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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

PONDERAÇÕES SOBRE “ACESSOS DE PALAVRAS” DE ELIAS CANETTI

Sigrid Renaux*

Dentre os ensaios que constam em A consciência das palavras, de Elias Canetti (1905-1994), prêmio Nobel de Literatura de 1981, destaca-se “Acessos de palavras” por apresentar, de maneira sucinta, um assunto que talvez as pessoas que emigram para outro país não estejam plenamente conscientes, em sua ânsia de sobreviver a qualquer custo. São banidos, prisioneiros ou soldados, como pondera Canetti, aos quais acrescento os inúmeros refugiados que hoje em dia partem em definitivo para o exterior, sem perspectivas de voltar ao país natal. Neste ensaio, apresentado como “palestra proferida na Academia de Belas-Artes da Baviera” em 1969, o próprio Canetti esclarece no Preâmbulo à obra que “quis descrever o que acontece com uma língua decidida a não capitular: seu verdadeiro objeto é, portanto, a língua, e não aquele que fala” (CANETTI, 1990, p. 10).
Partindo da perspectiva canettiana – verificar o que acontece com a língua materna no momento em que ela é transposta para um novo ambiente – procuro, ao examinar a sequência de constatações e argumentos que o escritor apresenta, concretizar esta verificação com ponderações sobre exemplos que me ocorrem de escritores ou simplesmente de pessoas quando estão no exterior por mais tempo, em qualquer situação e em contato com uma língua estrangeira dominante. Como Canetti esclarece quase ao final do ensaio, “não se trata aqui da aprendizagem de uma língua estrangeira na terra natal, numa sala de aula com um professor (...); trata-se, ao contrário, de estar entregue à língua estrangeira no domínio desta, onde todos estão do lado dela e, juntos, com aparente razão, golpeiam – despreocupada, decidida, ininterruptamente – a pessoa com suas palavras” (CANETTI, 1990, p.172).
Para Canetti – falando de sua própria experiência, pois continuou a escrever em alemão, que aprendera aos oito anos, mesmo morando principalmente em Londres – “a primeira coisa que ocorreu [à lingua materna] foi ter ela passado a ser tratada com outra espécie de curiosidade” (p. 169). Não apenas nas “confrontações literárias” com a linguagem corrente, mas principalmente nas particularidades da língua alemã, pois nela agora “tudo chamava a atenção; antes, eram apenas umas poucas coisas” (p. 170). Ou seja, passamos a valorizar mais aspectos de nossa própria língua, ao compará-la com a língua dominante, percebendo nela a riqueza (ou falta) de determinados termos ou expressões idiomáticas em comparação com a dominante. Basta lembrar o tão citado exemplo da palavra “saudade”, inexistente em outras línguas, ou a “Canção do Exílio’, de Gonçalves Dias, que revela, já na primeira estrofe, a percepção do poeta de que “as aves que aqui gorgeiam/não gorgeiam como lá” ampliando assim a riqueza sonora das palavras para incluir a sonoridade dos gorgeios dos pássaros.   
Outro aspecto salientado por Canetti é a percepção de “uma redução da auto-satisfação”, ou seja, o escritor que permanecesse com sua língua materna – em contraposição aos que adotaram a língua do novo país para escrever – e, portanto, sem “perspectiva de alcançar uma meta externa” (p. 170), passaria por “tolo” entre seus “companheiros de destino” e, pior ainda, entre “a gente do país” em meio à qual tinha de viver “era já como se não fosse ninguém”(p. 170). Em outras palavras: o escritor seria desdenhado e ignorado duplamente, por não haver se adaptado à nova língua como instrumento do fazer literário. Levando-se em consideração que Canetti continuou escrevendo em alemão, língua de alcance tão amplo como o inglês ou o francês na época, qualquer generalização torna-se problemática. Basta lembrar o exemplo de Joseph Conrad, polonês que aprendeu inglês apenas aos vinte e um anos ao entrar na marinha britânica, mas se tornou um dos grandes escritores britânicos dos séculos XIX e XX. O fato de que a língua polonesa não lhe oferecia, como o alemão, a oportunidade de “alcançar uma meta externa”, certamente influenciou em sua decisão de escrever em inglês.
Continuando sua argumentação, Canetti afirma que permanecer escrevendo em sua língua materna mesmo morando no exterior, e, portanto, sem leitores, “proporciona um singular sentimento de liberdade”, pois “tem-se uma língua secreta só para si, língua que não serve mais a nenhum objetivo externo, de que se faz uso quase que solitariamente”, como uma crença à qual os seres humanos se apegam quando todos ao ser redor a desaprovam (p.170). Para Canetti, porém, este é apenas um aspecto superficial da questão, pois o que realmente vale é o fato de que “uma pessoa com interesses literários tende a assumir que são as obras dos poetas que representam a língua” (p. 170). Entretanto, mesmo que essas obras constituam nosso alimento, Canetti alega que
