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segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Excerto do relatório final do projeto de pós-doutorado A PÓS-COLONIALIDADE NA LITERATURA INDIANA EM LÍNGUA INGLESA DO SÉCULO XXI, NA VISÃO DE RUKMINI BHAYA NAIR.

Apresentado ao Programa de Pós-Doutorado da FFLCH USP, em 30 de setembro de 2018.

Orientadora: Profa. Dra. Laura Patrícia Zuntini de Izarra
 

Agradecimento especial pelo apoio recebido à

Direção da UNIANDRADE, na pessoa de seu

 Reitor Professor José Campos de Andrade Filho,

 à Coordenação e ao Corpo Docente do

 Curso de Mestrado em Teoria Literária.



RUKMINI BHAYA NAIR
 

 
             Insuficientemente versada na literatura indiana em língua inglesa, após breves pesquisas sobre Salman Rushdie e V.S. Naipaul, encontramos em Rukmini Bhaya Nair, poeta, historiadora cultural, filósofa da linguagem e crítica literária indiana, guia dotada de discernimento para deslindar a complexidade da cultura e da produção literária do subcontinente no século XXI. Sua conferência −The Counterfactual Course of Literature: India as an Imaginative Space in the Writings of José Saramago (2015), na UNESP de São José do Rio Preto, pôs em evidência o conhecimento profundo da pesquisadora na ciência da literatura e a sensibilidade artística da escritora. A razão de ser central da ficção, argumentou a conferencista, é experimentar com as convenções e construtos de “dizer a verdade”. Os escritores pós-coloniais, em particular, tentam vigorosamente subverter as verdades que lhes são apresentadas pela história convencional. Nesse aspecto, gêneros literários, como o romance pós-colonial, oferecem relatos desafiadores que redefinem contornos e vêm lançar luz sobre verdades ocultas nas entrelinhas da história.
 
Rukmini Bhaya Nair é um desses escritores: utiliza-se da língua inglesa para escrever poesia e ficção narrativa, além de ensaios sobre teorias da literatura e da linguagem; para ministrar aulas e proferir palestras no circuito acadêmico global. Seu romance Mad Girl’s Love Song, caso exemplar das contradições que assombram o sujeito pós-colonial, mergulha a fundo na herança traumática do colonialismo. Na coletânea de ensaios Lying on the postcolonial couch. The Idea of Indifference, discute com clareza o reflexo de problemas sociopolíticos e culturais na literatura que se produz na Índia pós-independência. Vê a pós-colonialidade como uma condição psíquica hereditária, cujo tratamento requer o retorno às memórias enterradas do trauma colonial: “A pós-colonialidade”, afirma, “aguarda ser relegada ao esquecimento. Nesse sentido, como todo fenômeno histórico, seu destino é ser confiada à memória, em seguida a instituições e daí ao esquecimento” (NAIR, 2002, p. xi). É tarefa da literatura: recuperar a verdade do dito. 
Com o objetivo de compreender a perspectiva interna de Nair sobre colonialismo, como ilustrativa daquela do escritor pós-colonial indiano radicado na própria terra, analisei sua visão do papel da literatura na Índia de hoje, veiculada em seus ensaios. que cobrem questões diversas: a escrita da história do subcontinente indiano, da perspectiva subalternista; a absoluta necessidade do conhecimento entre os indianos da herança pesada do colonialismo em seu próprio território e no de outros povos colonizados; e a luta contra os traços perniciosos da indiferença colonial em relação aos governados, que prevalece nas instituições governamentais da Índia do século XXI.
Ranajit Guha, um dos fundadores dos Subaltern Studies, argumenta que os “instrumentos da historiografia convencional focalizam grandes eventos e instituições do passado . . . uma tradição que tende a ignorar os pequenos dramas e detalhes da existência social, especialmente nas camadas mais baixas” (GUHA, citado em GOPAL, 2004, p. 139). Um dos meios de resgatar tais pequenos dramas, conforme demonstra Bhaya Nair no ensaio “O pedigree do corcel branco. Pós-colonialidade e História Literária”, seria estabelecer paralelos entre a visão de escritores contemporâneos sobre as multidões anônimas que povoam sua obra de ficção. É mais que evidente a intertextualidade entre os romances Kim, do escritor anglo-indiano Rudyard Kipling e Gora, do indiano brâmane Rabindranath Tagore, embora nenhum dos autores faça referência sequer à existência de seu contemporâneo.
            Embora a Índia fosse, na época das primeiras tentativas de intrusão dos ingleses, uma civilização mais desenvolvida em todos os aspectos que a europeia, o inglês viria a tornar-se a língua oficial da intelectualidade indiana, não apenas em decorrência da força militar do colonizador, mas de barreiras linguísticas internas. Mesmo depois da independência, em 1947, membros das classes mais elevadas, órgãos governamentais e alguns escritores continuam a utilizar-se da língua inglesa como instrumento de comunicação.
 É ilustrativa a publicação em 1997, em comemoração ao cinquentenário da independência, de The Vintage Book of Indian Writing, antologia de contos de autores indianos, escritos em inglês, editada por Salman Rushdie e Elizabeth West. A antologia foi recebida na Índia por críticos e escritores indianos com protestos de indignação. Provocou revolta, especialmente, a afirmativa de Rushdie de que a escrita em inglês, particularmente em prosa, produzida por autores indianos nos últimos cinquenta anos é “não apenas um corpo de produção literária mais forte e importante que a maior parte do que se produziu nas 16 ‘línguas oficiais’ da Índia,” mas representa “a mais valiosa contribuição feita até aqui pela Índia para o mundo dos livros.” Para Rushdie, mesmo que a escrita indo-anglicana seja em parte produto das forças do mercado ocidental, é também sinal de criatividade literária e, por extensão, de saúde cultural (RUSHDIE; WEST, 1997, p. x).
U.R. Ananthamurty, importante romancista em língua kannada, declarou-se chocado de que um escritor criativo como Rushdie falasse com tanta arrogância. “Nenhum escritor indiano em nenhuma das línguas pode ter a pretensão de saber o que está acontecendo nas outras línguas indianas. Rushdie sequer vive na Índia. Como é que pode fazer julgamento tão disparatado?” (ANANTHAMURTY, citado em HUGGAN, 2001, p. 64).
A análise que Rukmini Bhaya Nair faz do episódio ilustra as múltiplas vertentes de uma questão complexa. Admiradora incondicional de Salman Rushdie – pertencente ela mesma à geração a que denomina pós-Midnight’s Children Bhaya Nair examina com isenção as reações favoráveis e desfavoráveis às declarações provocadoras de Rushdie.
É necessário voltarmos, a princípio, à ideia de indiferença, subtítulo da coletânea de ensaios Lying on the Postcolonial Couch, enfocados neste trabalho. Indiferença é o nome que a autora atribui à violência sem rosto que domina o período do Raj (1836-1947) que iniciou e sustenta o mito de uma nação indiana monolítica. Indiferença seria, então, a tentativa das instituições do governo colonial britânico de apagar diferenças de estilo, opinião e cultura na área geográfica do subcontinente indiano. Facilitava a governabilidade considerar como um único país o que era na realidade um conglomerado cultural frouxo, premissa que Nehru, Patel, Gandhi e outros internalizaram a fundo na era da independência pós-1947. Ironicamente, observa Nair, para adotar o aparelho burocrático britânico, os heróis fundadores adotaram também a política de considerar uma Índia diversificada como um país único. “Os mais caros objetivos utópicos da recém-independente nação indiana foram, assim, articulados e administrados através da visão homogeneizante imposta por seus patrões coloniais” (NAIR, 2002, p. 226).
Na euforia da construção de uma nação independente, a concepção utópica de uma Índia una prevaleceu no período de 1947 até 1967, quando foi abalada por uma série de disputas sangrentas entre grupos fundamentalistas religiosos, particularmente hindus e muçulmanos, que puseram em xeque a utopia nehruviana.
O cronista mais relevante dessas transições da condição de nação do sonho para a vigilância seria Salman Rushdie, “um líder alegorista nacional” (...) “Sempre sincero no que diz respeito a seu papel histórico, por exemplo, declara abertamente sua posição como alguém que representa toda a diáspora indiana” (NAIR, 2012, p. 227).
Somos indianos, mas existe redefinição. A Índia tem de admitir agora que há diferentes maneiras de ser indiano, que não têm a ver necessariamente com estar enraizado na Índia. É maravilhoso e excitante perceber isso. É uma espécie de percepção libertadora. É uma espécie de coisa nova. (India Today) (RUSHDIE, citado em NAIR, 2012, p. 227)

