mandei ela’ e coisas assim, não na boca dos personagens, mas na minha direta pena. Fugi do sistema português. Que me importa que o livro seja falho? Meu destino não é ficar. Meu destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos. Se conseguir que se escreva brasileiro sem por isso ser caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri o meu destino. Que me importa ser louvado em 1985. O que eu quero é viver a minha vida e ser louvado por mim nas noites antes de dormir. Daí: Fräulein. Confesso-te que sou feliz.

O que se destaca é o Mário de Andrade pesquisador, o  intelectual responsável por dar um novo rumo ao modo de expressão da língua. Daí a tranqüilidade diante das “falhas” do livro, pois o que importa é o projeto, a pesquisa. A postura anti-romântica sobre a eternidade também parece tranqüila, apesar de não proceder. Mário de Andrade não foi esquecido. Sua forma de ver e perceber a arte e a literatura brasileira ainda merece muitas visitas e reflexões. Seu Macunaíma marca toda uma época e abriu as portas para a reflexão sobre a arte e a cultura brasileira. Amar, verbo intransitivo ultrapassa o tema do amor idílico e posiciona-se como uma obra que reflete o pesquisador por detrás do romancista.

 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

BORGES E A METÁFORA


Profa. Sigrid Renaux
Em virtude de estar lecionando o curso “Teorias da Poesia” para os mestrandos em Teoria Literária neste semestre, chamou-me a atenção, recentemente, o livro Esse ofício do Verso de Jorge Luis Borges (São Paulo: Editora Schwarcz,  2007). Entre as diversas obras deste grande mestre argentino, o que esta apresenta de peculiar é que se trata de palestras  proferidas em inglês em 1967-68  para estudantes da Universidade de Harvard, publicadas sob o título This craft of verse  (Harvard University Press, 2000).  O simples fato de um escritor ser convidado para dar palestras em Harvard já seria o suficiente para situá-lo entre os melhores da atualidade. No caso de Borges, na época com 68 anos e, portanto, no auge de sua carreira,  essas seis palestras – intituladas “O Enigma da Poesia”, “A metáfora”, “O Narrar uma História”, “Música da Palavra e Tradução”, “Pensamento e poesia” e “o Credo de um Poeta” – irão demonstrar não apenas sua  imensa erudição mas simultaneamente a abrangência dos assuntos apresentados,  aliados a uma linguagem clara e  acessível.

Concentrando-nos na segunda dessas palestras, “A Metáfora”, ressaltamos, a seguir, algumas das considerações de Borges.

 Partindo do pressuposto que “as metáforas são feitas pelo encadeamento de duas coisas diversas  Borges lança a pergunta: “por que diabos os poetas pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar as mesmas metáforas surradas quando há tantas combinações possíveis?” (30). Borges cita então o poeta argentino Lugones  que afirma, em  Lunario sentimental, “cada palavra é uma metáfora morta”(p.31). Acrescenta Borges: “...acho que todos sentimos a diferença entre metáforas mortas e vivas. Se pegarmos qualquer bom dicionário etimológico (...) e se procurarmos uma palavra qualquer, na certa encontraremos uma metáfora enfurnada em alguma parte”.(p.31)

Essa questão antiquíssima já está expressa em Aristóteles, que, ao tratar da elocução poética, destaca o valor deste tropo:

Grande importância tem, pois, o uso discreto de cada uma das mencionadas espécies de nomes, de nomes duplos e de palavras estrangeiras; maior, todavia, é a do emprego das metáforas, porque tal se não aprende nos demais, e revela portanto o engenho natural do poeta; com efeito, bem saber descobrir as metáforas significa bem se aperceber das semelhanças”. (Poética, XXII)

Ou seja, a percepção das semelhanças entre  duas coisas, “transportando para uma coisa o nome de outra”, é que revela a engenhosidade do poeta, algo que não se aprende nos demais nomes.   Também Longino já menciona as “metáforas ousadas” como imprescindíveis para as emoções fortes e para o sublime genuíno (Do sublime, XXXII), mostrando, portanto, como a preocupação com conceituação e utilização da metáfora atravessa os séculos.

