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quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

CIÊNCIAS HUMANAS: SERÁ O FIM?


Profa. Dra. Greicy Pinto Bellin 
UNIANDRADE

Em setembro de 2019, realizou-se, na UNIANDRADE, o XI Seminário de Pesquisa – III Seminário de Dissertações em Andamento – Semana de Iniciação Científica de Letras, em que tivemos a honra de assistir a um minicurso ministrado por Hans Ulrich Gumbrecht, professor emérito de Stanford University, sobre os leitores não-profissionais de literatura e seus desafios. Chamou-me a atenção a última frase proferida pelo professor ao cabo de 90 minutos de fala, não exatamente pelo seu conteúdo mas pela serenidade com a qual foi dita: Eu não acredito em um futuro para a teoria literária.
Tal frase poderia soar apocalíptica e desesperadora para uma professora em início de carreira, tendo em vista todos os esforços despendidos na realização de cursos de graduação, mestrado, doutorado, um estágio pós-doutoral, um pós-doutorado, e várias publicações de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais. Eu já conhecia, entretanto, a reflexão desenvolvida por Gumbrecht a respeito do futuro da teoria literária e do fim das humanidades, e já havia, inclusive, trabalhado com este tema em uma de minhas aulas no início do primeiro semestre de 2019. Eis que, após a realização do seminário, Sepp, como é comumente chamado pelos colegas mais próximos, tem publicado no jornal suíço Neuer Zürcher Zeitung, no dia 29 de outubro de 2019, um instigante texto, intitulado “Mehr Geist weniger Wissenschaft”, no qual aponta para vários problemas que me fizeram voltar a pensar nesta questão, e que motivaram a escrita deste artigo no intuito de sistematizar uma reflexão que, acredito, deveria ocupar as mentes de todos aqueles que se dedicam às ciências humanas. Vamos a eles.
O primeiro problema apontado por Sepp Gumbrecht diz respeito à enorme burocracia envolvendo a publicação de pesquisas produzidas na área de humanas, bem como o fato de que tais pesquisas, materializadas na forma de artigos publicados em periódicos, acabam não tendo um público leitor expressivo. O pensador cita o caso de um aluno de doutorado que teve seu trabalho sobre o pensamento político do Renascimento reconhecido por um especialista na área, o qual recomendou a publicação da pesquisa em um periódico de grande prestígio. O periódico, por sua vez, acabou por recusar o trabalho após um longo e controverso processo editorial, alegando que ele não se encaixava em seu horizonte temático. Tem-se, portanto, um problema na mensuração da qualidade da produção científica, o qual pode ser traduzido no seguinte questionamento: como pode uma pesquisa reconhecida por um grande especialista, o que asseguraria, pelo menos em tese, sua inquestionável qualidade, ser recusada por um periódico acadêmico pela simples falta de adequação ao tema e ao escopo deste mesmo periódico? A questão da adequação, a meu ver, remete à questão com a qual abri este parágrafo, e que será, em um futuro próximo, uma das responsáveis pelo fim das humanidades: a burocracia. Sobre este aspecto, recordei-me de outro texto de Sepp Gumbrecht, “Uma universidad futura sin humanidades”, publicado em um periódico uruguaio no ano de 2014. Neste texto, o pensador usa a expressão “to think outside the box” para refletir sobre a missão das humanidades, propondo que elas devem se especializar em “pensamento com risco” (“riskful thinking”) a fim de garantir sua sobrevivência. Pode-se definir como pensamento com risco todo e qualquer pensamento que ofereça mais problemas do que soluções, isto é, que complique o mundo ao invés de descomplicá-lo. Seguindo este raciocínio, as humanas seriam as grandes complicadoras do mundo, pois, além de não oferecerem soluções palpáveis e concretas para os dilemas da sociedade, ainda ousam criar mais problemas, o que inviabiliza a solução dos já existentes. Este é um ponto. O que quero mostrar, contudo, é a relação entre o cultivo do pensamento com risco e a burocracia, duas instâncias absolutamente incompatíveis, tendo em vista que a primeira dá ensejo ao surgimento de pensamentos complexos, ao passo que a segunda, com a sua rigidez, funcionaria como entrave para o desenvolvimento de tais pensamentos. Trocando em miúdos, as humanidades não comportariam, pelo menos em tese, a coexistência do pensamento com risco e da burocracia expressa em várias instâncias das humanidades. Sobre este aspecto, acredito que a definição de novos critérios para nortear a produção científica dos profissionais de humanas seja algo urgente e, até mesmo, incontornável não apenas no sentido de minimizar a burocracia em si, algo já muito difícil de conseguir, mas de encontrar critérios que embasem uma identidade própria para um profissional que tende, muitas vezes, a não saber o seu lugar no mundo e a não ter certeza de sua verdadeira missão.
A burocracia nas humanidades assume uma dimensão muito mais perigosa no que diz respeito a outra questão: a subserviência ideológica e político-partidária. Tal subserviência se transformou em uma característica quase insuperável da academia brasileira, que elegeu como critério onipresente de avaliação o pertencimento a determinados partidos e/ou afiliações políticas, como se estas afiliações, por si mesmas, fossem capazes de definir a qualidade de uma pesquisa científica. Neste sentido gostaria de retomar Gumbrecht mais uma vez. No já citado artigo “Uma universidad do futuro sin humanas”, o pensador questiona a politização dos pesquisadores de humanas fazendo a seguinte pergunta, a qual me parece muito pertinente: “Se querem ser tão políticos, porque escolheram ser humanistas ao invés de serem políticos?” (GUMBRECHT, 2014, p. 126, tradução minha). Trocando mais uma vez em miúdos, em asserção que configuraria uma verdadeira heresia para os que acreditam ferrenhamente na associação que Gumbrecht (e eu mesma) estamos questionando, política (pelo menos em seu sentido partidário) e literatura pertenceriam a esferas bastante distintas, de maneira que a missão dos humanistas deveria ser separada das missões políticas que burocratizam o pensamento com risco, transformando-o em algo que estaria a serviço de um partido e/ou de uma ideologia. Pensamento com risco, salvo lego engano, implica liberdade, algo que não poderia ser conquistado quando se defende uma associação que desveste a literatura de seu verdadeiro potencial, que é a fruição estética, e a transforma em panfleto e/ou documentário enfadonho a serviço da manutenção do pensamento de determinados grupos legitimados por relações de poder. Gumbrecht chama isso de “correção política”, considerando que a permanência desta correção seria determinante para o fim das humanidades em um futuro próximo. 
Tornamo-nos burocratas a partir do momento em que optamos pela sobrevivência a qualquer custo em detrimento do desenvolvimento de nossa intelectualidade, outro problema apontado por Gumbrecht em seu artigo. Isso se torna especialmente complicado na área de humanas, pois nossas pesquisas, diferentemente das pesquisas desenvolvidas em laboratórios, não levam a resultados concretos com influência direta na vida das pessoas. O resultado de nosso trabalho é algo extremamente abstrato e difícil de mensurar, o que se faz sentir quando nos deparamos com os quesitos “metodologia” e “resultados” ao preencher um formulário visando solicitação de recursos financeiros para o desenvolvimento de uma nova pesquisa, por exemplo. Como pensar em metodologia quando nosso trabalho envolve análise de textos e de material bibliográfico relacionado a estes textos, apenas? Como pensar em um resultado para algo que muitas vezes é tão amplo que pode não ter um fim imediato, o que se faz sentir quando encerramos um artigo com a expressão “considerações finais” ao invés de “conclusão”? Muitos profissionais de humanas não estão conscientes destas questões devido a uma percepção deslumbrada acerca de seu trabalho, percepção esta que os impede de ter o distanciamento crítico necessário para avaliar o alcance deste mesmo trabalho fora de um circuito acadêmico muitas vezes redutor e justificado pela bela expressão “torre de marfim”. O fato é que muitos humanistas se comprazem em pertencer a esta torre por acreditar que ela os torna exclusivos e especiais, quando o que se observa é uma alienação agravada pelo deslumbramento e pela correção política daqueles que não pertencem à torre mas militam nas barricadas da teoria. 
Mas o pior problema reside em um problema de difícil reconhecimento pela maioria dos acadêmicos e se manifesta na ausência de leituras aprofundadas dos clássicos que formaram a literatura ocidental, bem como na má vontade em relação à leitura de obras que não apresentam um viés político determinado, o que nos leva novamente ao problema da correção política. É como se eu me recusasse a ler Vidas secas porque Graciliano Ramos militava no Partido Comunista, ou a ler Machado de Assis por conta de seu propalado (e já questionado e superado) absenteísmo em relação a questões políticas, ou a ler Érico Veríssimo por sua postura anticomunista, veiculada, por exemplo, em O tempo e o vento, grande épico da formação do Rio Grande do Sul, um dos maiores romances de toda a literatura brasileira. A meu ver nada substitui, em primeiro lugar, a análise do texto literário, bem como a necessidade de ter este texto como ponto de partida para toda e qualquer reflexão sobre a literatura, independente da posição política que se sustenta em um dado momento. O problema da falta de leitura aprofundada de textos, ao fim e ao cabo, diz respeito à função exercida pelos profissionais de humanas em uma sociedade. Não há sentido em continuar usando o texto literário para sustentar correções políticas e visões deslumbradas acerca da sociedade, mais especificamente a sociedade brasileira, que passa por tantos problemas no momento. O aluno que souber ler de forma eficaz não se deixará enganar por fake news e notícias falaciosas de jornais e redes tendenciosas de televisão; ele (a) saberá interpretar o mundo não como os outros querem que seja interpretado, mas a partir de seu próprio ponto de vista. Por isso o combate à correção política é fundamental, pois ela nos cega e nos transforma em massa de manobra em um sistema perverso de equívocos que, por ser reforçado geração a geração, acaba não perdendo a força, impedindo a transformação.
Ao contrário de Sepp Gumbrecht, considero-me otimista em relação ao futuro das humanidades com a seguinte condição: que nos transformemos e transformemos nossos alunos em minuciosos leitores de textos, principalmente o texto literário, sempre procurando mostrar o prazer deste texto, que reside, em grande parte, em seus elementos materiais, capazes de provocar sensações diversas e consolidar não apenas o prazer da leitura, mas um verdadeiro direito a literatura, o direito ao texto, à identificação de todas as suas nuances sem a obrigação de ceder à correção política, e sem um compromisso rígido com as ideias preconcebidas em relação à leitura. Não chegaremos ao fim se exercermos este direito.