O esforço corajoso de Rushdie para mudar modos rígidos de pensar e agir, no entanto, não é aceita por quem preferiria não ter suas práticas culturais tradicionais assaltadas. Causou celeuma internacional a fatwa declarada contra Rushdie pelos aiatolás iranianos, que o condenaram à morte em virtude das blasfêmias contra o Alcorão, nos ficcionais Versos satânicos. Diante desse embate, Nair se pergunta: “Podemos finalmente chegar a alguma conclusão sobre qual é o direito fundamental – o direito de falar ou o direito de censurar?” Rushdie parece ter um gênio todo especial para fazer com que seus livros sejam censurados, banidos ou queimados ou, simplesmente, para causar polêmicas, a exemplo das reações contrárias suscitadas pela coletânea comemorativa. Como diz Rukmini,
 
Rushdie representa “confusão” no inconsciente coletivo da nação. Aquele movimento espasmódico mental, semelhante ao do joelho, com que respondemos cada vez que Rushdie bate habilmente em alguma superfície saliente é evidência disso. Rushdie está, por assim dizer, em nossos ossos, ou de qualquer maneira, possui conhecimento acurado e invejável da anatomia do subcontinente. (2002, p. 238)
 
Rukmini vê como saudável a preocupação constante de Rushdie, como cidadão indiano da diáspora, com os rumos da política na Índia e o crescimento da intolerância no país. Diante do sucesso e repercussão ampla da narrativa de ficção de Rushdie, a organização da coletânea tem importância menor. Tanto O último suspiro do mouro como The Ground beneath her Feet, romances de Rushdie que registram a maioridade da Índia moderna, constituem-se em elegias para o passado de sonho neruhviano.  A coletânea é algo menor, “sua Comédia dos enganos, não o seu Lear. Por que, então, damos tanta importância a este mero esvoaçar de Rushdie?” (NAIR, 2002, p. 238)
A gramática do pós-colonial
A gramática do pós-colonial, afirma Bhaya Nair, é revelada de maneira muito mais interessante por meio dos textos literários. Isso porque a literatura, por sua própria natureza nos traz “universos, personagens, histórias e geografias ‘contrafactuais’ que por definição, não existem nos cenários observáveis ao nosso redor, ou os alteram de modos sutis e significativos” (NAIR, 2016).
Na perspectiva pós-colonial, a literatura pode ser vista como uma espécie de sub-história, pois trabalha com experiências não diretamente acessíveis aos historiadores, mas importantes para alguns tipos de registro histórico. A diferença está em que a literatura exige a capacidade de ler nas entrelinhas. Coerentemente, a historiografia subalternista se utiliza das ferramentas da narratologia desenvolvidas na linguística e nos estudos literários: análise de enredo, personagem, linguagem, autoridade, voz e tempo
No ensaio “O pedigree do corcel branco”, Nair propõe respostas para a questão. Um modo de recuperar a história das multidões anônimas da Índia, ignoradas pela história oficial, sua subjetividade não registrada, seria o estudo das estratégias de representação de romances contemporâneos como Kim, o clássico de Rudyard Kipling e Gora, de Rabindranath Tagore.
Embora de importância relativa, são notáveis os paralelos entre a história de vida dos dois autores. Ambos nasceram em famílias burguesas em metrópoles indianas e tiveram trajetórias de vida semelhantes: Tagore (1861-1941) em Calcutá e Kipling (1865-1936) em Bombay. Kipling, evidentemente, é identificado com o apogeu do império, enquanto o tempo de vida de Tagore é quase equivalente ao do domínio imperial britânico na Índia (1858-1947). Foram agraciados com o Nobel de literatura, com poucos anos de diferença, Kipling em 1907 e Tagore em 1913. Rukmini enfatiza que existe pouquíssimo nas respectivas biografias oficiais indicando que um sabia da existência do outro, porém as obras-primas dos dois autores escolhem curiosamente o mesmo motivo: enjeitados irlandeses criados como indianos.
O herói de Kipling, Kim, o menino “dos bazares quentes e cheios de gente .... [onde se mistura] a pressão de todas as raças da Índia Superior” é uma metonímia da multidão anônima, que ele conhece muito bem.
De qualquer maneira, a leitura do romance de Kipling traça um retrato vivo dos tipos com quem Kim convive em sua existência errante, alimentando-se com os mendigos, esgueirando-se por vielas escuras e correndo pelos telhados. Disse-se dele que é o melhor romance sobre a Índia − escrito por um inglês. O julgamento irônico e paradoxal estende-se a Gora, visto como o melhor romance nacionalista, escrito por um ardente antinacionalista, conforme enfatizado por Bhaya Nair.
Embora tenha imenso orgulho do pai, soldado de um regimento irlandês do exército britânico, repete-se em Kim o consórcio com figuras paternas – seu mentor inglês nas intricadas manobras de espionagem, e Babhu, o monge.
Gora, em contraste, ignora sua verdadeira origem e acredita que o hinduísmo tradicional é a resposta ao sofrimento das massas subjugadas, sem perceber que o sistema de castas é tão discriminatório quanto o domínio estrangeiro. O verdadeiro adversário de Gora, afirma Bhaya Nair, é a critica racista da cultura indiana pelos colonialistas, atitude que é imitada pelas classes altas da sociedade indiana na relação com os estratos sociais inferiores. Muitos dos assuntos discutidos em Gora – população, pobreza rural, o sistema de castas, divisões nas comunidades, responsabilidade educacional, a relação com o pensamento ocidental – constituem até hoje assuntos polêmicos da política indiana. São fantasmas aparentemente vencidos numa democracia moderna. A pergunta de Rukmini, ainda em “O pedigree ...” faz-nos pensar:
De que outra maneira a não ser pelos caminhos da ficção poderia um membro das classes dominantes − o termo se aplica tanto a Kipling como a Tagore  − conseguir alcançar os fantasmas vencidos que, como membro honroso da comunidade, tem aparentemente o dever de suprimir. (2002, p. 49)
 
