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segunda-feira, 24 de junho de 2013

FAROESTE DE ONTEM E HOJE


Verônica Daniel Kobs*

 

Uma das músicas mais longas do rock nacional virou filme. Faroeste caboclo, escrita por Renato Russo, na década de 1970, e lançada em 1987, pela Legião urbana, no disco Que país é este 1978/1987, foi o ponto de partida para o roteiro do longa Faroeste caboclo. O filme brasileiro foi lançado em maio de 2013, com roteiro de Marcos Bernstein e Victor Atherino; direção de René Sampaio; e atuações de Fabrício Boliveira (João), Ísis Valverde (Maria Lúcia), Felipe Abib (Jeremias) e César Troncoso (Pablo).


 



João e Maria Lúcia, “com a Winchester 22”, e Jeremias, no filme Faroeste caboclo**
 
 
O desafio era adaptar para as telas a história da música de Renato Russo, conhecida pela sua extensão (são 160 versos cantados em nove minutos e três segundos de música), pela estrutura peculiar (apesar do tamanho, a música não tem refrão) e pelo enredo denso e trágico. Deu certo. Com cortes, inversões e acréscimos comuns a qualquer adaptação, o filme cria um clima de suspense que se mantém do início ao fim, mesmo com o desfecho trágico já anunciado pela letra da música. É certo que os fãs de Renato Russo e da Legião urbana esperavam reconhecer, na tela, traços da música que conta a história de João de Santo Cristo e Maria Lúcia. Pois está quase tudo lá (e, nesta parte, o spoiler é necessário): o passado de criminalidade de João e o desejo de vingança pela morte do pai; a plantação de maconha, em sociedade com Pablo; “a violência e o estupro”; “o senhor de alta classe com dinheiro na mão”; o amor por Maria Lúcia; e a rixa com Jeremias. A única ausência é a do boiadeiro, que “tinha uma passagem e ia perder a viagem/ Mas João foi lhe salvar(LEGIÃO, 1987). Na música, o encontro dos dois é o que desencadeia a ida de Santo Cristo para Brasília, mas, no filme, houve motivos de sobra para o corte. O principal deles foi a condensação da história, que ficou com menos deslocamento e menos personagens, o que rendeu pontos no adensamento da trama.
No filme, pouca coisa não fazia parte da letra. Porém, o roteiro apresenta algumas modificações, todas adequadas e bastante pertinentes. O “senhor de alta classe”, no filme, corresponde ao senador, pai de Maria Lúcia, que oferece dinheiro a João, para tentar afastá-lo da filha. Além disso, no filme, João é surrado e violentado pela turma de Jeremias. Essas alterações são fundamentais, pois ampliam o triângulo amoroso entre João, Maria Lúcia e Jeremias, acirram a disputa entre os dois rivais e conferem mais unidade à história, porque fatos que, na música, apareciam isolados, no filme são relacionados aos personagens principais.
A ordem dos acontecimentos da história contada na música Faroeste caboclo também sofreu adaptações. No longa, Santo Cristo conhece Maria Lúcia logo no início, antes de começar a cultivar maconha, antes de sofrer violência sexual e também antes de se tornar um “bandido/ Destemido e temido no Distrito Federal” (LEGIÃO, 1987). A justificativa para isso é bastante plausível. Não só Maria Lúcia aparece, no filme, desde o início, mas também Jeremias. Ele sempre desejou a garota e controlava o tráfico da região. Com a chegada de João, ele perde a chance de conquistar a mulher que ama e perde poder e dinheiro, já