Essa distinção que Borges faz entre metáforas mortas e vivas é crucial para todos nós, pois, mesmo quando ele afirma  que sentimos a diferença entre ambas, acredito que a dificuldade de entender uma metáfora vem do fato de que, acostumados a usar metáforas “mortas” –  como “o sol se põe”, o que era  realidade até se descobrir que a terra gira em torno do sol,  ou “a perna da mesa”, ambas mostrando como a metáfora pode ser utilizada tanto na linguagem cotidiana quanto na literária –  não percebemos em profundidade  a metáfora “como uma metáfora” (p.31), como um organismo vivo com sua “virtualidade de leituras múltiplas” (Greimas/Courtés, p.274).

Os inúmeros  exemplos que Borges apresenta na conferência são de metáforas “que são sentidas como metáforas pelos leitor” (p.31-32), desde “modelos surrados” (p.32)  a modelos mais sofisticados e sutis. Entre esses, a identificação de olhos e estrelas, mulheres e flores, tempo e rios, vida e sonho, morte e sono, incêndio e batalhas (p. 41).  O que realmente importa, como continua Borges, “é que há uns poucos modelos, mas que são capazes de variações quase infindas” (p.41), ou seja, mesmo dentre os modelos  apresentados por Borges, ainda podemos criar novas metáforas, nas quais a identificação entre as duas “coisas” continua a fascinar poetas e leitores.

Borges cita, como último exemplo, a linha “She walks in beauty, like the night” (ela anda em beleza, como a noite), de Byron. Segundo Borges, “o verso é tão perfeito que não lhe damos valor”. Ele apresenta, em seguir, a “complexidade oculta e secreta do verso”,  pois “dentro dessas palavras bem simples, temos uma dupla metáfora: uma mulher é ligada à noite, mas a noite é ligada à mulher”, ou seja, uma adorável mulher é ligada à noite e, simultaneamente,  a noite também é como uma mulher (p.48). Este exemplo mostra claramente como costumamos tratar superficialmente as metáforas,  prendendo-nos apenas à primeira semelhança, sem nos dar o tempo de ir adiante, em nossa investigação da metáfora como uma “virtualidade de leituras múltiplas”.

Borges conclui esta conferência confirmando primeiro que, mesmo existindo milhares de metáforas que “podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples”, não precisamos nos preocupar, pois “toda vez que o modelo é usado, as variações são diferentes”. Sua segunda conclusão é que “ há metáforas – por exemplo, “teia de homens” ou caminho da baleia” [explicadas na conferência] – que não podem ser reconduzidas a modelos definidos.” (p.49)

Sua afirmação final “talvez ainda nos seja dado inventar metáforas que não façam parte, ou que ainda não façam parte, dos modelos aceitos” (p.49), nos leva a acreditar como a criação de uma nova metáfora, por parte do poeta, nos faz ver novamente as possibilidades infinitas das palavras – a partir do uso no dicionário – escondidas, trazidas à tona e recriadas pelo poder do poeta, como criador de metáforas.

 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Profissional deixa seu país para trabalhar no vizinho, onde precisam dele. Acontece com professor também.


Edson Ribeiro da Silva

 

Acabo de conversar com uma professora.

História de professora brasileira, que foi atrás não de condições de trabalho, mas da possibilidade de ganhar algum dinheiro na profissão.

A conhecida história de quem emigra para algum daqueles países dos quais a gente só ouve falar, mas de quem aceita o desafio, como uma forma de poder enviar dinheiro para um filho que ficou, ou para pais mal sucedidos.

Uma professora jovem, que fez apenas o curso de magistério e teve que abandonar a faculdade de pedagogia. Então veio o casamento. O filho e, para não ficarmos naquilo que a semiótica chama de “script”, a separação e o abandono da criança. Nessas horas, sempre aparece alguém para dizer que, naquele país pouco conhecido, um professor ganha muito bem, e pode amealhar uma certa quantia se esquecer por um tempo a vida no Brasil. E, para quem está com a vida desorganizada, dinheiro pode ser um bom começo.

A professora foi morar no Suriname. Aquele obscuro país sobre o qual o brasileiro não sabe dizer nada além do nome da capital. Aliás, acho que só sabe a língua que é falada lá. Aliás, acho que nem isso. Quem leu Cem anos de solidão sabe que lá pela centésima página existe uma nota de rodapé explicando que, no Suriname, há um dialeto chamado “papiamento”, não mais que isto. Sem a nota, tantos leitores nem saberiam que se falava de um país vizinho.