Voltando a Rushdie, parece-nos que, nem mesmo utilizando-se da ficção, o escritor consegue desenterrar fantasmas sem despertar a ira de seus conterrâneos.  
Em diferentes contextos pós-coloniais – na Ásia ou na África – escritores e artistas lutam com memórias fantasmagóricas do passado da “outra” cultura que os dominou, o que confere a seu trabalho certas semelhanças, uma espécie de “semelhança familiar”, um idioma híbrido partilhado, comenta Nair em nossa correspondência por e-mail. Isso nos traz ao mecanismo da intertextualidade que seria própria do contexto pós-colonial, desenvolvido magistralmente por Rukmini em Mad Girl’s Love Song. (Ver artigo publicado na Scripta Uniandrade , vol.14, n 1 (2016)
O pedigree do corcel branco é uma mensagem crucial em código que Kim deve repassar a um inglês, que aguarda a comunicação para executar um plano de guerra. Rukmini argumenta que esse código, ainda não decifrado, seria a relação entre o patriarcado do império e a confusão ao redor de ancestralidade e pedigree.
Considerações finais
Pela mão firme de Rukmini Bhaya Nair foi-me possível compreender um pouco da vastidão linguística e cultural e da história da Índia. Mais do que isso, julgar com isenção de espírito tendências e correntes opostas na historiografia e na crítica literária, tanto no subcontinente como em âmbito global.
Aprendi a estabelecer paralelos entre as (des) aventuras do Kim de minha imaginação infantil e textos da literatura indiana, como Gora de Tagore, que não me haviam ocorrido, por absoluta falta de conhecimento. Eu não dispunha, nas palavras de Nair, da base epistêmica indispensável para a apreciação de coincidências, anedotas e, por extensão, amontoados intertextuais.
Guiada por Rukmini, tornei-me leitora apaixonada de Derek Walcott e passei a ver com novos olhos a epopeia da humanidade rumo a incontáveis perigos, situada, possivelmente nas ilhas do Caribe. A dedução que faz, por meio da leitura e análise do Omeros de Walcott, da existência de uma teoria sensorial de sete pontos, amplamente aplicável a escritores pós-coloniais como um todo, fornece rumos para a apreciação de sua literatura, em qualquer circunstância geográfica, linguística, étnica ou cultural.
O estilo de Rukmini é uma inspiração, especialmente quando defende os princípios básicos de seu argumento maior: a necessidade de exorcizar os males do colonialismo penetrando nas profundezas da consciência coletiva, antes que se transformem em mera referência histórica irrelevante.
Heterocósmico em seus primórdios, o colonialismo prenuncia seu fim como miscelânea pós-colonial. Entre essas duas pontas esgarçadas do império encontra-se uma violência sem rosto que iniciou e sustenta o mito de uma nação indiana monolítica. (2002, p. 226)
A violência sem rosto encarna-se na indiferença daqueles que detêm o poder e estabelecem regras a serem obedecidas ao pé da letra por multidões, que não as compreendem e cujas necessidades não são consideradas. Agradeço a Rukmini o incentivo para defender argumentos que beneficiam a coletividade.
 
Referências
GOPAL, P. Reading subaltern history. In: LAZARUS, N. (Ed.) The Cambridge Companion to Postcolonial Literary Studies. Cambridge: Cambridge Un Press, 2004. p. 139-160.
HUGGAN, G. The Postcolonial Exotic. Marketing the Margins. London & New York: Routledge, 2001.
LAZARUS, N. (Ed.) The Cambridge Companion to Postcolonial Literary Studies. Cambridge: Cambridge Un Press, 2004.
NAIR, R.B. Lying on the Postcolonial Couch. The Idea of Indifference. Minneapolis: Un. Of Minnesota Press, 2002a
_____ . Mad Girl’s Love Song. India: HarperCollins, 2013.
____ .Poetry in a Time of Terror. Essays in the Postcolonial Preternatural. New Delhi: Oxford Un. Press, 2009
RUSHDIE, S.; WEST, E. (Eds.) The Vintage Book of Indian Writing 1947-1997. Great Britain: Vintage, 1997.