que a droga oferecida por Pablo e Santo Cristo era de melhor qualidade. Aliás, esses dois motivos detonam todos os conflitos entre os personagens e ganharam como suporte uma espécie de “continuidade” dada pelos roteiristas à música de Renato Russo. Como música e cinema se opõem, no que se refere ao que é abstrato e concreto, o filme precisava preencher o espaço daquilo que não foi dito no texto. Na música, depois de um embate com o rival, João fica um tempo longe de casa e, quando volta, descobre Maria Lúcia casada com Jeremias e grávida. No filme, a ausência de Santo Cristo e até mesmo o casamento inusitado são explicados: João foi preso a mando de Jeremias, sofre violência constante na cadeia e, por isso, Maria Lúcia faz um acordo com Jeremias — o casamento em troca da segurança e da vida de João.
Passando agora para elementos extra-textuais, o faroeste da década de 1970 está na música e também no filme e focaliza momentos decisivos, marcas da revolução da época, no país e em Brasília, principalmente, como as festas punk e a “Roconha”. Revolução e liberdade dão o tom para a rebeldia, a corrupção, a diferença de classes e a luta pelo poder, no tráfico. Aliás, essas características são próprias do faroeste, gênero baseado no western americano, pelos significados inerentes a esse tipo de filme: “conquista de poder e de território” e, segundo Glauber Rocha, também “transformação” e a representação da “marcha da civilização” (ROCHA, 2011). A reedição da música de Renato Russo hoje, em forma de filme, adapta-se perfeitamente ao contexto contemporâneo. Nossa época é marcada pelo crescimento da violência e da criminalidade, que reforçam e refletem o individualismo e os duelos diários para resolver todo e qualquer tipo de conflito. Por isso, a história contada na música Faroeste caboclo serve de alegoria aos conflitos experimentados e redivivos, em plena era da globalização.
Faroeste caboclo (2013) exacerba a disputa de classe e de cor que fazia parte dos versos de Renato Russo: “Não entendia como a vida funcionava / Discriminação por causa da sua classe e sua cor” (LEGIÃO, 1987). Isso ocorre, pelas reações que a relação entre Maria Lúcia e João de Santo Cristo provoca em Jeremias e no senador (personagem de Marcos Paulo, pai de Maria Lúcia). Além disso, os duelos entre João e Jeremias são vários (em festas, encontros casuais, na “Roconha” e no final da história). A violência das cenas que opõem João de Santo Cristo e Jeremias é espetacular. Inversamente, os cenários e o figurino são simples, justamente para não ofuscarem o tom do filme e os conflitos que ele apresenta. A escolha de contrabalançar as coisas é perfeita, sinal de que Faroeste caboclo é mais conteúdo do que ritmo; mais ideologia do que forma.
No que diz respeito aos grandes duelos do filme, o primeiro, realizado na “Roconha”, impressiona pela artimanha de Jeremias, pelo suspense e pela grandiosidade das cenas. Jeremias faz João saber do evento e o rival resolve aparecer. Chegando lá, Santo Cristo atrai Jeremias para a mata e o surpreende com um grupo armado, comandado por Pablo. Mas a maior surpresa estava por vir: Jeremias também mostra que veio armado e chama seu bando, liderado por seu amigo, um policial corrupto (personagem de Antônio Calloni). Com os dois inimigos frente a frente, o faroeste (um épico urbano) se concretiza.
 
