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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

BRASA XII, King’s College, Londres
Profa. Anna Stegh Camati

            A Associação de Estudos Brasileiros (BRASA) é um grupo interdisciplinar e internacional de pesquisadores que promove os estudos brasileiros em âmbito global. De 20 a 23 de agosto de 2014, participei do 12º Congresso Internacional da Associação que aconteceu no King’s Colllege em Londres. O congresso contou com aproximadamente 200 painéis, formados por pesquisadores de diversas áreas de conhecimento, sessões plenárias e eventos especiais. No dia 21 de agosto,  apresentei o meu trabalho, intiltulado “Brazilian Outdoor Shakespeares: Street Theatre as Public Art” (Shakespeare ao ar livre no Brasil: O teatro de rua como arte pública), parte de um painél chamado “Shakespeare in Brazil: Investments in the Local and the Global” (Shakespeare no Brasil: Investimentos locais e globais), coordenado pela Profa. Cristiane Busato Smith (Arizona State University). A minha apresentação girou em torno da eclosão de produções shakespearianas no teatro de rua brasileiro, com ênfase em três coletivos de teatro, de diferentes regiões do Brasil,  reconhecidos nacional e internacionalmente: os Clowns de Shakespeare  (região nordeste), o Grupo Galpão (região sudeste) e o Grupo Ueba (região sul). Enquanto o Grupo Galpão e os Clowns de Shakespeare promovem o abrasileiramento de Shakespeare e  exploram a  interculturalidade, optando por um tipo de expressão que incorpora as tradições populares das regiões que representam, o Grupo Ueba recorre à dramaturgia shakespeariana para problematizar questões de classe, gênero e sexualidade. O painél contou, ainda, com outras apresentações de pesquisadoras brasileiras e estadunidenses, a saber: Liana de Camargo Leão (Universidade Federal do Paraná) – “Shakespeare Brasil: New Tools for Digital Education in Brazil” (Shakespeare Brasil: Novas ferramentas para a educação digital no Brasil); Sheila Cavanagh (Emory University) – “Sing and Dance it Trippingly: Othello and Samba in a Digital World” (Cante e dance com passo leve e rápido: Otelo e samba no mundo digital); Marcia Amaral Peixoto Martins  (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) – “Rewritings of Shakespeare’s Plays for Young Readers: The Manga Shakespeare Series” (Reescrituras das peças de Shakespeare para jovens leitores: A série mangá de Shakespeare); e Cristiane Busato Smith (Arizona State University) – “Shakespeare, Samba, Solace and Escape: An Analysis of Otelo da Mangueira” (Shakespeare, samba, consolo e escapismo: Uma análise de Otelo da Mangueira).

Disponível em: < http://www.brasa.org/Panel/Details/129>

BRAZILIAN OUTDOOR SHAKESPEARES: STREET THEATRE AS PUBLIC ART
Anna Stegh Camati
Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE – Curitiba PR
Regional Editor for Brazil at Global Shakespeares (MIT)

In her recent book Extramural Shakespeare (2010), Denise Albanese argues that Shakespeare’s position in American culture has changed in the years around the turn of the millennium. He is no longer located at the top of highbrow culture, but has become public property. Borrowing from Michel Foucault’s essay “What is an Author?” (1969), which demystifies authorship and establishes the concept denominated author-function, she coins an analogous term – Shakespeare-function – to account for the multiple roles the bard plays in our time. This change is a global tendency which also applies to Brazil. The successful intercultural experiments by Eugenio Barba, Peter Brook and Ariane Mnouchkine have encouraged Brazilian theatre practitioners to desacralize or brazilianize Shakespeare, rejecting orthodox practices and presenting his plays in the open as public art. Since the 1990s, theatre groups from different Brazilian regions, among them Minas Gerais, Rio Grande do Sul and Rio Grande do Norte, have tended to renegotiate the Shakespeare-function by means of displacing his legacy from the realm of the elite. Their main objective is to adapt Shakespeare’s plays for popular audiences, performing them in the streets, squares, parks, marketplaces and other venues of great public circulation, following the contemporary trend of popularization of the bard, also accomplished by the film industry, graphic novels, new media and other manifestations of mass culture. In the light of contemporary theoretical perspectives, this paper proposes to discuss the emergence of Shakespeare in Brazilian street theatre, mainly as regards Grupo Galpão’s Romeu e Julieta (1992), also presented at London’s Globe Theatre in 2000 and 2012, Ueba Troupe’s A megera domada (2009) and Clowns de Shakespeare’s Sua Incelença, Ricardo III (2010). Full videos and additional scenes of these productions are available on the Global Shakespeares (MIT) open access archive.