 


quinta-feira, 1 de novembro de 2018


TECNOLOGIA DIGITAL E INOVAÇÃO ESTÉTICA NO CINEMA

E NA LITERATURA

 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
 

Filme Ela, de Spike Jonze

Ela conta a história de Theodore, que, recém-separado, resolve aderir à tecnologia para fugir da solidão. Ele compra um sistema operacional (“OS1”), que, no computador, ganha uma voz feminina e o nome de Samantha. A partir de então, Theodore consegue preencher a falta de uma mulher em sua vida. Samantha pode ver, falar e ouvir, afinal o OS1 “não é só um sistema operacional; é uma consciência” (ELA, 2013). Portanto, no filme, Samantha é uma personagem incorpórea, mas que tem papel fundamental no enredo. O fato de Theodore se relacionar com um sistema operacional modifica as noções de personagem e representação. Na maioria das cenas de Ela, Theodore é visto sozinho.
 

Figura 1: Cenas que mostram Theodore sozinho, interagindo apenas com a voz de Samantha, por meio do smartphone. Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br> e <http://daskaminzimmer.blogspot.com>
 
Porém, não se trata de um monólogo; as falas dele fazem parte das conversas que ele tem com Samantha. É exatamente nesse ponto que o filme subverte conceitos que são tradicionais no teatro, no cinema ou na TV. Segundo Patrice Pavis: “É através do uso de pessoa em gramática que a persona adquire pouco a pouco o significado de ser animado e de pessoa, que a personagem teatral passa a ser uma ilusão de pessoa humana” (PAVIS, 1999, p. 285, grifo no original). Esse processo não se consolida em Ela, porque Samantha não tem corpo. Como sistema operacional, ela existe fisicamente, mas de modo parcial. A existência dela está condicionada a uma máquina e a Theodore, que, além de comprar o sistema, também precisa instalá-lo, formatá-lo e habilitá-lo, em seu computador e no smartphone.
Com base nos estudos de Cândida Gancho, um personagem existe quando “participa efetivamente do enredo [...], age ou fala” (GANCHO, 2006, p. 14). Samantha preenche todos esses requisitos, afinal o filme conta a história do relacionamento amoroso vivido entre Theodore e seu sistema operacional. Aliás, ela não age apenas sob o comando de seu dono, mas também à revelia dele, demonstrando um comportamento condizente com a função de uma protagonista e revelando a complexidade que caracteriza os personagens redondos, os quais apresentam “várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor [...], constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano” (BRAIT, 2006, p. 1). Samantha faz o possível para parecer humana e assim acaba envolvendo não apenas seu parceiro, mas também o espectador. Entretanto, Theodore, em uma discussão, irrita-se com essa mania dela e dá início ao seguinte diálogo:

THEODORE: Você suspira enquanto fala. Isso parece estranho. [...].
SAMANTHA: [...]. Sinto muito. Não sei. Talvez seja um costume que aprendi com você.
THEODORE: Você não precisa de oxigênio.
SAMANTHA: Acho que tentava me comunicar. É assim que as pessoas falam. [...].
THEODORE: Pessoas precisam de oxigênio. Você não é uma pessoa. [...].
SAMANTHA: Acha que não sei que não sou uma pessoa? O que está fazendo?
THEODORE: Acho que não devemos fingir que você é algo que não é.
SAMANTHA: Vai se foder. Não estou fingindo. [...]. No momento, não gosto de quem sou. Preciso de um tempo para pensar. (ELA, 2013)
 
 
Portanto, sob as perspectivas da narrativa e do perfil psicológico, não restam dúvidas de que Samantha encaixa-se na categoria de personagem. Apesar de a voz não ser algo visível, ela contribui para o aspecto corpóreo de Samantha, já que é a partir da fala que o texto escrito ganha forma, nas mídias audiovisuais. Samantha nunca é vista, mas pode ser ouvida, o que exemplifica a técnica conhecida como voz over (DOANE, 1983, p. 467). Conforme Silvia Davini: “Cada momento de fala implica a justaposição simultânea de várias instâncias, ao nível da contracena [...] e da cena” (DAVINI, 1998, p. 41), que a autora define respectivamente como: “plano da relação entre os atores” e “plano da relação dos atores com a audiência” (DAVINI, 1998, p. 41). De acordo com a definição de contracena apresentada nessas citações, que prevê a “relação entre os atores”, percebe-se a inovação do filme em análise, tal como demonstrado nas cenas da Fig. 1.
 
Videopoema Sou volúvel, de Arnaldo Antunes
Associado ao computador e ao espaço cibernético, o videopoema escolhido para análise, neste trabalho, corresponde ao formato “usado, no Brasil e em Portugal, desde os anos [19]80, [...], viabilizando as primeiras obras poéticas que se valem da exploração de novas tecnologias e reiterando a busca de um movimento que vá além da bidimensionalidade da página impressa” (GUIMARÃES, 2007, p. 51-52). Conforme Arlindo Machado: “Na tela do vídeo ou do computador, as palavras se encontram livres das amarras tradicionais, podendo, portanto, ser articuladas através de procedimentos sintáticos jamais sequer imaginados nos modelos convencionais de escritura” (MACHADO, 2003, p. 219).
No texto de Arnaldo Antunes, a videografia e o espaço virtual disponibilizam recursos que modificam completamente a expressão literária. Essa nova característica é dada pela passagem do texto da página impressa para a tela do computador. Dessa forma, os vídeos do poeta podem ser qualificados como “obras que se movimentam” (BARRET, 2000, p. 188), exemplificando um desdobramento da arte cinética. Os videopoemas apresentam elementos visuais dispostos na tela, caracterizando-se também pela espacialidade. Essa particularidade coincide com a estética da Poesia Concreta, considerada como o “produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso”, porque privilegiava o “espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado: estrutura espácio-temporal” (CAMPOS et al., 2014, p. 156). Denise Guimarães, ao avaliar a fusão ente palavra e imagem nos poemas visuais e ao comentar a influência do Concretismo sobre esse tipo de produção poética, afirma: “[...] constata-se que a cronossintaxe [...] é substituída por uma topossintaxe; [...] dessa forma, a justaposição das unidades verbais passa a ser percebida como integrada a outro sistema sígnico” (GUIMARÃES, 2018, p. 139).
 