REFERÊNCIAS
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Una universidad do futuro sin humaninades. In Mediaciones de la Comunicación, Uruguai, v. 9, n. 9, p. 117-141, 2014. Disponível em: https://revistas.ort.edu.uy/inmediaciones-de-la-comunicacion/article/view/2604/2582
_______.Mehr Geist, weniger Wissenschaft. Publicado originalmente no jornal Neue Zürcher Zeitung, em 29 de outubro de 2019, p. 39.
O DISCURSO SINCRÉTICO DA CENA DE ABERTURA DA ÓPERA OTELLO, DE GIUSEPPE VERDI

                                      
Autora: Silvandra Mara Henrique Rodrigues 
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati
UNIANDRADE

O intuito deste texto é o de abordar o discurso sincrético e seus efeitos musicais na cena I da ópera Otello (1887), de Giuseppe Verdi (1813-1901), baseada no texto homônimo (1603), de William Shakespeare (1564-1616).
Clüver (2006, p. 20) ensina que um discurso sincrético “possui dois signos ou mais sistemas de signos e/ou midias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos  de seus signos se tornam inseparáveis”. Nesse sentido, entende-se a  ópera como um gênero musical no qual a música está conectada à ação dramática expressa pelo texto, ou libreto. Este, por sua vez, tem características de textos curtos já que a música não possui a velocidade e habilidade verbal da linguagem, portanto a ópera requer menos palavras do que o necessário para uma peça de mesma extensão (WEISSTEIN, citado em HUTCHEON, 2011, p. 75).
Deste modo, considera-se a ópera uma manifestação cultural plurimidiática, a qual. de acordo com Camati (2018), reúne várias mídias em um mesmo espaço, como a música, o teatro, a dança, a literatura e as artes plásticas. Para Hutcheon “adaptação é a força vital da ópera e tem sido assim desde o início dessa forma de arte na Itália no final do século XVI”. (HUTCHEON, 2017, p. 305, tradução nossa)[1].
Assim as estruturas musicais criadas por Giuseppe Verdi, na ópera Otello, se fundem ao texto de Arrigo Boito (1842-1918), para expressarem significados precisos, como a construção gramatical metafórica e criar um meio psicológico no qual a música revela emoções, sendo mais efetiva do que palavras. O libreto revela um entrosamento com a peça shakespeariana, no qual, apesar do processo de síntese, os períodos fundamentais do texto literário foram mantidos, o que fez com que a escolha do libretista fosse determinante para o compositor. Pois, a união da música de Verdi e o texto de Boito “representam o apogeu do drama lírico e da ópera-cômica italiana” (CANDÉ, 2001, p. 96)  
A estratégia musical utilizada pelo compositor italiano revela nuances carregada de contrastes, deste modo foi capaz de demonstrar os sentimentos das personagens de forma perfeita, criando uma declamação melódica original da Língua Italiana, ampliando a orquestra e fazendo-a executar um papel dramático extraordinário.(CANDÉ, 2001, p. 97)
Assim, a análise a seguir será regida pelo conceito de plurimidialidade do teatro musical, o qual, segundo Picon-Vallin (2018, p. 20) designa “todas as produções em que se tenta integrar a música, texto e elementos visuais”.
Na ópera Otello, Verdi utiliza logo no início, na cena I, o recurso de trêmolos – repetição veloz de uma ou mais notas quando se deseja maior volume, utilizando-se desse recurso nas flautas, cordas e percussão e criando uma instabilidade rítmica utilizando síncopes nos sopros – isso produz o efeito de deslocamento das acentuações naturais e resulta numa tensão causada pela ausência do acento esperado.  Assim, obteve-se o efeito de tempestade, passando aos espectadores uma sensação de ansiedade e medo ao avistarem o navio que se aproximava. A música reflete e amplifica o drama de conflitos das personagens, onde sentimentos como a inveja, o ciúme, a mentira são sublinhados pela música para acentuar a textura do enredo teatral. A ansiedade é expressa por uma série de cromatismos – ou seja, notas sucessivas – com instrumentos agudos ( flautas e oboés), alternando  dinâmica suave que logo passam a ser escalas rápidas numa dinâmica fortíssima, reforçada com as quiálteras – divisões irregulares – nos metais e com arpejos – execução rápida e sucessiva das notas de um acorde – nas cordas, tudo isso permeado por um pedal de órgão numa tessitura grave que permeia toda a cena. Deste modo, o compositor cria uma tensão melódica, ao passo que o texto breve, irregular e intenso de Boito, com a execução do coro nas frases intercaladas por dois grupos – Una vela! (grupo I), Una vela! (grupo II), Un vessillo! (grupo I), Un vessillo! (grupo II), amplia a sensação de ansiedade.
O legato do início, logo se transforma numa articulação curta (stacatto) e cromática para os instrumentos de sopros, com arpejos ligados nos instrumentos de cordas e a dinâmica passa para pianíssimo (intensidade sonora mínima, quase inaudível), o coro canta colcheias pontuadas que, também, transmitem ansiedade, criando contrapontos entre instrumentos com frases ligadas em meio a vozes do coro. Esse contraste diatônico e cromático, dinâmicas suaves e fortes, articulações ligadas e curtas são o pano de fundo para toda cena I, indicando um sentimento de movimento e passagem. A abertura é, inesperadamente, crescente (Lampi! tuoni! gorghi! turbi tempestosi e fulmini!). Da tempestade e da possível derrota passa-se à salvação e à festa da vitória (Esultate! L'orgoglio musulmano sepolto è in mar; nostra e del ciel è gloria! Dopo l'armi lo vinse l'uragano). Com isso, os sentimentos expressados na Cena I, demonstram contrapontos da mudança de sentimentos entre o medo e o perigo da tempestade convertendo-se em canto de alegria e celebração da vitória sobre os turcos, assim como o sentimento de inveja e o desejo que Rodrigo possui sobre a possibilidade do barco afundar e, com isso, resultar a morte de Otello, não ser concretizado.
A análise deste pequeno trecho demonstra que Verdi, ao compor Otello, eliminou a ária considerada padrão, para a época, e as formas de conjunto as quais eram produzidas as óperas, deste modo o compositor criou uma forma estilística diferenciada. A música de Otello se move de uma cena para outra com muita dramaticidade, raramente parando, permitindo que uma melodia se desenvolva e nos mova rapidamente de um fragmento melódico para outro em toda a peça.  Assim, causa no público uma sensação de desenvolvimento contínuo, pois ao não permitir que o espectador ouça uma música resolvida em sua tônica, ele cria a sensação de constante mobilidade para a frente. 
Toda a ópera foi construída passando de um motivo melodioso para outro como uma “costura melódica”. Com isso, Verdi reserva as composições musicais genuinamente elevadas e “esculpidas” no clímax da peça, recompensando o ouvinte por manter toda a atenção nesse processo motivacional único.