KEYWORDS: Shakespeare. Brazilian street theatre. Regional accents. Public art. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

SOBRE LITERATURA E CINEMA

Verônica Daniel Kobs*

Umberto Eco, que, em vários textos, analisa o parentesco entre cinema e literatura, falando sobre a obra de Manzoni, em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, escreve: “Não venham me dizer que um escritor do século XIX desconhecia técnicas cinematográficas: ao contrário, os diretores de cinema é que usam técnicas da literatura de ficção.” (ECO, 1994, p.77). Tal citação, ao mesmo tempo que menciona a ligação entre as duas artes, coloca a literatura como pioneira na utilização de recursos que serão, também, usados pelo cinema. É claro que isso se deve ao fato de a literatura ser muito mais antiga que o cinema, arte extremamente nova.
Há autores que são radicais ao defenderem a supremacia da literatura em relação ao cinema. É o caso de José Martínez Ruiz, que afirma, categoricamente: “El cine es literatura, si no es literatura, no es nada.” (CARDOSO, 2005, p. 1). Essa citação desconsidera filmes que não surgiram de obras literárias, ou seja, que não são adaptações. No entanto, pode-se compreender tão enfática afirmação, se for considerada a semelhança entre as estruturas das narrativas literária e fílmica.
Em contrapartida, há críticos que se opõem ao estabelecimento de uma relação tão estreita entre cinema e literatura. É o caso de Sylvio Back, para o qual a relação entre essas artes é “conflituosa”, porque “cinema é visibilidade; literatura é invisibilidade” (BACK, 2005, p. 1). O cineasta vai mais além ainda, rejeitando a possibilidade de comparação entre livros e filmes e afirmando: “Quanto maior a traição, melhor o resultado.” (BACK, 2005, p. 1). Porém, se o intento é dedicar-se ao cinema, considerado por ele um tipo de arte totalmente avesso à literatura, por que usar o texto literário como base? É possível fazer roteiros bastante originais, sem o texto literário servir como matéria-prima, como bem exemplificam os filmes de Glauber Rocha, por exemplo, e tantos outros. 
Para se ter idéia de quão antiga é a utilização que o cinema faz dos textos literários, basta atentar para o fato de que A gata borralheira virou filme, em 1868. Esse processo de transposição de uma arte à outra ganhou maior relevo em 1908, com a criação da Sociedade de Filmes de Arte, que, por sua vez, tinha como principal meta reagir aos modelos ou às fórmulas para se fazer filmes. A saída era, então, investir nas adaptações. Dessa forma, os filmes não seriam previsíveis, nem similares. Porém, o desafio da adaptação era, e ainda é, pensar em soluções para transpor o material literário para as telas, da melhor forma, pensando, inclusive, que o cinema dispõe de recursos que não são acessíveis à literatura e vice-versa.
Essa relação entre literatura e cinema intensifica-se dia após dia, o que pode ser comprovado não só pelas inúmeras adaptações de obras literárias para o cinema, mas também pela criação do Projeto PIC-TV — Programa de Integração Cinema e TV, que estreou com a adaptação da obra O auto da compadecida para a televisão, em um primeiro momento, em formato de minissérie, exibida na Rede Globo, e que, posteriormente, em 2000, foi transformada em filme. O projeto deu certo, pois a idéia de ver, no filme, um resumo do que a TV exibiu em formato de minissérie não afastou o público. Pelo contrário, no cinema, a obra repetiu o sucesso.