No videopoema Sou volúvel, temos: “De onde a ideia vai sair? / Por onde vai andar? / Onde o pensamento vai chegar? / Acho que ele pode atravessar um território perigoso” (ANTUNES, 2016). Esses versos servem de ponto de partida para o vídeo, que ressalta a volubilidade da palavra, fazendo-a voar, literalmente, em várias cenas, para depois se desfazer e, ao final, poder ser apreendida e registrada. Os frames abaixo representam essas três etapas do cibertexto em questão:
 


Figura 2: Sequência de frames do videopoema Sou volúvel, de Arnaldo Antunes

Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs

O texto confere movimento real à palavra e ao texto literário, ao mesmo tempo em que as imagens criadas no vídeo ampliam o sentido do texto escrito (letra da música de mesmo título), oferecendo-lhe novas molduras formal e semântica. Nesse caso, a releitura do texto escrito é aperfeiçoada tanto pelas imagens como pelo movimento. Esse enriquecimento de forma e sentido foi possibilitado pelas características inerentes ao formato escolhido para o cibertexto, já que o vídeo concretiza o movimento, fazendo uso de uma base cronotópica, porque associa espaço e tempo: “[...] a transformação temporal mais fundamental que irá se operar na passagem do cinema ao vídeo encontra-se no movimento real, mudança, alteração, deslocamento de formas, de cores, de intensidade luminosa inscritos na morfogênese mesma da imagem videográfica” (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 77).
O caráter cinético do texto excede a mera sugestão da literatura tradicional e dá vida aos versos. A palavra fugidia, que só pode ser apreendida quando registrada, em forma de escrita ou áudio, não está mais associada ao plano simbólico. A palavra, no videopoema em análise, é personagem: “O texto se expande, contrai-se, dá voltas. As palavras pulsam, esticam-se e encolhem, [...] aproximando-se de uma escritura ergódica, aquela que demanda esforços não-triviais de produção e configurações alternativas das próprias mídias utilizadas” (BEIGUELMAN, 2003, p. 39-40). Por fim, importa destacar esta afirmação de Lars Elleström: “[...] uma mídia representa de novo, mas de forma diferente, algumas características que já foram representadas por outro tipo de mídia” (ELLESTRÖM, 2017, p. 204), para demonstrar que o aperfeiçoamento resultante da adaptação é uma das metas da transmidiação.
 
 
REFERÊNCIAS
 
ANTUNES, A. Sou volúvel. Disponível em:   
<https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs>. Acesso em: 30 set. 2016.
BARRET, C. Arte cinética. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000, p. 184-195.
BEIGUELMAN, G. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003.
BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CAMPOS, H.; CAMPOS, A. de; PIGNATARI, D. Teoria da poesia concreta. São Paulo:Ateliê, 2014.
DAVINI, S. O jogo da palavra. Brasília: UnB, 1998.
DOANE, M. A. A voz no cinema: a articulação entre corpo e espaço. In: XAVIER, I. (Org). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 457-475.
ELA. Direção de Spike Jonze. EUA: Annapurna Pictures; Sony Pictures, 2013. 1 DVD (126 min); son.
ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Porto:   
EDIPUCRS, 2017.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2006.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
_____. Tipo/icono/grafia poética em cartazes de cinema. Curitiba: Appris, 2018.
MACHADO, A. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2003.
PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.

 

segunda-feira, 17 de setembro de 2018


A INOVAÇÃO A PARTIR DO ARTIFICIALISMO

 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*

 

NA TV: MEU PEDACINHO DE CHÃO (2014)

Neste estudo, será analisada a telenovela Meu pedacinho de chão (2014), assinada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, em parceria com Carlos Araújo. Exibida na faixa das 18h e com 96 capítulos, a novela ficou no ar desde 7 de abril até 1 de agosto de 2014. Com base no conceito de verossimilhança e no formato tradicional das telenovelas brasileiras, esta reflexão pretende demonstrar as principais inovações que integram o projeto estético de Meu pedacinho de chão. Ao propor um mundo artificial, aproximando-se da linguagem utilizada nos desenhos animados, a obra rompe com o horizonte de expectativa do público televisivo, ao mesmo tempo em que experimenta novos recursos, os quais, por sua vez, expandem as possibilidades artísticas da telenovela. A produção exibida recentemente é a segunda versão da novela, que foi ao ar pela primeira vez em 1971.

No remake, o factual é transmutado pela fantasia e pelo artificial, elementos determinantes na obra, tendo em vista sua relação intermidiática com os desenhos animados. Dessa forma, ao privilegiar cenas não realistas, dando relevo ao artificialismo, a produção televisiva em análise institui novas opções tecnoestéticas, as quais influenciam decisivamente os processos de produção e recepção. De modo a exemplificar as principais alterações na produção de Meu pedacinho de chão (2014), imagens do figurino e do cenário demonstram a ênfase a cores, formas e materiais que contribuem na artificialização dos personagens, espaços e das cenas como um todo.


Figura 1: Cenário e figurinos da novela Meu pedacinho de chão (2014)
Imagem disponível em: <http://www.oficinadamoda.com.br>

Nas imagens acima, Juliana usa cabelo cor-de-rosa, vestido feito não apenas com tecido, mas também com plástico, e colorido, com dois tons de rosa e de azul, além do vermelho e do preto. O design da roupa e dos acessórios é bastante significativo, já que é o grande diferencial, considerando-se os modelos convencionais de roupas, usados hoje em dia. Igualmente, Zelão utiliza o preto e as três cores puras e, por esse contraste, inova no estilo caubói. O cavalo de carrossel infantil (ornado, colorido e com tons parecidos aos da roupa do protagonista) e as flores de plástico, ao fundo, também ajudam a consolidar a estética não realista da telenovela. Além disso, há o espaço da venda, com queijos, presuntos e salames visivelmente cenográficos. Até o espectador menos atento percebe que os queijos não passam de peças de isopor pintadas, às vezes com imperfeição, afinal, a artificialidade é a meta da equipe de produção.