 
Facções rivais do filme Faroeste caboclo, sob as lideranças de Jeremias (acima) e de Pablo (abaixo)**
 
No duelo final, o que impressiona é a atitude desmedida dos personagens: João marca o encontro, escrevendo o endereço na mesinha da sala de Jeremias, com a cocaína que roubou do rival; Maria Lúcia vai até lá, levando a Winchester 22, para tentar impedir o pior; e Jeremias atira não só no inimigo, mas também em sua mulher, grávida.
 

Cena do duelo final, no filme Faroeste caboclo**

No filme, o final trágico e sangrento faz jus à história da música, mas sem a plateia imaginada por Renato Russo: “Sentindo o sangue na garganta,/ João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir/ E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e / A gente da TV que filmava tudo ali” (LEGIÃO, 1987).  No duelo do filme, os espectadores são o próprio público, que se impressiona com a ação violenta, com as mortes e com os motivos da tragédia. O espetáculo da letra da música (“— Se a via-crucis virou circo, estou aqui” (LEGIÃO, 1987)) se fez de outra forma, nas salas de cinema, quando a música de Renato Russo de abstrata se fez concreta.
 
*Doutora em Letras e Professora de Imagem e Literatura do Curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade – PR
 
** Imagens disponíveis em: www.google.com.br
 
 





quarta-feira, 19 de junho de 2013

Dom Casmurro e os discos Voadores




MACHADO DE ASSIS

& LÚCIOMANFREDI

 
DOM CASMURRO

E OS DISCOS VOADORES

 



O título do livro publicado pela editora Lua de Papel, Dom Casmurro e os discos voadores, destina-se, evidentemente, a chamar a atenção para a reescritura de obras canônicas como combinações de gêneros de literatura de massa, na série Clássicos Fantásticos. Três outros títulos foram publicados em 2010, como parte do projeto da editora de “recriar nossas obras mais festejadas [...] com elementos da ficção moderna”: Senhora e a bruxa, A escrava Isaura e o vampiro e O alienista caçador de mutantes, assinados, respectivamente, por Angélica Lopes, Jovane Nunes e Natália Klein.

O estudo de Dom Casmurro e os discos voadores foi assunto do trabalho que apresentamos em um dos simpósios do 25º Congresso da LASA (Latin American Studies Association), em Washington, no final de maio. Foi gratificante verificar o interesse da platéia, formada de estadunidenses que se dedicam ao estudo da literatura dos diversos países da América Latina ─ particularmente os de língua espanhola ─ e de estudiosos falantes de espanhol, pela literatura brasileira. Houve curiosidade em saber detalhes sobre os demais romances que compõem a série.

Nosso trabalho partiu do exame da tendência mundial de associar obras consagradas com gêneros tornados populares pela mídia ─ deflagrada pela publicação de Pride and Prejudice and Zombies, por Seth Grahame-Smith ─ para as questões de autoria e da classificação dos gêneros utilizados em tais reescrituras.

A indicação de coautoria estampada em evidência na capa das obras mencionadas ─ Machado de Assis & Lúcio Manfredi; José de Alencar & Angélica Lopes ─ suscita problemas de teoria literária, por fugir aos parâmetros da adaptação e da paródia.

Para examinar a propriedade de colocar as diferentes utilizações do sobrenatural sob o guarda-chuva comum da ficção científica, reportamo-nos aos estudos de Eric Rabkin sobre o fantástico. Rabkin aponta que o termo ficção cientifica “vem sendo forçado a prestar os mais variados serviços”: da viagem a Laputa em Viagens de Gulliver (1726) e do Icaromenippus de Luciano de Samosata (b.120 A.D.) à série Guerra nas estrelas. Sua observação seguinte põe em relevo a flexibilidade do gênero e as dificuldades de categorização: “E há outros trabalhos [...] que se esgueiram para dentro e para fora do gênero sem que ninguém note”. (NOTA)

As dificuldades aumentam claramente na atual sociedade de comunicação de massa, em que a mídia visual tem papel preponderante e fornece as mais esdrúxulas combinações permitidas pela tecnologia.

 

MAIL MARQUES DE AZEVEDO

 

NOTA. RABKIN, E. The Fantastic in Literature. Princeton: Princeton Un, Press, 1977.p. 118-119  Tradução da autora

 

 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

TEORIA DA NARRATIVA: LEITE DERRAMADO E SUAS DIVERSAS ABORDAGENS


Luiz  Zanotti

 

Na próxima semana os alunos da disciplina Teorias da narrativa irão apresentar no CIEL (UEPG), diversos ensaios no Grupo de Trabalho “Leite derramado e suas diversas abordagens”. Estes ensaios mostram a diversidade de perspectivas teóricas possíveis de serem assumidas para a análise literária do romance de Chico Buarque. As diversas possibilidades da interpretação de uma obra literária estão baseadas em processos tais como a investigação do seu estrato linguístico e discursivo, a relação do texto com a história, aspectos sociais, psicológicos e políticos envolvidos, e mais recentemente, a interação do leitor com a obra, os estudos culturais e de gênero. Para Marisa Lajolo, estas diferentes perspectivas assumidas pelos estudos da literatura frente ao seu objeto muitas vezes coexistem e hoje em dia quase sempre se sobrepõe. Desta forma, dentro do panorama perspectivista contemporâneo, o Grupo de Trabalho buscará construir um panorama interpretativo da narrativa do protagonista Eulálio Montenegro d’Assumpção, um homem centenário, que faz um relato da sua existência através da derrocada de uma família tradicional carioca desde a Monarquia até os tempos atuais através da reflexão sobre as manifestações críticas e formulações teóricas suscitadas pela narrativa ficcional.