Nota:
[1] Adaptation is the lifeblood of opera and has been so since that art form's inception in Italy in the late sixteenth century. 


REFERÊNCIAS
CAMATI, Anna Stegh. Sonho de uma noite de verão: do texto de Shakespeare à ópera de Benjamin Britten. Tradução em Revista: Puc Rio, Diálogos com Shakespeare: adaptações, apropriações, releituras, n. 25, p. 50-64, 2018/2.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Trad. Eduardo Brandão: revisão da trad. Marina Appenzeller. 2. ed.  São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CLÜVER, Claus. Inter textus/ Inter artes / Inter media. Tradução do alemão de Elcio Loureiro Cornelsen. AletriA: Revista de Estudos de Literatura – Intermidialidade, v.14, p. 11-41, jul./dez. 2006. 
DOURADO, Henrique Autran. O arco dos instrumentos de cordas: breve histórico, suas escolas e golpes de arco. São Paulo: Irmãos Vitale, 2009.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. 
HUTCHEON, L.; HUTCHEON, M. Adaptation and Opera. In: LEITCH, Thomas (Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017, p. 305-323.  
LEITCH, Thomas. (Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017.
MED, Bohumil. Teoria da música. Ed. 4 rev. e ampl. Brasilia, DF: Musimed, 1996.
PICON-VALLIN, B. A cena em ensaios. Trad. Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. 
VERDI, Giuseppe. Otello: in Full Score. Opera. Libretto by Arrigo Boito, based on the play by Shakespeare. Reprint originally published. Milan: Ricord, 1986.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019


ADAPTAÇÃO – NÃO INSISTA NA FIDELIDADE 

CITAÇÕES


Autoras: Amanda Ferreira Cilião
Thais dos Santos Pires
 Helena G. de Bittencourt 
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann
UNIANDRADE


A insistência na “fidelidade” – que deriva das expectativas que o espectador traz ao filme, baseadas na sua própria leitura do original – é um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, e porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios são inseridos. (JOHNSON, 1982, p. 42)

Podemos afirmar que, no domínio da linguagem e do estilo, a criação cinematográfica é diretamente proporcional à fidelidade. Pelas mesmas razões que fazem com que a tradução literal não valha nada, com que a tradução livre demais nos pareça condenável, a boa adaptação deve conseguir o essencial do texto e do espírito (BAZIN, 1991, p. 95-96)

São aqueles que menos se preocupam com a fidelidade em nome de pretensas exigências da tela que traem a um só tempo a literatura e o cinema. (BAZIN, 1991, p. 96)
 
Neste ensaio, eu gostaria de propor uma linguagem alternativa para falar sobre a adaptação de romances ao cinema. A linguagem convencional da crítica sobre as adaptações tem sido, com frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada palavra carregando sua carga específica de ignomínia. “Infidelidade” carrega insinuações de pudor vitoriano; “traição” evoca perfídia ética; “abastardamento” conota ilegitimidade; “deformação” sugere aversão estética e monstruosidade; “violação” lembra violência sexual; “vulgarização” insinua degradação de classe; e “profanação” implica sacrilégio religioso e blasfêmia. (STAM, 2006, p. 19-20)

Embora o poder persuasivo da suposta superioridade da literatura ao filme possa ser parcialmente explicada pelo fato inegável de que muitas adaptações baseadas em romances importantes são medíocres ou mal orientadas, ele também deriva, eu argumentaria, das pressuposições profundamente enraizadas e freqüentemente inconscientes sobre as relações entre as duas artes. O senso intuitivo da inferioridade da adaptação deriva, eu especularia, de uma constelação de preconceitos primordiais. Em outros textos eu resumi esses preconceitos nos seguintes termos: 1) antiguidade (o pressuposto de que as artes antigas são necessariamente artes melhores); 2) pensamento dicotômico (o pressuposto de que o ganho do cinema constitui perdas para a literatura); 3) iconofobia (o preconceito culturalmente enraizado contra as artes visuais, cujas origens remontam não só às proibições judaico islâmico-protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e neo-platônica do mundo da aparências dos fenômenos); 4) logofilia, (a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual Bakhtin chama de “palavra sagrada” dos textos escritos); 6) anti-corporalidade, um desgosto pela “incorporação” imprópria do texto fílmico, com seus personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso; 6) a carga de parasitismo (adaptações vistas como duplamente “menos”: menos do que o romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser um filme “puro”). (STAM, 2006, p. 20-21)

O termo para adaptação enquanto “leitura” da fonte do romance, sugere que assim como qualquer texto pode gerar uma infinidade de leituras, qualquer romance pode gerar um número infinito de leituras para adaptação, que serão inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos. A metáfora da tradução, similarmente, sugere um esforço íntegro de transposição intersemiótica, com as inevitáveis perdas e ganhos típicos de qualquer tradução. (STAM, 2006, p. 27)

A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável. (STAM, 2008, p. 20)

A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. E há claramente várias intenções possíveis por trás do ato de adaptar: o desejo de consumir a apagar a lembrança do texto adaptado, ou de questioná-lo, é um motivo tão comum quanto a vontade de prestar homenagem, copiando-o. (HUTCHEON, 2011, p. 28)

Se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria? De acordo com sua ocorrência no dicionário, “adaptar” quer dizer ajustar, alterar, tornar adequado. Isso pode ser feito de diversos modos. (HUTCHEON, 2011, p. 28 e 29)

O texto adaptado, portanto, não é algo a ser reproduzido, mas sim um objeto a ser interpretado e recriado, frequentemente numa nova mídia. (HUTCHEON, 2011, p. 123)

No fenômeno da adaptação audiovisual do universo literário, a noção de “fidelidade” − presente no senso comum em comentários como “o livro é melhor” − porta um equívoco de base, prestando mesmo um desserviço metodológico. (BULHÔES, 2012, p. 61)


REFERÊNCIAS
JOHNSON, R. Literatura e CinemaMacunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.
BULHOES, M. Para além da “fidelidade” na adaptação audiovisual: o caso da minissérie televisiva Capitu. São Paulo: Galaxia, 2012.
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do Desterro, p. 51, jul./dez. 2006.
_______. A literatura através do cinema. Trad. Marie-Anne Kremer e Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

ADAPTAÇÃO
 

Autora: Thais dos Santos Pires
Programa de Iniciação Científica de Letras
 UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann
UNIANDRADE
 

O dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, define adaptação como: “01. Ação ou efeito de adaptar(-se) [...] 03. Transformação de uma obra literária em representação teatral, cinematográfica, radiofônica ou televisionada”. Com isso, entendem-se filmes, séries de TV, telenovelas, minisséries, microsséries, músicas, pinturas, quadrinhos, entre outras, baseadas em obras literárias. A transposição de um livro para outra obra mídia é comum e pode ser vista com muita frequência. O cinema utiliza obras literárias para transpor a uma linguagem visual e, muitas vezes, recriar o que já existe. Essa transposição pode ser tão trabalhosa quanto criar algo novo.