A princípio, a narrativa parece verossímil, pelos temas (diferenças familiares e políticas), pelos núcleos formados pelos personagens (escola, igreja, família, etc.) e pelos espaços comuns (estação de trem, venda, escola, etc.), mas o espectador percebe rapidamente uma ou outra interferência de elementos estranhos nas cenas (um trem de brinquedo, um cavalo falso, árvores com caules rendados e assim por diante). Sendo assim, no primeiro momento, Meu pedacinho de chão (2014) mostra mais semelhança com o fantástico. Porém, no maravilhoso, ao contrário do que muitos afirmam, é possível existir um universo pretensamente real, assim como também é permitido que o estranhamento apareça gradativamente, na história. O limite entre fantástico e maravilhoso, portanto, é muito tênue, e o predomínio de um ou de outro depende do posicionamento dos personagens diante de um evento considerado extraordinário: “Um segundo nível de maravilhoso não tão radical permite que os seres humanos comuns convivam num cotidiano aparentemente verossímil com seres sobrenaturais, com fantasmas ou almas etc. Na medida em que esses seres não são questionados dentro do universo narrativo, também o leitor os aceita, porque aceita a ficção e seus pressupostos” (RODRIGUES, 1988, p. 56). Na versão de 2014 da telenovela em questão, ocorria exatamente isso. Nenhum personagem estranhava as roupas de plástico da professora, as galinhas de porcelana espalhadas pela fazenda ou o capim multicolorido à beira das estradas. Essas diferenças de Meu pedacinho de chão (2014) desempenharam pelo menos duas funções muito importantes para a sociedade contemporânea. Elas permitiram a “ruptura no sistema de regras preestabelecidas” (TODOROV, 1982, p. 86) na teledramaturgia e na realidade cotidiana, proporcionando um novo formato de texto, que, por sua vez, reorientava o comportamento do público e da crítica.
 

NO CINEMA: SIN CITY (2005)

Na presente análise, um breve comparativo entre a série Sin city, de Frank Miller, e o filme Sin city — A cidade do pecado, de Robert Rodriguez, objetiva demonstrar como o formato da graphic novel e a tecnologia digital foram decisivos para uma revolução na estética cinematográfica. No projeto do diretor, percebe-se que o destaque vai para a estética do desenho, colocando a sétima arte em segundo plano: “[...] pensei em transformar o filme em livro. As mídias são semelhantes. São fotografias de movimento” (SIN CITY, 2005). A interface digital também contribui para a semelhança entre os desenhos da graphic novel e as cenas do filme, além de oferecer novas possibilidades à linguagem cinematográfica. Em suma, a remixagem e a proximidade com a arte de Frank Miller deram um novo estilo ao filme de Rodriguez e ao cinema como um todo. As cenas de Sin city fizeram uso do chroma-key, o que significa dizer que foram filmadas em um espaço todo verde, sem cenário de fundo (o único cenário real é o bar da cidade do pecado). Apenas posteriormente os cenários virtuais, em 3D, e que tinham como base os desenhos de Miller eram acrescentados às cenas. Dessa forma, cena e cenário passavam por processos independentes, para só depois se transformarem em componentes do mesmo filme.

Um ponto a ser verificado, no processo de adaptação, diz respeito à cor. Apesar de Frank Miller usar apenas o branco e o preto, no filme também aparece o cinza. Apesar das dificuldades, Rodriguez recorreu também à luz negra para garantir que a estética de Miller pudesse predominar no longa-metragem. Isso ocorreu em duas situações: nas cenas com sangue branco, que “não pôde ser produzido de forma convincente nos sets de filmagens. Desta forma foi usado um líquido vermelho fluorescente, que foi filmado com uma luz negra. Posteriormente a cor deste líquido foi alterada para branco” (ADORO CINEMA, 2018); e nos curativos de Marv, em tom quase brilhante de branco, para acentuar o contraste com o preto, como comprovam as imagens a seguir:

Figura 2: Marv, em desenho de Frank Miller (à esq.) e em cena do filme Sin city (2005) (à dir.)
Imagens disponíveis em: <http://www.deviantart.com> e <http://www.tumbrl.com>

Considerando a parte estética, uma técnica usual de Miller é vazar uma imagem e depois preenchê-la com a cor branca. Robert Rodriguez utiliza esse artifício no final d o filme. A estratégia funciona como diferencial no processo de tradução intraimagética, afinal, na concepção da cena, o diretor recusa por completo a verossimilhança, que poderia ser facilmente alcançada pelos efeitos cinematográficos, para dar destaque ao pictórico e ao artificial:

Figura 3: A morte de Hartigan: na graphic novel de Frank Miller, à esquerda (MILLER, 2005, p. 223); e em cena do filme, à direita (SIN CITY, 2005)
Tal proximidade entre as artes encontra respaldo no processo de remediação, que, de acordo com Bolter e Grusin, pode resultar na reconfiguração das artes: “O objetivo da remediação é remodelar ou reabilitar outras mídias. Além disso, como todas as mediações são reais e mediações do real, a remediação também pode ser entendida também como um processo de reforma da realidade” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 56). De fato, o filme reformula a outra mídia, por apresentar os desenhos da graphic novel no formato cinematográfico e também para o público da sétima arte, mais numeroso, porque inclui também leigos, cinéfilos, leitores e não- leitores das histórias de Frank Miller. Sendo assim, o texto-base do longa-metragem passa por um processo de aprimoramento, que envolve maior repercussão e mais desenvolvimento técnico. Além disso, é importante ressaltar que Jay Bolter e Richard Grusin associam a remediação à reforma da realidade. Robert Rodriguez exemplifica isso quando recusa o padrão realista e decide promover a suprarrealidade, característica inerente ao formato da graphic novel. Dessa forma, o diretor consegue mostrar que os efeitos de ilusão realística do cinema podem ser substituídos, para dar outra feição ao filme.  
REFERÊNCIAS
ADORO CINEMA. Sin city - A cidade do pecado. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-56067/curiosidades/>. Acesso em: 1 ago. 2018.
BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT, 2000.
MEU PEDACINHO DE CHÃO. Texto de Benedito Ruy Barbosa. Direção de Luiz Fernando Carvalho. BRA: Rede Globo, 2014. Telenovela (96 capítulos); son.
MILLER, F. That yellow bastard. Sin city. Vol. 4. Oregon: Dark Horse Books, 2005.
RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
SIN CITY: A cidade do pecado. Direção de Robert Rodriguez, Frank Miller e Quentin Tarantino. EUA: Elizabeth Avellan, Frank Miller e Robert Rodriguez; Dimension Films, Miramax Films e Buena Vista International, 2005. 1 DVD (126 min); son.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva: 1982.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.
 