entre as descobertas que se fazem vivendo no domínio de uma outra língua, uma possui um caráter todo especial: a de que são as próprias palavras que não nos abandonam, as palavras isoladas em si, para além de todo contexto espiritual mais amplo. Experimenta-se o poder e a energia singular das palavras, e do modo mais forte, quando se é com frequência obrigado a substituí-las por outras. (p.170-71)
Como Canetti continua, o dicionário do estudante que se esforça por aprender outra língua “é subitamente virado do avesso”, pois “tudo quer ser designado como a era antes, e propriamente”. Consequentemente, “a segunda língua, que agora se ouve todo o tempo, torna-se óbvia e banal; a primeira, que se defende, ressurge sob uma luz particular” (p. 171). É neste ponto que o ensaio de Canetti remete ao título, “Acessos de palavras”, após haver recordado como, estando na Inglaterra durante a segunda guerra mundial, “enchia páginas e páginas com palavras alemãs (...). De repente, como que tomado por um furor e fulminante como um raio, cobria algumas páginas de palavras” (p. 171). Pois, ao perceber que esses “acessos de palavras eram patológicos” Canetti nos revela o que está por trás desse título: “acesso” tanto como movimento psicológico passageiro, quanto como fenômeno patológico que a espaços cessa e recrudesce. Ou seja, como todo grande escritor, Canetti experimentava “o poder e a energia singular das palavras”, das palavras como paradigmas, no eixo da seleção, e não encaixadas em frases, como sintagmas, no eixo da combinação. Como ele conclui,
desde essa época, não resta para mim a menor dúvida de que as palavras estão carregadas de uma espécie particular de paixão. Elas são, na verdade, como os homens; não se deixam negligenciar nem esquecer. Como quer que sejam guardadas, elas conservam sua vida, e surgem repentinamente, exigindo seus direitos. (p. 171)  
Mesmo que Canetti diagnostique a causa desses “acessos de palavras” como sendo “sinal de que a pressão sobre a língua [alemã] tornou-se demasiadamente forte” e que o inglês “se impõe com frequência cada vez maior sobre a pessoa” (p.172), nesses “movimentos e contramovimentos”, as palavras da língua antiga “embotam-se na luta com suas rivais”, enquanto “outras alçam-se acima de qualquer contexto e resplandecem em sua intraduzibilidade” (p. 172).
Esta luta de paradigmas apresentada por Canetti, parece-me, é tão relevante para nossa conscientização do que ocorre quando somos “dominados” pela língua estrangeira mesmo sabendo que retornaremos à terra natal, quanto para os citados pelo ensaísta no início do texto, sem perspectivas de retornar a seu país. É o modo pelo qual as palavras de nossa língua materna permanecem intactas em nossa memória, resplandecentes em sua “intraduzibilidade”, enquanto outras perdem o lustro, cedendo espaço para novos paradigmas estrangeiros.
Para finalizar, tentando justificar esses “acessos de palavras”, esses “fatos linguísticos privados” (p. 172) que está apresentando à plateia, Canetti pondera que, se por um lado, numa época em que está em jogo a própria humanidade, em que os acontecimentos se multiplicam incessantemente, “seria de esperar de um ser humano, que apesar de tudo se atreve a pensar, algo bem diferente de um relato sobre o agon de palavras que se sucedem independentemente de seu sentido” (p172-3). Ou seja, Canetti está ciente de que estes “acessos de palavras” não são o que sua plateia esperava ouvir. Por outro lado, considera que o “ser humano hoje, em sua fascinação pelo coletivo, cada vez mais entregue à própria sorte, busca uma esfera privada que não lhe seja indigna, que se diferencie nitidamente do coletivo, mas na qual este se espelhe por completo e com maior precisão” (p.173). Esta “tradução” de uma esfera coletiva para a privada, “tão interminável quanto necessária” é, para Canetti, a língua alemã, na qual ele continua, como escritor, “a caminhar com conscienciosidade e responsabilidade”. Em outras palavras, se todo ser humano está à procura de uma esfera privada na qual sua vida coletiva também se espelhe, esta tradução atinge a todos nós¸ assim como atingiu, muito mais profundamente, o escritor, como artífice da palavra.