Mas a professora foi para lá e teve que entender holandês. E, de fato, o país precisa de professores brasileiros assim como os brasileiros precisam de médicos cubanos. E as semelhanças não param por aí. Professor brasileiro passa por alguns testes para poder trabalhar e nem sempre é aprovado. Mas a professora deu aulas. Enfrentou corrupção, coisa comum nas escolas daqui.

Demitida, foi parar em um mercado, como vendedora. Depois, foi babá. Mas acabou em um garimpo. Outra vez, lugar para quem espera um pouco de dinheiro para poder voltar e cuidar do próprio filho.  A infeliz teve que perder muito tempo fazendo campanhas para localizar uma amiga desaparecida. E o dinheiro ainda não veio. A vontade de ficar definitivamente no Brasil, sim.

Há casos de falta e excesso de professores. E o salário que ninguém quer em um país qualquer, para se trabalhar lá onde não há nada além da internet para conversar, pode ser atrativo para quem sabe que não conseguirá um padrinho que o introduza numa das escolas municipais tão atreladas a interesses políticos.

 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O TEATRO DE RUA BRASILEIRO COMO ARTE PÚBLICA:


Anna Stegh Camati

 Introdução
Em seu recente livro, Extramural Shakespeare (2010), Denise Albanese argumenta que a posição de Shakespeare na cultura americana mudou nos anos próximos à virada do milênio. Esse autor não está mais situado no topo da cultura erudita, mas tornou-se propriedade pública. Pegando emprestado do ensaio “O que é um autor?” (1969), de Michel Foucault, que desmistifica a autoria e estabelece o conceito denominado função-autor, Albanese cria um termo análogo — função-Shakespeare — para explicar “a soma dos inúmeros papéis que Shakespeare desempenha e é levado a desempenhar institucional e publicamente” (p. 5) na contemporaneidade.
As experiências interculturais bem-sucedidas de Eugenio Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine têm incentivado grupos brasileiros de teatro, cujos participantes geralmente são oriundos do meio acadêmico, a dessacralizar ou a abrasileirar Shakespeare, rejeitando práticas teatrais ortodoxas e apresentando as peças desse autor a céu aberto, como arte pública, fora dos muros da academia.
 A proposta deste trabalho é discutir o surgimento de produções shakespearianas no teatro de rua brasileiro, seguindo a tendência contemporânea de popularização do poeta, o que também foi realizado pela indústria do cinema, pelas graphic novels, pelas novas mídias e por outras manifestações da cultura popular e de massa.
 
Encenações ao ar livre: quando o lugar se torna espaço teatral
Na horinha, mesmo; este lugar é maravilhosamente conveniente para o nosso ensaio. O gramado, aqui, vai ser nosso palco, esse arbusto de espinhos, nossa coxia [...].[1]
shakespeare, sonho de uma noite de verão
De acordo com Michel de Certeau (2010), lugar é um local fixo, em oposição a espaço, que é socialmente construído: embora uma rua possa ser idealizada pelo planejamento urbano, ela dependerá de movimento, de mudança e de interação para se transformar em espaço ativo. O estudioso francês alega que “o espaço é um lugar praticado” (p. 119) que adquire uma dinâmica sui generis, tornando-se espaço quando apropriado para fins específicos durante um período de tempo. Assim, quando uma peça é apresentada em locais públicos, o lugar escolhido, por um curto período de tempo, torna-se espaço teatral, como é afirmado por Pedro Quina[2] no prólogo da cena de ensaio de Sonho de uma noite de verão (1595-1596), citado na epígrafe. Ou, como Peter Brook (1968) teoriza em The Empty Space: “Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço enquanto outro observa. Isto é suficiente para criar uma ação cênica”[3] (p. 9).
Encenar ao ar livre é, na verdade, voltar às raízes do teatro: “Téspis se apresentava para as ágoras atenienses em uma carroça, no século VI a.C., e as peças medievais chamadas “mistérios” aconteciam no adro das igrejas e nas praças das cidades” (Pavis, 1998, p. 372). E mesmo durante a era elisabetana, as peças de Shakespeare foram muitas vezes representadas em espaços a céu aberto, principalmente quando a grande peste de Londres se tornou uma epidemia e os teatros tiveram de ser fechados para evitar o contágio.
 Nos dias de hoje, encenar Sakespeare ao ar livre parece ter se tornado novamente uma tendência mundial. Enquanto na Grã-Bretanha montar peças desse autor a céu aberto é um movimento que inclui tanto companhias profissionais quanto amadoras — envolvendo desde grandes companhias profissionais, como a New Shakespeare Company, sediada no Open-Air Theatre, situado no Regent’s Park, em Londres [...] até grupos amadores pequenos, como o The Villagers, perto de Gosport, em Hampshire [...]” (Dobson, 2011, p. 155) —, no Brasil, produções shakespearianas de teatro de rua são realizadas sobretudo por grupos profissionais de teatro.
 