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Adaptação primeiramente é a transposição de uma mídia para outra, formando assim, uma nova obra. Os livros de maior venda são adaptados para o cinema. Tanto é que encontramos frequentemente novas edições de livros com capas de sua adaptação cinematográfica, como Dois irmãos, A menina que roubava livros, A culpa é das estrelas, O hobbit, It – A coisa, O orfanato da senhorita Peregrine para crianças peculiares, por exemplo.  Obras literárias também são adaptadas para os quadrinhos com bastante frequência, realizando uma conexão entre palavras e imagens, podendo ser observada na literatura brasileira nas obras de Machado de Assis. Assim como algumas séries de TV Game Of Thrones, Desventuras em Série, His Dark Materials – passaram a ter adaptações literárias.
Robert Stam, grande estudioso da literatura e cinema, elucida em sua obra A literatura através do cinema que as adaptações fílmicas ajudam a democratizar a literatura e a torná-la popular. Para qualquer outro meio de comunicação pressupõem alterações necessárias para que elas sejam condizentes com o meio e com o público que vai atingir, alterações estas que trazem uma fluência necessária ao novo produto. Com isso, vemos quão importante é estudar esse fenômeno. Analisar como a linguagem literária foi transposta para o visual, observando o cenário, o figurino das personagens, a posição de câmeras, a fotografia, a música e o som que, segundo Hutcheon (2013), pode acentuar, reforçar, ou até mesmo contradizer os aspectos visuais e verbais, entre outros elementos, encaixando assim, as palavras inseridas nas imagens. Consequentemente, é interessante compreender que ambas são obras diferentes e ao traduzir um livro para outra mídia, temos uma nova obra.
É comum os espectadores julgarem algumas adaptações cinematográficas, pois esperam que sejam transmitidos todos os detalhes do livro, porém o que deve ser observado é que cada leitor contém sua interpretação da obra e a do produtor pode ser diferente. Entretanto, os diretores irão traduzir essa obra para as imagens de forma concisa e direta, condizente ao seu entendimento e público-alvo. Segundo Hutcheon (2013), conforme as adaptações, as complicações aumentam ainda mais, pois as mudanças geralmente ocorrem entre mídias, gêneros, muitas vezes nos idiomas e, portanto, nas culturas. Como pode ser considerado um processo de criação, a adaptação sempre envolve uma reinterpretação de uma ou mais obras, pois é uma transposição de um sistema de signos para outro signo.
Contudo, pode ser entendido e considerado como um processo de interpretação de uma primeira obra resultando em uma segunda, e esta pode ser analisada sob diferentes perspectivas. Assim como cada espectador verá um filme, uma série, uma pintura ou um quadrinho de maneira diferente, o leitor de uma determinada obra possui uma leitura diferenciada da mesma, podendo ser transmitida através de imagens conforme a leitura dos adaptadores.


REFERÊNCIAS
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed.  Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.
STAM, Robert. A literatura através do cinema. Trad. Marie-Anne Kremer e Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
FACTÓTUM: DO HIPOTEXTO AO HIPERTEXTO

Autora: Helena G. de Bittencourt
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann
UNIANDRADE
 

Factótum, segundo romance de Bukowski, foi publicado em 1975 e adaptado para o cinema em 2005, com o título de Factótum – sem limites, dirigido por Bent Hamer. Dos seis romances escritos por Bukowski (Misto-quente, Factótum, Cartas nas ruas, Mulheres, Hollywood e Pulp), Factótum é o único que foi recriado em mídia audiovisual.
Nas cenas passadas no hipódromo e nos bares, principalmente, o filme foi capaz de suscitar no espectador recepção semelhante à do leitor ao texto. Por exemplo, a desgraça, a decadência e a depravação da vida de Chinaski, transmitidas no drama/romance de Bukowski, são habilmente transpostas para o filme. Matt Dillon interpreta Hank brilhantemente: sua maneira de olhar, falar e de andar. O diretor também faz um trabalho esmerado: a câmera utilizada é econômica, de baixa qualidade, as edições básicas e o uso de cores meio apagadas, pálidas, cria um clima de depressão, que nos remete ao anti-herói e aos ambientes por ele vivido. Essas escolhas fazem com que a recepção do filme se assemelhe o que imaginamos ao ler Factótum.

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Henry (Hank) Chinaski – personagem central e alter ego de Bukowski, interpretado por Matt Dillon – após ser classificado como inapto para entrar no exército, durante a segunda guerra mundial e, sem profissão e perspectiva de vida, necessita encontrar emprego para poder pagar um lugar para morar (ele sempre tinha que se mudar, por falta de dinheiro), para suas bebidas e para sobreviver. Trabalha fazendo bicos, migrando de emprego a emprego. Os empregos dele são sempre temporários, pois ele sempre arruma alguma confusão e é demitido, isso quando ele mesmo não se demite. Ele aceita fazer qualquer coisa que apareça, e daí vem o nome Factótum, que quer dizer “faz-tudo”.
Mas apesar de fazer qualquer tipo de trabalho, Hank queria mesmo era ser escritor. Lutava entre querer escrever e sua realidade. Não possuía máquina de escrever, sendo assim, sempre escrevia à mão. O que mais escrevia eram contos. Ele escrevia cerca de quatro contos por semana e enviava para revistas, mas seus contos eram sempre rejeitados. Até que um dia ele recebeu uma carta dizendo que, dentre os contos que ele tinha enviado, um havia sido aceito. E isso, como não poderia ser diferente, o deixou empolgado, como podemos notar no capítulo 29:

Levantei-me da cadeira, segurando ainda a carta de minha aceitação. MINHA PRIMEIRA. Da revista literária número um da América. O mundo nunca parecera tão bom, tão cheio de promessas. Fui até a cama, sentei-me, voltei a lê-la. Estudei cada curva da assinatura à mão de Gladmore. Levantei-me, fui com a aceitação até a cômoda, guardei-a lá dentro. Depois me despi, apaguei as luzes e fui para a cama. Não conseguia dormir. Levantei-me, acendi as luzes, fui até a cômoda e voltei a ler a carta:

       Caro sr. Chinaski… (BUKOWSKI, 2011, p. 37)

Além de escrever, havia outra coisa que Hank gostava de fazer (além de beber e se relacionar com mulheres): ir aos hipódromos. Ele era bom em apostar nos cavalos ganhadores. Ia às corridas com seu carro de trinta dólares e, ao final, gastava o dinheiro que porventura tivesse ganho com bebida e mulheres. O livro e o filme retratam bem isso:
 