Referências:
CANETTI, E. A consciência das palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


  *Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. 

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

SERIA A ODISSEIA UM FOLHETIM?

Edson Ribeiro da Silva*

O homerólogo Victor Berard escreveu certa vez que a Odisseia tinha sido composta para as mulheres. Mas a Ilíada não, este poema seria para o público masculino.
Na odisseia, há uma espécie de alter-ego de Homero. No banquete no palácio de Alcínoo, um cantor distrai os presentes. Ulisses pede a ele que cante sobre a Guerra de Troia. O cantor é Demódoco, identificado como um cego capaz de emocionar com os relatos que faz das façanhas dos grandes heróis. Homero se identifica nesse poeta, é uma assinatura sua. (Desde que o aceitemos como a tradição o representa.) A emoção também é uma marca do poeta épico. E a Odisseia é um exemplo disso. 
Afinal, quem leu a Ilíada estranha uma certa falta de eventos épicos na Odisseia. A própria natureza de algumas personagens mostra aquelas características que, muito tempo depois, seriam chamadas de “românticas”. Nausícaa é a doce moça que sonha com um casamento. Ela é gentil, prestativa, age como uma heroína de novela antiga. Já a ninfa Calypso é apaixonada, ardente, capaz de colocar todos os seus privilégios em condição menos prioritária que poder ter relações sexuais com o herói. Uma típica vilã, dessas que se suicidam ou matam por amor. Falar das personagens ligadas a Ulisses, então, é constatar aquelas características marcantes nos heróis e adjuvantes românticos: a esposa é fiel e recatada, o filho arrisca a vida para procurar o pai, o trabalhador é caridoso e confiável, a ama-de-leite vê no senhor um filho. Personagens sensíveis, amorosas, fieis; apenas tais qualidades as fazem empunhar armas para ajudar o herói. Sem essa necessidade, estariam tranquilas em suas rotinas.
E a situação tão esperada da luta e da vingança ocorre de forma rápida, basta um canto, dentre os vinte-e-quatro que formam a obra, para que a grande ação épica se dê. E a ajuda da deusa Atena ao tornar o herói invulnerável apressa uma luta que poderia durar mais tempo, gerar mais conflitos. As demais ações épicas, as mais conhecidas da obra, estavam no relato de Ulisses, quatro cantos em que ele se mostra como homem superior, o mesmo capaz das grandes lutas travadas na Ilíada. Nos outros dezenove cantos, predomina o afeto, ou sentimentos recorrentes no folhetim, como a humilhação do homem superior, a identidade oculta daquele que pretende se vingar. Há encontros emocionantes do filho com o pai que não via desde criança, da esposa com o marido que ela supunha falecido, do herói com seu pai já idoso, ou com a mãe morta, no Hades. Os heróis pobres ganham belas recompensas.  E quase todos esses dezenove cantos se apoiam em uma ação de teor afetivo. Reconhecimento precedido por longos suspenses. Por saudades guardadas por anos, pela necessidade de conter a emoção quando se está disfarçado. E pelos folhetinescos “ganchos”, que seguram a ação esperada para que acabe no canto seguinte, como ocorre no encontro de Telêmaco com Ulisses, ou quando pai e filho escondem as armas dos pretendentes. A Odisseia parece ter inventado a estrutura do folhetim, da novela de televisão, milênios antes. 
Seria quase a mesma situação dos folhetinistas do século XIX, ao chamarem de “leitoras” o seu público. A expectativa de que o público feminino quer se emocionar, sobretudo diante de situações que envolvem o amor da mulher, ou os percalços passados por familiares que se amam para que possam viver felizes. Talvez a Odisseia tenha sido composta para um público assim, capaz de chorar como Ulisses ao ouvir os cantos de Demódoco. A afetividade, na Odisseia, domina a maioria dos cantos e das ações das personagens do bem. A personagem boa precisa ser heroica mesmo em uma história de amor.
Seria exagero dizer que o público de Homero já manifestava as características tão comuns ao grande público das narrativas nos séculos XIX e XX?  O velho chavão de que homem gosta de filme de ação e mulher, de drama sentimental?  Diferenças já tão marcantes nos dois poemas homéricos. 