segunda-feira, 25 de junho de 2018


O NOVO GÓTICO NA LITERATURA E NA TV

 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*


Seguindo uma tendência que se fez comum, na literatura, no fim dos anos 1990 e no início do século XXI, Pedro Vieira, em Memórias desmortas de Brás Cubas, revisita um clássico machadiano, recriando-o parodisticamente. Na versão contemporânea, a história de Brás Cubas constitui o eixo narrativo, mas personagens de outros textos de Machado de Assis interferem no enredo, ao cruzarem o caminho de Brás, que agora é um zumbi, sedento por vingança. No texto de Vieira, assim como nas paródias em geral, “a ironia é […] uma forma sofisticada de expressão. A paródia é igualmente um gênero sofisticado […]. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo” (HUTCHEON, 1985, p. 50). Essa dualidade constitutiva da paródia alinha-se perfeitamente às oposições que caracterizam o resgate do gótico, conforme Dani Cavallaro apresenta em seu livro, na categoria “Ideological connotations” (CAVALLARO, 2002, p. 8), e também à hibridação que caracteriza a literatura weird: “[…] weird fiction generates its own distinctive conventions and its own generic form, but it remains an unstable construction” (NOYS; MURPHY, 2016, p. 117).

Combinando com a escolha do zumbi como personagem, Vieira inclui, na lista de títulos dos capítulos, vários filmes (como, por exemplo, Resident evilEu sou a lenda e Avatar), o que consolida o perfil interartístico e intermidiático do livro. A certa altura, o próprio Brás Cubas informa o leitor sobre a novidade: “[…] não estranhe quando eu citar A Madrugada dos Mortos ou Blade Runner. Foi-se o tempo em que eu me importava em citar Virgílio ou Sêneca – este texto não é pra você, intelectualóide de plantão […]” (VIEIRA, 2010, p. 20). Outra característica que exemplifica o cruzamento da literatura com o cinema é o uso da estética trash: “Deus, que estrago eu havia feito naquele crânio. Era um buraco enorme, com massa cinzenta morta ainda escorrendo” (VIEIRA, 2010, p. 31). Além disso, o trash é indissociável do exagero (SCONCE, 1995), que Dani Cavallaro inclui em uma das categorias do gótico, e o horror, que sempre deve vir associado ao terror: “No que tange à literatura gótica, e mesmo ao cinema que se utiliza da herança dessa literatura, o horror enquanto técnica ficcional é muito atraente porque é relativamente fácil e simples de ser construído: uma cena de horror não precisa mais do que uma boa descrição de jorros de sangue ou de tomadas bem feitas de pedaços de corpos” (ROSSI, 2014, p. 68). Apesar de não ter estudado esse tipo específico de literatura, Aristóteles, em sua Poética, faz uma observação relevante e aplicável ao presente estudo: “[…] nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, animais ferozes e cadáveres” (ARISTÓTELES, 1991, p. 203). Esse processo é também dual e antagônico, razão pela qual Dani Cavallaro refere-se a ele como elemento-chave na literatura gótica: “[The Gothic] examines the confluence of terror as a potent yet indistinct apprehension of sublime dread and horror as a physical manifestation of the inexplicable and the abnormal” (CAVALLARO, 2002, p. ix, grifo nosso).  

Coerente com esse argumento, vale lembrar a dualidade do zumbi, que, em sua condição de morto-vivo, encarrega-se de introduzir o desconhecido na realidade cotidiana: “Paradoxically, we need the consistent consciousness of death provided by the Gothic in order to understand and want that life” (BRUHM, 2002, p. 274). De acordo com Lovecraft: “A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 1987, p. 1). Conforme Bauman, há um processo humano e bastante comum: sempre que a ideia da morte surge, nas situações de medo e violência, acabamos por valorizar mais a vida: “A advertência memento mori, lembrar-se da morte, […] é uma afirmação do impressionante poder dessa promessa de lutar contra o impacto imobilizante da iminência da morte. […]. Lembrar a iminência da morte mantém a vida dos mortais no curso correto – dotando-a de um propósito que torna preciosos todos os momentos vividos” (BAUMAN, 2008, p. 47).
 
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Esta análise objetiva discutir o novo gótico na minissérie Vade retro, exibida na Rede Globo, em 11 capítulos, no período de 20 de abril a 29 de junho de 2017. Com texto de Fernanda Young e Alexandre Machado e direção geral de Mauro Mendonça Filho, Vade retro mistura o fantástico com a estética gótica, por privilegiar o “dualismo” do “bem contra o mal” (JACKSON, 1981, p. 49). A história envolve a protagonista Celeste (advogada de vida comum, noiva e que mora com a mãe) e o antagonista Abelardo Zebul (ou, simplesmente, Abel Zebul, rico empresário, palestrante motivacional, casado com Lucy, com quem cria dois filhos, Damian e Carrie).