Este trabalho foi apresentado no congresso da Latin American Studies Association (LASA), realizado de 20 de maio a 01 de junho de 2013, em Washington, DC. Título em inglês: “Brazilian Street Theatre as Public Art: Ueba’s The Taming of the Shrew”. Tradução para o português de Thelma Christina Ribeiro Côrtes. O trabalho completo foi publicado em Tradução em Revista, v. 14, 2013/1, p. 113-121. Disponível em:
 
 
 
 
 
 


[1] N.T. Tradução de Barbara Heliodora (SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2004. 128p.).
[2] N.T. Os nomes em português dos personagens shakespearianos citados neste artigo seguem as traduções de Barbara Heliodora.
[3] N.T. As traduções das citações do livro de Peter Brook foram extraídas da edição brasileira: BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Tradução: Oscar Araripe e Tessy Calado. Petrópolis: Ed. Vozes, 1970. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/20061686/O-Teatro-e-seu-espaco-Peter-Brook>
 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O FANTÁSTICO E MARAVILHOSO MUNDO DE SARAMANDAIA


 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*

 

Nos dias de hoje, em que predomina a cultura cyber, a literatura e os demais tipos de arte propiciam outro ritmo, mais específico e contemplativo, e que se opõe à rapidez e à superficialidade inerentes às redes sociais. Mais que isso. De acordo com Nelly Novaes Coelho, a literatura serve de “antídoto à robotização” (COELHO, 2007, p. 3), porque é “instrumento de ‘formação das mentes’ e de conhecimento de mundo, da vida” (COELHO, 2007, p. 4). O poder desse antídoto é reforçado, quando a arte permite que o leitor/espectador vá muito além da representação da realidade pela ficção, geralmente circunscrita aos limites da lógica do mundo real. Foi assim, combinando a arte da narrativa televisiva ao fantástico, ao maravilhoso e ao realismo maravilhoso, que a nova versão de Saramandaia atendeu ao novo perfil do público e da sociedade contemporâneos.

A obra, escrita por Dias Gomes, já tinha encantado o público brasileiro, em 1976, no formato de telenovela. O enredo e os personagens entraram para a história da televisão e permaneceram por muito tempo na lembrança dos telespectadores. De junho a setembro de 2013, Saramandaia foi novamente exibida, agora em formato de minissérie. Ricardo Linhares foi o responsável por reescrever a história e resgatar a magia de Bole-Bole e de seus divertidos moradores. Como ocorre em qualquer adaptação, alguns personagens foram cortados (a exemplo de Tristão do Sal, que soltava fogo pela boca, na primeira versão) e acréscimos foram feitos (nesse aspecto, a linguagem, com seus neologismos esquisitos, mas engraçados, foi privilegiada: “bastantemente”, “mutretice”, “calunismo”, “avistamento”, “diferencice”, “pra trasmente”, etc.). Porém, a maioria dos personagens foi resgatada, afinal, para tratar do exotismo, da diferença e para neutralizar o excesso de racionalismo, lógica e seriedade de nossa época, nada melhor que o acúmulo de tipos verdadeiramente surpreendentes: João Gibão tinha asas e podia adivinhar o futuro; a fogosa Marcina literalmente queimava de tanto prazer; Belisário era apenas uma cabeça que tinha sido separada de seu corpo, durante um combate; Dona Redonda comia sem parar e acabou explodindo; Professor Aristóbulo era professor e funcionário público de dia e lobisomem nas noites de quinta-feira; Dona Candinha passava o dia a se entreter com suas galinhas invisíveis; Zico Rosado soltava formigas pelo nariz; Doutor Cazuza, o farmacêutico, botava o coração pela boca sempre que ficava nervoso; as lágrimas de Estela tinham o poder de ressuscitar os mortos; e Tibério, o patriarca da família Vilar, vivia sentado em sua cadeira, onde criou raízes e começou a se transformar em árvore.