*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

UMA SELFIE DO NOSSO TEMPO

Verônica Daniel Kobs*

            A peça Selfie, com direção de Marcos Caruso e atuações de Mateus Solano e Miguel Thiré, foi apresentada na edição 2015 do Festival de Teatro de Curitiba. O espetáculo conta a história de Cláudio (Mateus Solano), que decide parar de usar qualquer tipo de rede social ou aplicativo e migrar para um sistema único, encarregado de armazenar todas as informações relativas ao usuário. Porém, um dano irreparável provoca a perda de todos os dados, que deixam de existir não apenas no novo sistema, mas também nos outros ambientes virtuais. A partir desse momento, Cláudio não existe mais. Ele foi simplesmente deletado da rede e, na sociedade de hoje, sabe-se que o fato de ser excluído do ambiente virtual equivale praticamente a não existir no mundo real.
Confiando cegamente na eficácia do novo sistema, Cláudio perde informações importantes e precisa recuperar inúmeros dados (números de telefone, fotos, e-mails, lembranças...), para ter sua vida de volta. O prejuízo é grande, pois, contemporaneamente, criou-se uma espécie de intermediário para acessar informações pessoais: “‘A informação escaneada, que no mundo analógico poderia ser acessada apenas pelo uso de nossos olhos, de repente é armazenada em um ambiente onde só pode ser recuperada pelo uso da tecnologia (...)’” (SALERNO, 2015, p. 55). Além disso, segundo a autora, que usou como base dados da Academia da Arte das Imagens em Movimento, Ciência e Tecnologia de Hollywood: “‘O buraco negro digital aprisiona o projeto. (...). Se o recurso começar a definhar, a informação poderá ainda ser recuperada, mas, depois de um tempo, ela não estará mais acessível devido a arquivos corrompidos, a formatos ou tecnologias obsoletos’” (SALERNO, 2015, p. 55).
O projeto de Selfie é audacioso. O tema é atual e vai contra hábitos vigentes da sociedade, fazendo uma espécie de conclamação ao modo de vida do passado. Com a mesma irreverência, o espetáculo opta também por uma estrutura bastante particular: o cenário é simples e vazio; o figurino resume-se a um macacão azul; os personagens que contracenam com Cláudio, quando aparecem, são todos representados por Miguel Thiré; não são usados adereços de cena (com exceção de uma cadeira/pufe e do próprio celular); e tanto os sons como os objetos são sugeridos por onomatopeias e gestos, respectivamente. Nesse contexto, o público, auxiliado pelos gestos dos personagens, é levado a imaginar quase tudo: a ação de jogar coisas em uma pia de cozinha, por exemplo; o café que é derrubado sobre o computador de Cláudio; e até o computador em que o protagonista trabalha. Essas características da peça são particularmente interessantes, porque se assemelham a sistemas de simulação interativa, que “dão ao usuário a sensação de estar em ‘interação pessoal e imediata com a situação simulada’ (LÉVY, 1999, p. 66-67)” (RÉGIS, 2012, p. 183), ou de simulação por imersão. Outra similaridade se dá pela ausência de um cenário típico e de objetos na peça, já que: “Os sistemas de realidade virtual estabelecem relações de fraca percepção física, espacial e temporal” (RÉGIS, 2012, p. 183).