A minha contribuição está contida na problematização se o romance objeto deste GT é ou não um romance histórico, conceito construído pelo filósofo marxista George Lukács e que possui uma série de características, entre as quais a descrição da transformação da vida popular através de um conjunto de tipos humanos característicos. No entanto, para Seymour Menton (2010), a designação “histórica” deve ser somente utilizada apenas para os romances que tem a sua trama num passado que não foi experimentado diretamente pelo escritor. Desta forma, seria correto considerar Leite Derramado como um romance histórico, uma vez que parte da narrativa se passa durante um período contemporâneo ao autor?

Ainda dentro de uma linha que privilegia a História, “Relato de uma saga familiar: uma breve reflexão” de Syonara Fernandes aproveita a narrativa da crise brasileira e a derrocada da aristocracia nos últimos dois séculos para uma aproximação ao movimento Novo Historicismo e baseada no pensamento de Stephan Greenblatt,  busca compreender a obra de Chico Buarque a partir do contexto particular da cultura e da época em que ocorreu a narrativa.

A crítica feminista aparece no ensaio que Ana Rosa Sana apresenta do retrato da mulher e seu papel na sociedade no início do século XX a partir da visão de Chico Buarque. No romance Leite Derramado esta imagem feminina aparece repleta de preconceitos e ideias desarticuladas do ancião com relação à esposa, a partir de determinadas convenções estéticas da época, que segundo Showater, interferem na prevalência do subjugo das mulheres pelos homens.

Carlos Alberto Alves  analisa a obra de Chico Buarque de Holanda sob uma perspectiva psicanalítica.  Embora a psicanálise tenha fins clínicos e terapêuticos, que diferem da literatura, Carlos afirma que ela se processa pela interpretação do discurso, quer seja oral - o mais comum na clínica – ou até mesmo escrito. Assim, dentro da imensa gama da teoria psicanalítica, é problematizado principalmente o conceito de livre associação elaborado por Sigmund Freud através de um diálogo entre a teoria psicanalítica e o texto literário.

A carnavalização de Leite Derramado está no centro do ensaio de Patrícia Penkal de Castro que identifica esta característica conceituada nos estudos de Bakhtin (2005). A carnavalização aparece como uma maneira de mostrar o mundo por intermédio da inversão de costumes e valores, ou seja, a tradição de uma sociedade é apresentada pelo chamado “mundo às avessas” que acarreta a eliminação de toda a distância entre os homens ocasionando o livre contato familiar entre eles, separados na vida diária por barreiras hierárquicas.

Dentro das últimas abordagens teóricas, Renata Vargas traz a teoria dos efeitos conceituada pelo teórico Wolfgang Iser (1996). A teoria dos efeitos analisa a interação entre o texto e o leitor, sendo que o texto ganha existência no momento da leitura. Neste sentido, Iser entende a recepção como noção estética que abrange um duplo sentido: o efeito produzido pela obra e a maneira como esta é recebida pelo público.

Leandro Amaral trabalha uma abordagem estruturada nos Estudos culturais,  visando a reflexão sobre a dignidade da pessoa humana através de uma análise voltada a algumas situações apresentadas na obra em questão, bem como uma possível compreensão das inúmeras relações entre indivíduos. Finalmente, Winston Mello trabalha a desconstrução de Jacques Derrida, um passo adiante em relação ao estruturalismo “clássico”, resultado de um corte epistemológico na análise da estrutura através da inserção de um elemento temporal, a “differance”, no entendimento do constructo supostamente objetivo e não-histórico que seria o texto.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Cláudio Manuel da Costa em três momentos



Prof. Dra. Edna Polese

A obra de Cláudio Manuel da Costa, poeta árcade, morto em circunstâncias misteriosas por seu envolvimento com os Inconfidentes, demonstra a tentativa de se cantar um Brasil em formação. Por um lado, a poesia épica, Vila Rica, de 1773: envolta em acontecimentos históricos, conta a conquista do território brasileiro, mais especificamente as vilas de Minas Gerais, a busca pelo ouro e a instalação de um projeto civilizatório buscando seus moldes na mentalidade europeia que se embasava na Razão. Por outro lado, a poesia bucólica “brigava” com uma paisagem selvagem e ainda indomável frente a uma imagem herdada da paisagem idealiza e europeia. A figura do poeta ganha contrastes diferentes em decorrência de seu envolvimento com a Inconfidência Mineira que o leva a prisão onde é encontrado morto. Era o ano de 1789.