Aristóbulo: professor e lobisomem



As raízes de Tibério Vilar e o voo do personagem João Gibão

 
 
 
  A metamorfose de Dona Redonda: Ela aumentou de tamanho de tanto comer, explodiu formando uma nuvem multicolorida e, depois que seu marido plantou, na praça, um de seus dedos, transformou-se em uma gigantesca e malcheirosa flor.

 

Durante uma tempestade elétrica, Dona Pupu recebeu a visita do corpo de Belisário, que recolocou sua cabeça e a tirou para dançar, como nos velhos tempos.

 
Foi nesse clima inusitado que Saramandaia propôs um mundo novo, onde o impossível se fazia possível, superando qualquer obstáculo imposto pela lógica e pelas leis inflexíveis que regem a realidade, já que: “O elemento ‘espetaculoso’ é essencial à narração fantástica” (CALVINO, 2004, p. 6). De fato, o fantástico fez parte de Saramandaia, mas apenas no primeiro momento, quando, em meio à vida pacata de Bole-Bole, o estranho se instalou e deu início a um processo de alternância entre razão e desrazão, provocando a “relativização das fronteiras entre sanidade e loucura” (CARNEIRO, 2006, p. 10). As ideias de Ítalo Calvino e de Flávio Carneiro vão ao encontro do que Todorov menciona, no livro Introdução à literatura fantástica: “O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1982, p. 15-16). Entretanto, o fantástico tem uma vida breve e não é o que prevalece, na narrativa: “(...) o fantástico não dura mais que o tempo de uma vacilação: vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da ‘realidade’, tal como existe para a opinião corrente” (TODOROV, 1982, p. 24).

Em Saramandaia, o fantástico restringia-se ao tempo das descobertas, quando os personagens e também os telespectadores se surpreendiam com o fato de espíritos aparecerem para os vivos, de nevar de repente na cidade, de um unicórnio aparecer em um parque abandonado ou de um casal selar seu enlace com um beijo, transformando-se em uma imensa árvore para todo o sempre. Entretanto, depois que terminava o choque da descoberta, vinha a aceitação. Inclusive, muitos personagens não se cansavam de dizer que em Bole-Bole tudo era possível.  Nesse instante, dava-se a passagem do fantástico para o maravilhoso. Na narrativa, os personagens, depois de feita a descobertice, esqueciam a surpresa e voltavam à vida normal. Dessa forma, sinuosamente, o enredo frequentemente transitavava “do verossímil ao inverossímil sem interrupção, sem questionamento” e todos eram finalmente “integrados num universo de ficção total onde o verossímil se assimila ao inverossímil numa completa coerência narrativa, criando o que se poderia chamar de uma verossimilhança interna” (RODRIGUES, 1988, p. 12-13).

Essa diferença e a transferência do fantástico para o maravilhoso esclarecem que, no maravilhoso, ao contrário do que muitos afirmam, é possível existir um universo pretensamente real, assim como também é possível que o estranhamento apareça gradativamente, na história. O limite entre esses dois conceitos é muito tênue e o predomínio de um ou de outro depende do posicionamento dos personagens diante do fato sobrenatural e extraordinário: “Um segundo nível de maravilhoso não tão radical permite que os seres humanos comuns convivam num cotidiano aparentemente verossímil com seres sobrenaturais, com fantasmas ou almas etc. Na medida em que esses seres não são questionados dentro do universo narrativo, também o leitor os aceita, porque aceita a ficção e seus pressupostos” (RODRIGUES, 1988, p. 56). Bole-Bole, que depois passou a se chamar “Saramandaia”, era exatamente assim. O professor Aristóbulo casou-se com Risoleta, João Gibão revelou suas asas para todos, no dia de seu casamento, quando voou e conseguiu voltar no tempo, para salvar sua noiva da morte, e Dona Pupu reencontrava o corpo de Belisário a cada nova tempestade elétrica, prevista com acerto por seu Encolheu, que adivinhava chuvas e tempestades, dependendo das dores que sentia pelo corpo.