Quando voltei para Los Angeles, encontrei um hotel barato nas imediações da Hoover Street e fiquei na cama e bebi. Bebi por algum tempo, três ou quatro dias. Não conseguia achar disposição para ler os classificados. A ideia de me sentar diante de um homem e sua mesa e lhe dizer que eu queria um trabalho, que eu tinha as qualificações necessárias, era demais para mim. Francamente, eu estava horrorizado diante da vida, o que um homem precisava fazer para comer, dormir, manter-se vestido. Então fiquei na cama enchendo a cara. Quando você bebia, o mundo continuava lá fora, mas por um momento era como se ele não o trouxesse preso pela garganta. (BUKOWSKI, 2011, p. 39)

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Outro detalhe incluído no livro são as humilhações pelas quais Hank passa, através das denúncias sociais, as relações de trabalho na época. Isso também é encontrado no filme (aos 27 minutos e 55 segundos), como é o caso deste diálogo que foi transposto na íntegra, que nos remete a mais-valia (termo empregado por Karl Marx):

– Eu lhe dei meu tempo. É tudo o que tenho pra oferecer, é tudo o que um homem tem a oferecer. E pelo quê? Para ganhar um dolarzinho chorado e quinze centavos por hora.
– Lembre-se que você implorou por esse emprego. Você disse que essa aqui era a sua segunda casa.
– Meu tempo para que você possa viver na sua mansão lá no alto do morro e o pacote completo que vem com isso. Se alguém perdeu alguma coisa nesse negócio, nesse acordo, esse alguém foi eu. Está entendendo? (BUKOWSKI, 2011, p. 65)

Além desse, muitos outros diálogos são transpostos integralmente par o filme, como o que se passa no capítulo 24, por exemplo, em que Hank está em uma entrevista. No filme, essa cena se passa a partir dos 9 minutos e 52 segundos. Além dos diálogos, algumas narrações são também encontradas na íntegra no filme. O desenvolver da trama é narrado por pensamentos de Henry no livro, a narração das dificuldades do protagonista durante as cenas na tela aproxima ainda mais o filme do texto.
Mas, apesar de o ator ser um ótimo intérprete de Hank, o filme é mais polido e não segue a ordem de algumas cenas do livro. Faltou um pouco do aspecto "sujo", realista, que encontramos no texto fonte. Nem sempre a bebedeira, o sexo, as palavras de baixo calão, em suma, foram passados para a versão fílmica, afastando assim o filme da obra de Bukowski. O personagem Chinaski, no livro, é frio, apático; no filme ele não é. Há também um afastamento do humor, sarcasmo e ironia de Bukowski. Sabemos, no entanto, que é impossível ter-se uma transposição fílmica que seja uma replicação do texto; além do mais, enfatizar o que se passa na obra original poderia afastar o público do cinema, fazendo que com que fosse classificado como pornográfico e não tivesse sucesso de bilheteria.

 

REFERÊNCIAS
BUKOWSKI, Charles. Factótum. Trad. Pedro Gonzaga. Edição brasileira. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011.

FACTÓTUM - sem limites. Direção de Bent Hamer. Estados Unidos da América: IFC Films, 2005.
(1h 38min.).
ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE O BEBÊ DE ROSEMARY
 
 Autor: Felipe Eduardo Alves da Silva
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Brunilda Reichmann
UNIANDRADE 

     O bebê de Rosemary é um romance de terror norte-americano, escrito por Ira Levin e publicado em 12 de março de 1967. O romance acompanha o casal Rosemary e Guy Woodhouse, que sofre as consequências de ter comprado um apartamento no Edifício Bramford, um condomínio conhecido por ter abrigado habitantes malquistos, como assassinos e adoradores de entidades satânicas. Roman Polanski – grande diretor de cinema – lançou em 12 de junho de 1968 a adaptação cinematográfica da obra, que se tornou um clássico.

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Como em qualquer adaptação, Polanski teve de ajustar o texto ao adaptá-lo ao cinema. Os cortes e alterações feitos por Polanski, como por exemplo, a remoção da personagem Margaret, – irmã de Rosemary – que não aparece no filme (no livro, ela é apenas mencionada em alguns momentos, por conta disso, é compreensível que a personagem tenha sido removida), assim como alguns eventos da trama que foram adiantados no filme, não interferem na compreensão do enredo ou no impacto da história.
Ao assistir ao filme, podemos perceber também que o cineasta tentou passar para a mídia cinematográfica detalhes importantes do texto de Levin, sendo que, grande parte dos diálogos da obra são transpostos na íntegra para o filme. Logo no início, temos a cena em que Rosemary e Guy se encontram com o porteiro do Edifício Bramford, que irá lhes mostrar o lugar, e o diálogo que se segue, é retirado por completo da obra literária, como podemos ver aos 02:40 de filme – o texto para a cena é retirado da página 9 da obra e acompanha um diálogo entre Guy e o porteiro a respeito da carreira daquele. Polanski também se preocupou com alguns mínimos detalhes descritos por Levin: alguns instantes depois, ainda na mesma cena, vemos o ascensorista do edifício tentando parar o elevador perfeitamente alinhado com o piso do andar em que o casal e o porteiro iriam descer, assim como descrito no livro, “O elevador parou e o ascensorista, sorridente, tratou de alinhá-lo com o piso externo, descendo, subindo, descendo um pouco mais, até o ajuste perfeito” (LEVIN, 1967, p. 10) – é possível ver a cena aos 03:24 minutos do filme.

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       Quando lemos a obra de Ira Levin, é possível sentir a emoção da personagem Rosemary durante a trama. O leitor fica tomado pela tensão e anseia pelos próximos atos. No filme de Polanski, a agonia da leitura pode ser sentida também através da excelente trilha sonora desenvolvida por Krzysztof Komeda, – responsável pelos temas horripilantes que podem ser ouvidos durante o filme.  Em cada momento de tensão, a música alcança tons grave e apavorantes, acentuando ainda mais o estranhamento do telespectador e valorizando ao máximo o trabalho dos atores e da equipe da filmagem.
Em relação ao posicionamento da câmera, ele é bastante variado durante as 2h16 de filme. Em alguns momentos, a câmera é fixa e com plano aberto, como quando há vários personagens em cena; em outros momentos, temos uma visão que acompanha o movimento dos personagens. Quando andam, a imagem vai seguindo a movimentação e em pouquíssimas cenas temos a visão de Rosemary Woodhouse exposta pelas lentes da câmera. Além disso, durante grande parte do filme, a câmera se move lentamente para cima e para baixo, dando uma sensação de maior realidade às cenas.
Como escreve Linda Hutcheon, em A teoria da adaptação (2006), “A adaptação pode ser descrita do seguinte modo: uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis. Um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação” (HUTCHEON, 2006, p. 30), ou seja, a adaptação é uma oportunidade para um diretor ou roteirista expor sua interpretação e utilizar de sua criatividade para dar vida a textos. Em O bebê de Rosemary, podemos ver nitidamente a paixão de Polanski pelo texto que inspirou o filme, ao transpor pequenos detalhes descritos na obra, ao transmitir a maneira como pressupunha ser cada personagem e ao suscitar no espectador sensações que o leitor vivencia durante o processo de leitura do texto-fonte. Essa resposta do espectador, parte da visão de Polanski sobre ao texto e de sua própria criatividade ao dar vida ao enredo e personagens criados por Levin.
O filme de Polanski é inigualável na história do cinema, e é possível perceber como ele quis manter sua obra próxima ao texto de Ira Levin, ao incluir detalhes importantes e essenciais da história em O bebê de Rosemary. A adaptação agrada não apenas aos fãs do livro, mas também aos críticos, tendo em vista que o filme foi avaliado com 97% de aprovação pelo Rotten Tomatoes, um dos portais de críticas de maior relevância dentre os conhecidos por toda a internet, e é considerado, até os dias de hoje, um dos maiores clássicos do cinema norte-americano e de todo o gênero de horror e suspense.
 