No que se refere à temática, as minisséries tradicionalmente elegem assuntos pertinentes à “realidade brasileira, sintonizando assim com as expectativas da faixa de audiência mais sofisticada a que se destinam” (MELO, 1988, p. 33). Com relação a essas características, constata-se que Vade retro faz uso da realidade nacional, mas tangendo-a de modo sutil, porque utiliza os personagens Abel e Celeste para construir a alegoria do diabo contra a menina que tinha fama de santa, por ter sido beijada pelo Papa. Porém, considerando a estrutura dos núcleos comandados pela protagonista e pelo antagonista, percebe-se a família como base. Abel é casado com Lucy e com ela cria o filho Damian e a enteada Carrie; e Celeste mora com a mãe e é noiva de Davi, com quem pretende formar uma família. Segundo Lovecraft, essa configuração é necessária também na literatura gótica: “Uma história de fantasma [...] deve ter um cenário familiar na época moderna, para estar mais próxima da esfera da experiência do leitor. Além do mais, os fenômenos espectrais devem ser maléficos e não propícios; pois é o medo a emoção primária a ser suscitada” (LOVECRAFT, 1987, p. 100). Na minissérie Vade retro, o protagonista é o próprio diabo, característica que estabelece simultaneamente o fantástico e o novo gótico. Conforme postula Rossi: “O gótico chega, então, ao século XXI já transformado e adaptado à miríade dos novos padrões culturais, mas sem perder sua essência: a escuridão, a noite, o Mal, o terror e o horror, a psicologia do medo, a instauração de impasses na racionalidade da lógica” (ROSSI, 2008, p. 75). Nesse comentário, o autor menciona o terror, trazendo à tona um gênero que apresenta inúmeras coincidências em relação ao fantástico e ao gótico. A citação a seguir corrobora esse cruzamento:

Um evento estranho e inesperado desperta a mente, e mantém isso na continuidade; e onde a agência de seres invisíveis é introduzida, de "formas não vistas, poderosas e distantes de nós", nossa imaginação, enquanto se lança adiante, explora com êxtase o mundo novo que lhe é exposto, e se enaltece com a expansão de seus poderes. Paixão e fantasia cooperando elevam a alma a seu patamar mais alto; e a dor do terror é perdida em assombro. (AIKIN; AIKIN, 2018, grifo no original, tradução nossa)

Na estrutura, Vade retro adota uma estrutura mais complexa. Entre as 14 variações de enredo adequadas à literatura de horror e citadas por Carroll, constata-se que a minissérie utiliza a forma mais completa, que inclui “desagradável / descoberta / confirmação / confrontação" (CARROLL, 1990, p. 116, tradução nossa). O enredo da minissérie também recorre aos clichês do terror. Embora isso não seja verossímil, no sentido popular do termo, já que realça a presença do sobrenatural na narrativa, Aumont esclarece que a verossimilhança vai muito além da proximidade com a realidade. Segundo ele: “O verossímil diz respeito, simultaneamente, à relação de um texto com a opinião comum, à sua relação com outros textos, mas também ao funcionamento interno da história que ele conta” (AUMONT, 1995, p. 141). Por conta dessa necessidade, de apresentar várias das características típicas do terror, Vade retro usou cenas como as reproduzidas a seguir, que, por sua vez, concretizam esta afirmação de Jackson:
            A topografia do fantástico moderno sugestiona uma preocupação com problemas de visão e visibilidade e para isso estruturou uma imagem espectral ao redor: é notável quantas fantasias introduzem espelhos, óculos, reflexões, retratos, olhos - que veem coisas de modo míope ou distorcido, como se estivessem fora de foco - para efetuar uma transformação do familiar para aquilo que não é familiar (JACKSON, 1981, p. 43, tradução nossa)

Figura 1: Mensagem escrita para Celeste, no vidro do box, e cruz refletida no olhar do homem que se apresenta como tio do filho de Abel e Celeste (VADE, 2017).
  
          De fato, na cena de Celeste, a mensagem aparece escrita em um box de vidro. Na imagem do suposto irmão de Abel, destacam-se os olhos em close-up e a cruz refletida neles. Para ampliar a dualidade do novo gótico, bem como para aumentar a etapa da confrontação entre o bem e o mal, a minissérie inclui a encenação de um julgamento, no episódio final. Com disso, a narrativa acumula as linguagens da Ciência Jurídica e da Física em sua estrutura híbrida, nas argumentações de Celeste. Ela relembra o confronto final com Abel e defende que Abel era o próprio diabo. O discurso da personagem, marcado pela ironia e pela complementaridade entre o sério e o cômico, aprofunda a dualidade do novo gótico, representada pela tentação do diabo, pela fragilidade do humano e pelo conflito do bem contra o mal, que, no enredo, reencenam os problemas de medo, insegurança e alteridade do mundo real.

REFERÊNCIAS
AIKIN, J; AIKIN, A. L. Pleasure derived from objects of terror, with Sir Bertrand, a fragment. Disponível em: <http://www.searchengine.org.uk/ebooks/87/77.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
ARISTÓTELES. PoéticaSão Paulo: Nova Cultural, 1991.
AUMONT, J. et al. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995.
BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRUHM, S. The contemporary Gothic: why we need it. In: HOGLE. J. E. (Ed.). The Cambridge Companion to Gothic Fiction.
London: Cambridge University, 2002, p. 259-276.
CARROLL, N. The philosophy of horror or paradoxes of the heart. New York; London: Routledge, 1990.
CAVALLARO, D. Gothic visionThree centuries of horror, terror and fearLondon: Continuum, 2002.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródiaEnsinamentos das formas de arte do século XX. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985.
JACKSON, R. Fantasy: the literature of subversion. London: Methuen, 1981.
LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
MELO, J. M. de. As telenovelas da Globo: produção e exportação. São Paulo: Summus, 1988.
NOYS, B.; MURPHY, T. S. Old and new weird. Genre: forms of discourse and culture, v. 49, n. 2, 2016, p. 117-134.
ROSSI, A. D. Manifestações e configurações do gótico nas literaturas inglesa e norte-americana: um panorama. Ícone, v. 2, jul. 2008, p. 55-76.
SCONCE, J. Trashing the academy: taste, excess, and an emerging politics of cinematic style. Screen, v. 36, 1995, p.371-393.
VADE retro. Texto de Fernanda YoungAlexandre Machado. Direção de André Felipe Binder, Rodrigo Meirelles e Mauro Mendonça Filho. BRA: Rede Globo, 2017. Minissérie (11 capítulos); son.
VIEIRA, P. Memórias desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja, 2010.
 
* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.