A partir de gestos, o elenco de Selfie convida o público a imaginar os adereços das cenas

Selfie, ao debater a (in)existência de Cláudio no mundo virtual (e também no mundo real), se aproxima de produtos culturais que recentemente enfocaram as mesmas questões, a exemplo de: Ela (EUA, 2013), filme dirigido por Spike Jonze, estrelado por Joaquin Phoenix, que conta a história de Theodore, que se apaixona por Samantha, um sistema operacional (“OS1”); e Homens, mulheres e filhos (EUA, 2014), filme de Jason Reitman, com Jennifer Garner no papel principal, que trata da influência da tecnologia na vida das pessoas. De fato, o computador e a internet, na contemporaneidade, reconfiguraram as relações sociais. Aliás, para Fatima Régis, a questão chega a ser bem mais complexa: “As novas tecnologias permitem novos modos de experiência, fazendo repensar o próprio conceito de humano” (RÉGIS, 2012, p. 184).
Para demonstrar isso, Selfie apresenta e critica os novos hábitos de nossa sociedade, que comodamente relega à máquina a responsabilidade por guardar momentos felizes, datas importantes, compromissos, etc. Nas relações cotidianas, vários momentos da peça refletem situações bem desagradáveis: a mãe (Miguel Thiré) constata a magreza do filho Cláudio pela foto que tira dele, enquanto o recebe, sem dar muita atenção ao que ele diz, em meio a curtidas, minivídeos caseiros e outros posts nas redes sociais (e ela vê a foto antes mesmo de ver o filho nos olhos, pessoalmente); a namorada (Miguel Thiré) diz a Cláudio que rompeu o namoro porque ele tinha sumido das redes sociais por 5 horas, sem dar nenhuma satisfação; e o próprio protagonista é flagrado utilizando dois computadores ao mesmo tempo, com várias janelas abertas, em grupos de redes sociais distintas e ainda falando ao celular, com uma chamada em espera. De modos distintos, todas essas cenas tratam do fator tempo, da simultaneidade, da urgência e da instantaneidade, temas que são uma espécie de cartão de visitas de nossa época. Ítalo Calvino já escrevia sobre isso, no final de 1990, quando afirmou que, no próximo século, “outros media triunfariam” e que, “dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso” arriscariam “reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58). Hoje, Zygmunt Bauman confirma a hipótese de seu antecessor, ao mencionar algumas ações muito próprias de nosso tempo: “(...) encurtar o espaço de tempo da durabilidade, (...) esquecer o ‘longo prazo’, (...) enfocar a manipulação da transitoriedade (...), dispor levemente das coisas para abrir espaço a outras igualmente transitórias e que deverão ser utilizadas instantaneamente” (BAUMAN, 2001, p. 146, ênfase no original).
Entretanto, em Selfie, não é apenas o tempo que condiciona as ações dos personagens. Relacionado a ele está a tecnologia, que fornece os recursos e os aparelhos que privilegiam a rapidez e o imediatismo. Sobre isso, a peça também debate a questão da indústria, afinal, os produtos necessitam de peças e acessórios, abrangendo vários ramos dos mercados de informática e telefonia, principalmente, incluindo fabricantes, revendedores, etc. Desse modo, um ciclo vicioso se estabelece: a sociedade atual se caracteriza pela rapidez, o mercado atende essa demanda e o consumidor obedece, simultaneamente, a dois comandos: do modismo e da oferta. Bauman inverte essa associação, afirmando que a sociedade “foi remodelada à semelhança do mercado” (BAUMAN, 2008, p. 76). Em outras palavras, o mercado dita as regras, a sociedade “compra a ideia” e cada consumidor trata de se adaptar à nova tendência, iniciando um processo de “afiliação” (BAUMAN, 2008, p. 71): “A ‘sociedade de consumidores’, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas” (BAUMAN, 2008, p. 71). E é exatamente assim que a história de Selfie termina...
