Pesquisar este blog

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Lugares-vazios? Vazios de imagens, mas cheios de intenções

Edson Ribeiro*



Wolfgang Iser desenvolveu a sua teoria dos lugares-vazios, em O ato da leitura, retomando o conceito de indeterminação, de Roman Ingarden. Se este último via as indeterminações como uma impossibilidade de os textos dizerem tudo que intentam, Iser vê nos lugares-vazios um elemento constituinte, do qual o escritor faz uso estético. Não há como os textos, sobretudo narrativos, abarcarem todas as informações que devem, necessariamente, estar na consciência do autor, na forma daquilo que Ricoeur chama de eikon, ou seja, imagem, e de essas imagens serem reconstruídas na consciência do leitor. Essa reconstrução, para Iser, faz com que o leitor seja um construtor daquilo que o autor pode apenas sugerir, através de informações básicas. Mas o teórico alemão insiste em dizer que essas informações se referem a um esforço do autor por evitar ou ter controle sobre a deriva dos sentidos. Então, o teórico elabora a teoria do leitor-implícito, aquele conjunto de procedimentos que todo autor insere em seu texto, que sinalizam para o leitor como ele deve receber o texto. Ideia facilmente comprovável, perceptível em todo texto literário, mas que é recebida com relutância por aqueles que acham que o leitor é senhor absoluto do texto.

Um exemplo desses lugares-vazios pode ser depreendido no trecho abaixo, do conto “Confissão”, de Luiz Vilela:

– Conte os seus pecados, meu filho.
– Pequei pela vista...
– Sim...
– Eu...
– Não tenha receio, meu filho, não sou eu quem está te escutando, mas Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que está aqui presente, pronto a perdoar aqueles que vêm a Ele de coração arrependido. E então...
– Eu vi minha vizinha... sem roupa...
– Completamente?
– Parte...
                                                 – Qual parte, meu filho?

O início do conto, que mantém esse mesmo foco narrativo, que Friedman chama de “modo dramático”, coloca o leitor em meio a uma cena. A confissão de um adolescente. Provavelmente, em uma cidade pequena, já que o conto se insere em um volume de textos autoficcionais, de teor memorialístico. Provavelmente, em alguma década da primeira metade do século passado, pelo mesmo motivo acima. Não há como o leitor ler desde a primeira frase sem formar a sua eikon, imagens que representem o ambiente, as personagens, com suas expressões, vestes, posições. Até mesmo o enquadramento da cena é uma imagem a cargo do leitor. Luiz Vilela faz uso daquilo que Iser chama de esquemas. O leitor conhece o esquema narrativo que pode representar uma cena de confissão, e o autor aqui usa essa expectativa com finalidade estética: seu texto pode ser um modo dramático sem recair em impossibilidades na representação. No caso, não há as longas descrições que antecederiam a cena, como em escritores brasileiros do século XIX, ou o uso do que Barthes chama de “índices”, para explicar elementos que fossem típicos do cenário. O título do conto e a frase inicial já criam esse cenário.

No caso, há um uso dos lugares-vazios que espera pela capacidade de o leitor construir a sua eikon. No caso do conto, um uso elevado. Algo que se espera de um autor moderno, que almeja aquele leitor possuidor de um largo repertório.

Ingarden veria na impossibilidade de o autor explicitar cada elemento imagético dessa cena como uma limitação, originadora de indeterminações perigosas para o sentido. Iser enxerga aqui a possibilidade de a leitura consistir em um prazer, ao estabelecer apenas os esquemas sobre os quais o leitor constrói a sua eikon, extraída as sua memória. O grande acerto de Iser é ter percebido que o autor sabe lidar com isso, até onde o texto lhe permite. Sem os excessos de quem já não acredita em autoria ou que o autor possa desejar o controle sobre a recepção daquilo que escreve. 

São lugares-vazios? Sabiamente vazios. As instruções sobre seu preenchimento estão na superfície do texto, como diria o linguista Dascal, com suas inferências. Lugares-vazios são mais que inferências, pois se referem à constituição imagética do texto na consciência do leitor. O leitor pode não construir inferências, mas vai construir imagens. Há, sem dúvida, uma intencionalidade do autor, que elabora seu texto e procura ter controle sobre a deriva dos sentidos, sobre os modos de recepção. Aqui, a proposta estética (Iser diria “artística”) de Vilela é mais importante que sentidos depreensíveis, subentendidos, inferências. Ele pode realizar artisticamente seu texto por que há esquemas prontos para a cena. Ao contrário de uma limitação, o autor se mostra senhor de seus recursos expressivos.

(*) Edson Ribeiro é Professor do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE), em Curitiba.