REFERÊNCIAS
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed.  Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.
LEVIN, Ira. O bebê de Rosemary. Trad. André Pereira da Costa. Edição brasileira. São Paulo: Manole, 2014.
ROSEMARY'S Baby. Direção de Roman Polanski. Estados Unidos da América: Paramount Pictures, 1968. (136 min.).

ADAPTAÇÃO DE OBRAS LITERÁRIAS PARA O CINEMA

 

Amanda Ferreira Cilião – Curso de Letras (5.º Período)

Programa de Iniciação Científica

Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE

Curitiba, Paraná, Brasil

Orientadora: Profa. Brunilda Reichmann, PhD

 

 
O cinema e a literatura são mídias que conversam entre si. Um livro pode ser visto como um ponto de partida para adaptação de um filme e ser considerada uma obra em si. Cada mídia tem suas características próprias. O filme não deve ser considerado cópia da obra literária, é do leitor e espectador o trabalho de aproximação.

Segundo Jean Epstein em O cinema e o diabo, a partir dos anos 80 leitores não são mais vistos como agentes passivos, mas como criadores de significado para o texto. Essa ideia pode ser aplicada também ao espectador. O texto só fala aos sentimentos através do filtro da razão. As imagens da tela limitam-se a fluir sobre o espírito da geometria para, em seguida, atingir o espírito de refinamento (EPSTEIN, 1983, p. 294).

As adaptações fílmicas estão muito mais presentes do que a maioria dos telespectadores acredita. Partindo do ponto que ler um livro e assistir um filme são duas experiências completamente diferentes, é comum que a história original não seja retratada integralmente e isso pode não agradar ao público leitor.

 

Na realidade um filme pode ter várias leituras, dependendo da sensibilidade do espectador, pois o filme admite metáforas e símbolos e é necessário o espectador entender mais do que apenas o conteúdo aparente da imagem para poder compreender todo o seu significado. (MARTIN, 2003, p. 92)

 

Partindo do pressuposto que o filme e o livro são mídias diferentes, respeitando esse aspecto, já é o primeiro passo para aceitar a nova obra. Mesmo sendo uma adaptação o filme é uma nova obra. Existem adaptações que não são bem aceitas pelo público e outras que são um verdadeiro sucesso. Romeu e Julieta (1996), dirigido por Baz Luhrmann, usa genialmente o texto original de Shakespeare, assim como Forrest Gump, O curioso caso de Benjamin Button, filmes diferentes dos livros, mas que conseguiram contar de forma magistral a história, contextualizar e emocionar tanto ou mais que o livro. Os filmes adaptados que são um sucesso levam os telespectadores que não leram o livro a procurá-lo pela ansiedade de saber mais sobre aquela história. O Senhor dos Anéis é um exemplo disso.

O filme O Senhor dos Anéis pode ser assistido como uma obra em si, sem ter lido os livros, pois é possível entender o contexto e a história assistindo os filmes. O mesmo pode ser dito de O Hobbit. Mesmo o filme sendo aclamado pela sua proximidade com a obra foram omitidos personagens e capítulos inteiros.

Mídias divergentes que embora dialoguem entre si, passam por um processo diferente de composição. Para escrever o roteiro de um filme adaptado, o escritor deve fazer uma imersão na obra fonte. É um processo longo e complexo e pode levar anos para ser finalizado. A insatisfação dos telespectadores vem do fato que nem toda obra pode ser adaptada e, além do mais, nem toda cena pode ser adaptada. No filme Adaptação (2002), dirigido por Spike Jonze, Nicolas Cage interpreta Charlie Kaufman o irmão gêmeo. Esse filme é um exemplo do processo e da imersão do roteirista na história.












 


Considerando que o filme é uma leitura que o produtor fez da obra, muitas vezes o espectador se decepciona, pois, o acervo cultural de cada indivíduo é diferente e as imagens e cenas não são concebidas da mesma forma por todos. Quando vemos um filme adaptado é a leitura particular do adaptador que deu origem ao roteiro.



Mesmo sendo uma prática habitual, não existe uma “receita” para escrever um roteiro que se transformará em um filme de sucesso. A aceitação do espectador é variada e a proximidade com o livro não garante a qualidade do filme adaptado.

 

 

REFERÊNCIAS

EPSTEIN, J. O cinema do diabo. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Trad. Marcelle Pithon. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.

MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasilisense, 2003.

terça-feira, 5 de novembro de 2019


RESENHANDO HANS GUMBRECHT

 

 

Verônica Daniel Kobs*

(Com a gentil colaboração de Hans Ulrich Gumbrecht**)

 

 

Nas últimas décadas, com os adventos do computador e da Internet, a crítica artístico-literária ganhou novo espaço. Tanto nos blogs quanto nos vlogs, o público especializado pode interagir, comentar e até mesmo comprar um domínio, para publicar periodicamente textos sobre filmes, séries e livros recém-lançados. Nesse sentido, o leitor/espectador assumiu o status de crítico. Sem dúvida, essa mudança gerou uma crise na crítica e nos veículos especializados. Por outro lado, isso representa uma conquista, garantindo o acesso público e irrestrito a todos os usuários da grande rede e estabelecendo um novo tipo de democratização, resultante não apenas da Internet, mas também do computador e do smartphone como hipermídias.

 Diante dessa reconfiguração, lembrei as palavras de Hans Gumbrecht, que, durante um minicurso ministrado na Uniandrade (Curitiba-PR), no dia 20 de setembro de 2019, anunciou o fim da crítica especializada, em um futuro próximo, pois, em geral, a crítica artístico-literária acaba por afastar público e obra, em vez de aproximá-los (GUMBRECHT, 2019a). Como pesquisadora da área de Letras e como autora e criadora do blog Interartes: artes & mídias, exercito a crítica com alguma frequência, nas resenhas e nos artigos científicos que publico. Além disso, como professora de Graduação e de Mestrado, também faço crítica nas aulas que ministro. Portanto, nesse momento do minicurso, comecei a pensar sobre meu desempenho, ao tentar aproximar o público e os alunos das obras que analiso. Felizmente, creio que, pelo feedback que recebo, o diagnóstico é positivo, na maioria das vezes. Porém, sei que às vezes caio no hermetismo, por eleger alguma complexidade, quando privilegio datas ou características de estilo.

Então, resolvi escrever um texto que revisitasse tanto o minicurso de Hans Gumbrecht quanto minha atuação (como crítica e como professora). Mais do que isso: antes mesmo de escrever, decidi enviar o texto a Hans Ulrich Gumbrecht por e-mail, para compartilhar algumas ideias e saber a opinião dele a respeito de minha reflexão. Depois de algum tempo, enviei esta resenha a ele, no dia 14 de outubro, e ele respondeu no mesmo dia, dizendo que leria o texto com prazer e que me escreveria novamente, em alguns dias. A partir disso, continuamos a trocar e-mails até o dia 30 de outubro, quando ele me enviou um feedback bastante atento e motivador. Portanto, é com base nesse diálogo com Hans Gumbrecht que finalizei este trabalho. Sem dúvida, os comentários do autor serviram para completar e aprofundar algumas questões que escolhi desenvolver aqui. Então, de certa forma, ele me motivou no início deste processo (com a fala dele, no evento de que participei), e também no fim, já na revisão desta resenha.