Em 1953, Cecília Meireles publica aquela que será considerada por muitos sua obra-prima: Romanceiro da Inconfidência. Fruto de um exaustivo trabalho de pesquisa histórica, a obra retoma o momento histórico mais importante da história de Minas Gerais e uma das mais destacadas no Brasil. Desfila no seu poema uma gama de personagens, reais e fictícios, que sofrem a consequência dos fatos históricos. O poema é inspirado, na forma, nos romances populares de origem ibérica, o romanceiro. No “Romance XLIX ou de Cláudio Manuel da Costa”, Cecília Meireles destaca a morte do poeta árcade:

“Que fugisse, que fugisse...
- bem lhe dissera o embuçado! –
que não tardava a ser preso,
que já estava condenado,
que, os papéis, queimasse-os todos...
Vede agora o resultado:
mais do que preso, está morto,
numa estante reclinado,
e com o pescoço metido
num nó de atilho encarnado.
(...)
Entre esta porta e esta ponte,
Fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo,
em fábula arrebatado,
como árcade ultramarino
em mil amores enleado.

Retomando os acontecimentos históricos que envolveram a Inconfidência, seus atores e consequências, Cecília Meireles apresenta-nos uma obra panorâmica que retrata, em momentos específicos, a vida e morte desses personagens. Claudio Manuel da Costa sofre de maneira obscura as consequências do seu envolvimento político fazendo um contraste entre o idealismo de sua poesia e o realismo dos acontecimentos que o cercava. O poeta árcade é um dos exemplos de perseguição à intelectualidade à época e isso fica bem destacada no primeiro trecho do poema de Cecília Meireles em que uma voz anônima aconselha o poeta a se calar, a fugir, a destruir a sua obra em prol de uma possível sobrevivência.

O diário-ficcional da autoria de Silviano Santigo, Em liberdade, publicado em 1981, retrata ao molde de um texto confessional, a suposta continuidade da obra de Graciliano Ramos Memórias do Cárcere. Relatos da família de Graciliano testemunham a ideia de que o autor pretendia escrever algo renovador sobre a sua vida após ser libertado da prisão. Graciliano Ramos foi perseguido pelo governo de Getúlio Vargas nos anos de 1930. Escreve uma obra memorialística que retrata sua experiência na prisão e não consegue se livrar desse aspecto amargo de sua vida. Silviano Santigo inspira-se nesse desejo do autor e o realiza pela via ficcional. O Graciliano criado por Silviano retoma, aos poucos, o prazer pela vida, de maneira lenta e dolorosa. Num desses momentos, na obra, personagem de Graciliano debruça-se sobre a vida de Claudio Manuel da Costa observando a proximidade das circunstâncias políticas que os levaram à prisão: Claudio por conta da Inconfidência, Graciliano por conta das questões políticas que ambientavam o momento do governo Getuliano.

Essa proximidade entre Graciliano e Claudio Manuel reforça o tema sobre a perseguição política sofrida por vários de nossos escritores. Ainda sobre o romance, escrito na década de 80, há a sombra do período da ditadura e a imagem de Claudio Manuel da Costa, supostamente morto e enforcado na prisão, é aproximada à de Vladimir Herzog, jornalista que foi assassinado no ano de 1975. O fato da fotografia apresentada pelo governo demonstrar a impossibilidade do suicídio suscita revolta e questionamentos.

Assim, o poema de Cecília Meireles e a obra de Silviano Santiago retomam momentos sensíveis da história política do Brasil destacando figuras do mundo intelectual que sofreram de maneira direta e violenta as consequências desses momentos. A literatura passa a ser também a possibilidade memorialística e retoma o tema da perseguição intelectual sob formatos e tempos diferentes.