Durante a peça, Cláudio vai, gradativamente, se deparando com velhos hábitos. Primeiro, um amigo relembra a época em que todos sabiam os números de telefone dos outros de cabeça. Depois, o protagonista é surpreendido por um menino desconhecido que lhe pede ajuda com uma pipa. Cláudio resiste, mas nesse instante a peça opõe duas realidades, representadas pelos símbolos antagônicos da pipa e do celular. O garoto insiste, Cláudio se vê naquela criança e acaba percebendo que o convite vai muito além de empinar pipa. Aceitando aquele chamado, o personagem pode reviver a infância, entrar em outro ritmo de tempo, mais frouxo e descompromissado; pode ser livre e experimentar novamente a sensação de brincar ao ar livre, ultrapassando as fronteiras dos espaços fechados, da solidão reclusa ou da alienação absoluta que a tecnologia impõe, mesmo quando se está ao ar livre, em meio a uma multidão.
Por esses motivos, o protagonista diz “sim” ao menino. A partir daí, ele percebe a necessidade de mudar seus hábitos e tenta estabelecer um novo modo de vida, desvinculando-se, ao menos um pouco, do império tecnológico. Porém, nesse instante, Cláudio encontra um idoso, amigo dele, que atualmente está superconectado. Baseando-se em sua experiência, o rapaz tenta alertá-lo sobre as desvantagens do uso desenfreado da tecnologia, mas o idoso não se convence e propõe que eles façam uma selfie para registrar o reencontro. Cláudio também não desiste e tenta dissuadir o amigo da ideia, sugerindo que eles apenas guardem aquele momento na memória. A reação é imediata e negativa, pois o senhor responde, em tom repreensivo: “Memória? Eu já tenho 94 anos! Vamos fazer uma selfie mesmo!” (SELFIE, 2015). O final é pessimista e nos remete às afirmações de Bauman sobre a sociedade do consumo. Cláudio é o único a perceber a tecnologia como causa de aprisionamento e alienação e, mesmo assim, a conclusão dele resultou de um processo lento, desencadeado pela insistência do garoto. Isso significa que a maioria das pessoas, hoje, compartilha quase tudo: fotos, vídeos, piadas, mas ainda não compartilha a ideia de que há um novo estilo de vida, com velhos hábitos, mais liberdade e também com mais tempo. Será que daqui a algum tempo alguém vai curtir isso? Afinal, todos nós somos responsáveis pelo futuro. Não nos conscientizamos disso, mas a cada momento estamos fazendo nossa história e podemos decidir o final que teremos: “A narrativa sobre a aventura da humanidade não está concluída. Nós escreveremos seus próximos capítulos. Cabe a nós decidir se seremos zumbis, robocops ou qualquer devir-outro que desejarmos. Como diz o menino Hogart para o robô em O gigante de ferro (1999): Você é o que escolhe ser” (RÉGIS, 2012, p. 207).

Referências:
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
_____. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.
SALERNO, A. Ciber limbo. Revista da Cultura, edição 93, abril de 2015, São Paulo, p. 55-57.
SELFIE. Direção de Marcos Caruso. Curitiba: abr. 2015.

* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Literatura e Estudos Culturais no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia no Curso de Graduação de Letras da FAE.