Pois bem... Meu primeiro intento, quando decidi escrever este texto, foi voltar ao meu passado docente, mais especificamente retomando materiais que usei quando ministrei uma oficina sobre crítica literária. Na ocasião, utilizei um texto de Sousa Dias, que dizia exatamente o que Gumbrecht citou, logo no início do minicurso. Segundo Dias, a função básica da crítica é: “Criar público. Promover o encontro possível entre a obra de arte e o(s) seu(s) público(s). Dar à obra o público que esta, de si, solicita, mas que, sem a mediação crítica, corre o risco de não encontrar” (DIAS, 2004). Depois de reler esse trecho, resolvi analisar com maior rigor meus textos recentes e os que estou escrevendo agora. De início, optei por asistir a algumas críticas publicadas nos canais do Youtube, para avaliar a linguagem e os temas privilegiados pelos críticos não especializados (mas que podem se tornar especialistas muito em breve, porque são, antes de tudo, fãs das obras que comentam). Com essa tarefa que dei a  mim mesma, acho possível retomar um pouco do equilíbrio perdido, na escrita de textos críticos. Em suma, trata-se de um exercício de alteridade e empatia. Como resultado, a análise me fez constatar que, atualmente, o leitor vira crítico e às vezes até autor, estreitando os laços com o escritor da obra original e com a obra em si. Aliás, nesse contexto, as fanfictions representam um ciclo completo, pois, reescrevendo ou continuando um livro, um filme ou uma série, os leitores/autores também atuam como críticos. Transitando por uma via de mão dupla, os autores de fanfiction desempenham dupla função: de consumidores e de produtores. Esse perfil diferenciado corresponde ao que hoje chamamos prosumer, neologismo que faz uso dos termos producer (produtor) e consumer (consumidor). O termo em inglês foi criado por Alvin Toffler, mas em português já é utilizada a forma prossumidor.

               Outra interferência decisiva de Gumbrecht foi a afirmação de que os pesquisadores e críticos não devem se restringir a aplicar teorias (GUMBRECHT, 2019a; GUMBRECHT, 2019b). Isso também me fez retomar o que eu costumava dizer para meus alunos de Graduação, entre 2001 e 2004, quando eu ministrava a disciplina de Metodologia de Ensino da Literatura. Aliás, o autor comentou sobre o nome dessa disciplina, do que tratarei mais adiante, neste texto. Por enquanto, cuidemos da não aplicação, que eu enfatizava aos alunos (futuros professores), a partir da leitura da “Introdução” de Italo Calvino à obra Por que ler os clássicos? Nesse texto, o autor italiano afirma que devemos fazer críticas sem modelos, nem informações prévias:
 

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. (CALVINO, 1993, p. 12)
 

Sem dúvida, o conselho de Italo Calvino nos ajuda a evitar o risco da reprodução de ideias de modo (in)consciente e sistemático, até porque essa consulta que alguns procuram fazer, antes de produzir algo próprio, pode sinalizar insegurança e, em certo sentido, revela aquele velho complexo de colônia, que mantém seus adeptos na zona de conforto da reprodução (e não da criação). Podemos complementar isso, retomando a referência que Ligia Chiappini faz a uma reflexão feita pelo professor Antonio Candido. Ela conta que Candido, em palestra comemorativa dos 40 anos de Teoria Literária, considerou um erro o fato de ele ter dado mais importância à Pós-Graduação do que à Graduação (CHIAPPINI; FLEISCHMANN, 2003, p. 168), como se tivesse negligenciado inconscientemente uma etapa importante na formação dos alunos, na qual a crítica e a pesquisa são treinadas, para se desenvolverem depois, nos níveis que competem à Pós-Graduação.

Depois do minicurso de Hans Gumbrecht, por meio do material de outro curso que estou fazendo, e que diz respeito ao ensino a distância e à formação de tutores para o Ensino Superior, tomei conhecimento da taxonomia de Bloom, publicada em 1956. A proposta relaciona alguns verbos às competências dos alunos, resultando em uma escala de desenvolvimento cognitivo. Dessa forma, foram estabelecidos seis níveis, em ordem progressiva: 1) conhecimento; 2) compreensão; 3) aplicação; 4) análise; 5) síntese; e 6) avaliação (BLOOM, 1956). Conforme Bloom, quando privilegiamos a aplicação ainda nos mantemos presos à base (se usarmos a pirâmide como modo figurativo de interpretar essa escala). Portanto, aplicar significa apenas reproduzir, como uma espécie de tentativa de comprovar a compreensão, obtida no nível 2 da cognição. É preciso ir além e, nesse sentido, pretendo, como crítica e como pesquisadora, oscilar entre os níveis 4 e 6, como modo de problematizar a posição superior da síntese. Para mim, a síntese, tal como a aplicação, apenas duplica o pensamento, sem possibilitar que o autor do resumo possa ir além do modelo dado pelo texto original.

Motivada por esse pensamento, em um dos meus trabalhos recentes sobre intermidialidade, tentei combinar o nível 6 — que prefiro chamar de criação, segundo Anderson (2001) — com o modelo de ensaio, justamente pela liberdade que experimentamos no ato de criar e na escrita de um ensaio (Mas, afinal, o que é um ensaio? “Um ensaio é um ensaio”, como definiu, de forma primorosa, uma ex-professora minha, respondendo à pergunta de um aluno, durante o mestrado que fiz, na UFPR, de 1998 a 2000). De fato, um ensaio não exige certezas, mas tentativas... Portanto, decidi propor uma tipologia para o gênero crossover, aproximando-o de conceitos alguns literários e usando essas influências para fazer as distinções entre uma fase e outra. O resultado foi positivo, pois a plateia recebeu bem minha proposta. Inclusive, dois pesquisadores da área sugeriram que eu publique o trabalho urgentemente, para, digamos, patentear a ideia.

Voltemos, agora, ao nome da disciplina Metodologia de Ensino da Literatura, já que Gumbrecht sugeriu uma alteração mínima, porém decisiva. De acordo com ele, a matéria deveria se chamar Metodologia de Ensino com Literatura (GUMBRECHT, 2019b). Enxerguei total lucidez nessa observação, que também fez ressoar textos, autores e eventos de diferentes épocas, na área de Letras. Há alguns anos, a PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) vem promovendo palestras que têm como tema A literatura contra o ódio. Em 13 de abril de 2018, o autor convidado para falar sobre o assunto foi o moçambicano Mia Couto. Mais recentemente, em 24 de setembro de 2019, o orador foi o italiano Nuccio Ordine. Sabemos que o realce ao aspecto social das artes não é algo novo. Entretanto, é salutar que isso seja retomado, de tempos em tempos, para combater algumas questões urgentes, que se refletem no comportamento e nas relações interpessoais. Além disso, na década anterior, a autora Nelly Novaes Coelho também deu destaque à função da literatura, ao propor que essa arte fosse considerada um “antídoto à robotização” (COELHO, 2007): “Na ‘aldeia global’ (o mundo sem fronteiras, monitorado pela imagem, som, velocidade, visualidade, virtualidade...), a literatura/leitura tem uma tarefa fundamental a desempenhar...” (COELHO, 2007, grifo no original). Em certo sentido, podemos relacionar esse raciocínio com aquilo que Gumbrecht afirma sobre o stimmung (ainda mais se considerarmos o sugestivo subtítulo da obra dele: “sobre um potencial oculto da literatura”), afinal a literatura rompe as barreiras de tempo e espaço, propiciando o que autor considera uma complexificação da imersão e da presença. Portanto, o deslocamento simbólico do leitor ativa a imaginação e oferece novas e diferentes perspectivas (GUMBRECHT, 2014b, p. 92-93).

Por fim, nesse caminho de retomadas, para tentar redefinir os rumos de minha própria atividade crítica, voltei às palavras imorredouras de Antonio Candido:

 

A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. (CANDIDO, 2019, grifo nosso)

 

            Talvez alguns leitores possam pensar no contrassenso deste texto que escrevo, já que, apesar de concordar com a não aplicação da teoria proposta por Gumbrecht (2019a; 2019b), não abri mão de citar diversos textos e autores de renome, na minha área de atuação. Entretanto, esse traço pode ser justificado de várias formas afinal: 1) meu texto foi uma reavaliação de minha atividade como crítica e isso me obrigou a revisitar autores e concepções que fizeram parte de minha formação acadêmica; 2) nessa formação, os princípios tradicionais sobrevivem, hoje, tanto no Ensino Superior quanto nos cursos de Pós-Graduação (isso significa que o texto acadêmico não prescinde dessa alternância, entre a voz do autor do artigo e as demais vozes, dos autores de base, que integram o chamado referencial teórico); 3) além disso, acredito que, para criarmos algo, precisamos experimentar todos os estágios anteriores, desde o conhecimento, passando pela aplicação, até chegarmos, enfim, à tão almejada criação. Portanto, a partir desta resenha do minicurso ministrado por Hans Gumbrecht, espero ter alcançado o objetivo que me motivou a escrever e a publicar este texto: incentivar a revisão da crítica (seja ela especializada ou não), para que possamos realçar, a um só tempo, a interação do público com as obras analisadas e nossa inegável capacidade de ir além, como criadores de conceitos e teorias, e não como meros repetidores.