Nesse mundo de imaginação e “realidade” ainda é possível falar de outro conceito: o “realismo maravilhoso”, porque não exclui “os realia (real, no baixo-latim); entretanto, os mirabilia (maravilha) ali se instauram” (RODRIGUES, 1988, p. 59). Essas diferencices de Saramandaia (seja dos conceitos teórico-literários, seja do exotismo dos personagens) desempenharam pelo menos duas funções muito importantes para a sociedade contemporânea. Elas permitiram a “ruptura no sistema de regras preestabelecidas” (TODOROV, 1982, p. 86) e assumiram as diferenças de cor, raça e sexo, opondo-se a qualquer tipo de preconceito. Além disso, elas possibilitaram que o entretenimento atingisse plenamente seu principal objetivo: o de alienação (bendita alienação essa!), que levou os espectadores ao mundo dos sonhos e das (im)possibilidades, em que o tempo se dilata e os problemas do dia a dia desaparecem. Antídoto mais que perfeito para neutralizar os efeitos da rotina tecnológica e estressante dos tempos modernosos...

 

Bibliografia:

CALVINO, I. Introdução. In: CALVINO, I. (Org.).  Contos fantásticos do século XIX. O fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 3-9.

CARNEIRO, F. Viagem pelo fantástico. In: COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 9-16.

COELHO, N. N. Literatura: um olhar aberto para o mundo. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 02 jun. 2007.

RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

SUENNY, P. ‘Saramandaia’ tem vocabulário próprio. Disponível em:

<http://www.diariosp.com.br/noticia/detalhe/55794/%91Saramandaia%92+tem+vocabulario+proprio>. Acesso em: 20 set. 2013. 

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva: 1982.

 

Créditos das fotos:

<http://novelafashionweek.com.br/site/veja-como-maquiador-de-meryl-streep-em-a-dama-de-ferro-participou-de-saramandaia/>.

<http://rd1.ig.com.br/blogueiros/curto-circuito/em-novo-dia-jose-do-egito-fracassa-na-audiencia/184642>

<http://www.alinegraziela.com/gibao-vai-voar-apos-primeira-noite-de-amor-com-marcina/>.

<http://extra.globo.com/tv-e-lazer/vera-holtz-esta-pronta-para-explodir-em-saramandaia-diz-eu-mereco-um-descanso-9766129.html>.

<http://zamenza.blogspot.com.br/2013/09/dona-redonda-explode-e-vera-holtz.html>.

<http://www.rondoniavip.com.br/noticia/dona-redonda-explodindo-fotos>.

<http://tvg.globo.com/novelas/saramandaia/Vem-por-ai/noticia/2013/09/ultimos-capitulos-apos-raio-cair-em-cima-de-flor-misteriosa-ela-fica-imensa.html>.

<batalhadoibope.com>.

<http://tvg.globo.com/novelas/saramandaia/Vem-por-ai/noticia/2013/09/ultimos-capitulos-no-meio-da-tempestade-eletrica-corpo-de-belisario-ressurge.html>.

 

* Verônica Daniel Kobs é professora e coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE-PR.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A REINVENÇÃO DO ESCRITOR. DO LEITOR; DOS COSTUMES E DA LÍNGUA.


Prof. Mail Marques Azevedo

Tomamos por empréstimo a Sérgio Sá o título, A reinvenção do escritor, da obra em que discute o périplo do escritor nos dias atuais. O subtítulo, literatura e mass media, esclarece o tema da discussão. O autor enfatiza a tendência atual de vivermos a cultura do videoclip e nos curvarmos às demandas de marketing por resultados imediatos:“rápida renovação, sucesso efêmero, sensação imediata, pura estimulação” (SÁ, 2010, p. 16). Neste cenário a literatura deve buscar alternativas a fim de sobreviver. O escritor está dividido entre a necessidade de entreter, a fim de chegar mais próximo do público (o entretenimento é o objetivo profundo e irrefutável do mundo da mídia), e a tentação da experimentação literária (e, consequentemente, a opção de permanecer fora dele).

Quanto aos subtítulos desta página [a reinvenção] do leitor; dos costumes e da língua ─ de criação própria, decorrem da observação das transformações que se processam no indivíduo como leitor, nos seus costumes e na sua língua de comunicação. Desde que o mundo é mundo, o homem experimenta, cria, imita, transforma, num processo inexorável de evolução em que se cria o novo pela absorção e transformação do já existente.

Tal processo de absorção e transformação constitui, em última análise, o fulcro da abordagem intermidiática de crítica literária, baseada nas relações entre mídias ou “midialidades”: textos impressos, cinema, televisão, comicstrips, vídeo games, animação e outras. Irina Rajewski aponta que a relação entre mídias, que a convenção determina serem distintas, é estabelecida com base na possibilidade de evocar, num receptor, aqueles modelos midiáticos específicos que lhe vêm à mente. A relação autor-leitor, portanto, é via de mão dupla: o primeiro busca diferentes meios que o aproximem do leitor de hoje, nutrido desde a infância nas mídias audiovisuais; por outro lado, espera-se que o leitor identifique os modelos midiáticos sugeridos pelo texto.

A reinvenção dos costumes é patente. Perdem-se nas brumas do passado, os jogos de amarelinha, as canções de roda, as pandorgas, substituídos por celulares, Ipods, Ipads, vídeo games e quejandos.(Será que alguém ainda sabe o que são “pandorgas” e “quejandos”?)

Neste ponto, a reinvenção da língua está mais do que clara. É evidente que o nosso português absorve, sem a menor cerimônia, palavras de outras línguas, ao mesmo tempo em que descarta as próprias. As que estão destacadas no texto revelam de imediato sua origem na língua inglesa. Existem outras, no entanto, de tal modo arraigadas em nosso discurso cotidiano que nem nos ocorre questionar de onde vieram.

Fiquei surpresa  ao ler o texto “Clientela ideal” de J.R. Guzzo, na revista Veja,§ que revela a origem de algumas palavras de uso corrente no português do Brasil: otário, afanar, engrupir, embromar, cambalacho, bacana, bronca, fajuto, punguista, fuleiro, grana, gaita, escracho, cana, tira, lábia, patota, cabreiro, pirado, barra-pesada etc.

Tais palavras, explica o articulista, vêm do lunfardo ou “lunfa”, linguajar que surgiu, aparentemente, nos fins do século XIX, “como meio de comunicação entre presidiários, criminosos em geral, proxenetas, vigaristas, batedores de carteira, vadios e outros malvivientes do submundo de Buenos Aires”. Chegaram ao Brasil via cais do Porto de Santos e Praça Mauá, no Rio de Janeiro e se incorporaram à língua. Note-se que todas foram aceitas por meu computador, exceção feita a “engrupir”.

E daí, a que conclusão chegamos?As conclusões do articulista não são muito lisonjeiras para o caráter dos brasileiros, a “clientela ideal”.  Certamente a opinião dos leitores de Guzzo, ou deste modesto comentário, estarão divididas: uma avaliação positiva indicaria o caráter democrático do brasileiro, pronto a absorver novidades e fazer seus instrumentos e ideias vindos de fora; uma avaliação negativa, penso, apontaria os excessos desse mesmo caráter democrático, pouco criterioso na adoção do novo.

Se o mundo de hoje exige a reinvenção do escritor, em função da reinvenção do leitor, bem como a reinvenção do leitor, de seus costumes e de sua língua, em função das modificações céleres da cultura dos grupos sociais, qualquer que seja nossa opinião pessoal, tais reinvenções estão aí para ficar.

 

REFERÊNCIAS

RAJEWSKI, I. A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade. In: DINIZ, T.F.N. & VIEIRA, A.S. (Org) Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p. 51-73.

SÁ, S. A reinvenção do escritor. Literatura e mass media. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

 



§GUZZO, J.R. Clientela ideal. Veja. 16 de outubro de 2013, p. 130.