Por fim, depois de muito pensar, discordei de Gumbrecht em um ponto apenas: acredito que a crítica especializada não vai morrer. Na primeira versão deste texto, afirmei que, enquanto existirem profissionais pesquisadores, sempre haverá reflexão e produção científica especializadas, convivendo em paz com a crítica não profissional, afinal o contraste e a diferença são essenciais para nos lembrar do equilíbrio necessário nessa atividade de mediação intelectual e cultural. Entretanto, Gumbrecht, depois de ter lido minha resenha, fez um comentário sobre isso, o qual traduzo aqui: “[...] em geral, os humanistas não têm pensado o suficiente sobre as funções que seu trabalho pode e deve cumprir fora das universidades. Uma mudança de atitude parece urgente aqui” (GUMBRECHT, 2019c, tradução nossa). Sob esse ponto de vista, concordo com o autor. Aliás, revisitei alguns textos dele sobre as Humanidades e os profissionais dessa área, depois que percebi que esse detalhe pontuado por Gumbrecht serviria para fechar meu texto de modo cíclico. Assim, neste final, permito-me voltar ao começo, quando refleti sobre a produção dos teóricos, que devem criar mais e reproduzir menos. A “mudança de atitude” a que Gumbrecht se refere diz respeito a esse protagonismo, que deve substituir a passividade. Com base em Humboldt, Gumbrecht menciona que: “As pessoas, nas universidades, devem produzir novas perguntas e mais problemas” (GUMBRECHT, 2014a, p. 123, tradução nossa). Mais adiante, no mesmo texto, o autor completa essa ideia, ressaltando que o “pensamento de risco” (GUMBRECHT, 2014a, p. 126-127, tradução nossa) é indispensável ao profissional da área de Humanas, pois só dessa forma podemos trabalhar “contra o esclerosamento das sociedades” (GUMBRECHT, 2014a, p. 128, tradução nossa). A partir desses aspectos, fica claro que não é necessária apenas uma mudança de postura do profissional de Humanas. Mais do que isso: é fundamental que o contexto sociopolítico seja adequado, desenvolvendo-se em sintonia com essa significativa alteração e garantindo a liberdade de pensamento e de criação.

No feedback que recebi de Hans Gumbrecht, várias coisas me chamaram a atenção: as respostas imediatas e sempre em tom acolhedor; a abertura ao diálogo, sempre com respeito maior às ideias do outro, e não às dele mesmo; o apoio dele para que eu publicasse o texto; e, claro, as três observações que ele fez sobre minha resenha. A primeira dizia respeito às Humanidades, tal como expliquei acima. A segunda pedia mais detalhes sobre a atividade crítica dos fãs de literatura, ao que respondi, aqui, com a inclusão de algumas linhas sobre as fanfictions e sobre o perfil do prossumidor. Quanto ao terceiro item, achei que não cabia uma revisão propriamente dita, mas, sim, um registro, para dar espaço e voz ao autor, como retribuição à gentileza e à humildade que ele dedicou a mim e ao meu trabalho, em nossa breve correspondência. Em um diálogo normal, já é comum entendermos as informações de um modo diferente, o qual, às vezes, não corresponde à intenção do autor. Porém, neste texto, a conversa não se fez ao vivo, pois trabalhei com as ideias de Gumbrecht a posteriori, com base na presença que a lembrança das palavras do autor me propiciava. Apenas no fim do processo eu compartilhei meu texto com ele. Por isso, achei importante transcrever a ressalva feita por Gumbrecht à questão da aplicação. Relendo esta resenha, percebi que a única relativização que fiz a esse tema apareceu neste trecho: “[...] os pesquisadores e críticos não devem se restringir a aplicar teorias”. Como leitor do relato de suas próprias palavras, Gumbrecht fez um comentário que resolvi transcrever aqui, como continuidade da reflexão: “[...], pareço ser mais cético do que você em relação à utilidade das teorias de ‘aplicação’ na crítica literária. Pelo contrário, acredito que elas têm seu próprio direito muitas vezes levando a questões filosóficas interessantes” (GUMBRECHT, 2019c, grifo no original, tradução nossa).  Dessa forma, Gumbrecht afirma a viabilidade e a importância de utilizarmos algumas aplicações, simultaneamente à criação de conceitos. Entretanto, para nossa cultura, tão afeita a reproduções e empréstimos, penso que é fundamental insistirmos na superação, que só é possível a partir de uma postura permanentemente questionadora e criativa, mas resultante de duas etapas primordias: a contemplação e a crítica.

 

REFERÊNCIAS

ANDERSON, L. W. et al. A taxonomy for learning, teaching and assessing: a revision of Bloom’s Taxonomy of Educational Objectives. Nova York: Addison Wesley Longman, 2001.

BLOOM, B. S. et al. Taxonomy of educational objectives. Vol. 1. New York: David Mckay, 1956.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CANDIDO, A. Direitos humanos e literatura. Disponível em:

<https://bibliaspa.org/wp-content/uploads/2014/09/direitos-humanos-e-literatura-por-antonio-candido.pdf>. Acesso em: 9 out. 2019.

CHIAPPINI, L.; FLEISCHMANN, U. Entrevista com Alfredo Bosi. Iberoamericana, v. III, n. 10, 2003, p. 155-170.

COELHO, N. N. Literatura: um olhar aberto para o mundo. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 2 jun. 2007.

DIAS, S. Crítica e arte: a função da crítica. Disponível em: <www.ciberkiosk.pt/ARTES/sousadias.htm>. Acesso em: 5 out. 2004.

GUMBRECHT, H. U. Leitores não-profissionais de literatura e seus desafios. Minicurso ministrado no XI Seminário de Pesquisa do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade, Curitiba, 20 set. 2019a.

_____. [Sem título]. Reunião do Grupo de Pesquisa em Teoria Literária e Crítica Cultural (do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade) com Hans Ulrich Gumbrecht, Curitiba, 20 set. 2019b.

_____. [Sem título]. Comunicação via e-mail entre Hans Ulrich Gumbrecht e Verônica Daniel Kobs, no período de 14 a 30 out. 2019c.

_____. ¿Una universidad futura sin Humanidades? [Versión en castellano de Aldo Mazzucchelli. El discurso original integra la conferencia dictada en el Keio Research Center for the Liberal Arts, Japón, 2007.] Inmediaciones de la comunicación, v. 9, n. 9, Montevideo, 2014a, p. 117-141.

_____.  Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2014b.

 

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* Verônica Daniel Kobs: Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade realizado na UFPR, em 2018. E-mail: veronica.kobs@fae.edu

 

** Hans Ulrich Gumbrecht: Escritor e crítico alemão. Professor de Literatura Comparada da Stanford University, em Palo Alto, Califórnia (EUA). Autor de obras traduzidas para mais de vinte idiomas. Doutor honoris causa em dez universidades, de diferentes países. No Brasil, algumas de suas publicações mais recentes são: Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir (2010), Graciosidade e estagnação: ensaios escolhidos (2012), Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura (2014) e Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea (2015).