Linguagens e recursos das artes fílmica e literária

Talvez a definição mais aceita de adaptação seja a de “transcriação”, termo de Haroldo de Campos que prevê a transferência de um sistema de signos (literatura) a outro (cinema), mas não de forma extremamente fiel. A criação é permitida, mas de modo que a base da história literária não seja alterada. Portanto, desvios mínimos são permitidos, à medida que o roteirista, para fazer a adaptação do texto original, deve partir da seleção de cenas, o que, resulta em cortes, principalmente, e na condensação de vários personagens em apenas um. Ambos os processos são amplamente utilizados, já que, nas adaptações, o que dita as regras é o tempo, pela necessidade de contar uma obra de duzentas páginas ou mais em apenas duas horas, duração média dos filmes de longa metragem. Outros processos que aparecem nas adaptações são os acréscimos e a ampliação da participação de determinado personagem.
Para transpor para as telas um texto primeiro pensado literariamente, o cinema empresta recursos literários, o que é possível, pela presença dos elementos da narrativa também no filme. O filme, assim como o texto escrito, deve ter um enredo, que envolve personagens, que, por sua vez, movem-se em determinado ambiente, agindo de forma a inscrever os fatos em determinada ordem, cronológica ou não. Além disso, o papel do narrador no texto pode ser relacionado ao posicionamento da câmera, por exemplo, já que os recortes do que é mostrado na tela determinam se o espectador terá um ângulo amplo ou restrito de visão. Isso sem falar nos filmes que optam por uma narração explícita, como é o caso do filme Memórias póstumas, de André Klotzel. A câmera funciona para aproximar o espectador do personagem, por exemplo, quando a opção é pelo primeiro ou primeiríssimo plano. Isso equivale ao narrador detalhista e que enfatiza a emoção suscitada no leitor, pelas ações dos personagens. Da mesma forma, as câmeras baixa e alta podem indicar atitudes de enaltecimento e inferiorização, respectivamente, do narrador frente aos personagens. A cena também é uma unidade do universo literário, apesar de, hoje, seu conceito ser imediatamente relacionado ao aspecto visual e aos meios de comunicação que têm a visualidade como elemento principal, como o cinema e a televisão.
Marinyse Prates de Oliveira, em seu artigo Laços entre a tela e a página, faz referência ao surgimento do videocassete como um marco do entrelaçamento entre literatura e cinema, já que as possibilidades oferecidas por esse aparelho, de adiantar e retroceder o filme, equivalem às possibilidades que o livro oferece ao leitor, de avançar algumas páginas e, principalmente, de voltar a partes, para tentar compreender melhor determinada parte da história. Nas palavras da autora: “O surgimento do videocassete, não há dúvida, possibilitou um aprofundamento dessa relação que já era naturalmente estreita. Ao facultar ao espectador interferir no processo de projeção, retrocedendo, adiantando ou interrompendo-o, o vídeo conferiu ao espectador do filme as facilidades de manuseio próprias do leitor de livros.” (OLIVEIRA, 2005, p. 2).
E há que se mencionar a aproximação feita por Aguiar e Silva, que define também o filme como texto, definindo – como um “conjunto permanente de elementos ordenados, cujas co-presença, interação e função são consideradas por um codificador e/ou por um decodificador como reguladas por um determinado sistema sígnico”. (SILVA, 1988, p. 597-598).  Não só a literatura sempre serviu, desde que o cinema foi inventado, como matéria- prima para os filmes, dos mais diferentes gêneros, como vários escritores da literatura universal foram contratados como roteiristas. Como exemplos, podem ser citados os nomes de Scott Fritzgerald, William Faulkner e Aldous Huxley, entre outros. Além desses, Marinyse Prates lembrou ainda os nomes de Gore Vidal, James Age e Nathanael West.
Marynise Prates, em seu artigo, já mencionado, cita Paulo Emílio de Salles Gomes, que vai além do parentesco entre literatura e cinema. Para ele, “o cinema é tributário de todas as linguagens, artísticas ou não, e mal pode prescindir desse apoio que eventualmente digere”. (OLIVEIRA, 2005, p. 2). De todas essas linguagens, o crítico menciona a literatura e o teatro como as artes que têm mais afinidade com o cinema.


Do texto literário ao filme

Para Jorge Furtado, a principal dificuldade do roteirista é concretizar sentimentos e sensações, pois, segundo ele, o roteiro de um filme deve ser visual, já que no cinema não ocorre como na literatura, que, através das palavras, leva o leitor a imaginar o que está sendo descrito. O filme já é o resultado de uma leitura. Por isso, deve transformar tudo o que na obra literária é abstrato em algo visível e concreto. Por esse motivo, a adaptação é extremamente subjetiva, o que pode ser facilmente percebido depois de um número de pessoas que foram assistir a uma adaptação qualquer comentarem: “Não gostei do filme” ou “Não foi o que eu esperava”. Dessa forma, a adaptação será mais bem aproveitada se o espectador já tiver lido a obra-base, para poder julgar a transposição do texto à tela, argumentando e, até, comparando sua visão, no momento da leitura, à visão apresentada no filme. Ítalo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, menciona: “No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro ‘vista’ mentalmente por um diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidade num set para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme.” (CALVINO, 1993, p. 99)
Quando trata das lacunas do texto literário, que, segundo Jorge Furtado e outros autores, já aparecem preenchidas, no filme, Umberto Eco diz que não pode ser esquecido o fato de o produto cinematográfico exigir também a colaboração do espectador:

Também no filme, às vezes mais do que no romance, existem os ‘vazios’ das coisas não ditas (ou não mostradas) que o espectador tem de preencher se quiser  dar sentido à  história. Aliás, se  um
romance pode ter páginas à disposição para tracejar a psicologia de um personagem, o filme, não
raro, tem de limitar-se a um gesto, a uma fugaz expressão do rosto, a uma fala de  diálogo. Então
‘o espectador  pensa’, ou  melhor, diria, deveria pensar. Como diz Fumagalli, ‘as  técnicas da  es-
escrita dramatúrgica ensinam cada vez mais a trabalhar como se na tela só pudessem aparecer  as
pontas dos icebergs’, e freqüentemente ‘vemos um, mas — se prestarmos atenção  —  compreen-
demos dez’. (ECO, 2005, p. 98)

Jorge Furtado reforçou essa idéia, quando citou, em uma palestra intitulada Adaptação literária para cinema e televisão, em Passo Fundo (RS), na ocasião da 10ª Jornada Nacional de Literatura, uma lista imensa de recursos e técnicas que o cinema herdou da literatura:

De Homero o cinema aprendeu o flash-back e a idéia de que cronologia  é vício.  De Petrônio,  o
poder dramático da prosódia e a subjetividade do discurso.  De Dante, a  vertigem dos  aconteci-
entos, a rapidez\ para mudar de assunto. De Boccaccio, a idéia da fábula  como entretenimento.
De  Rabelais, os delírios  visuais e a  certeza de que a arte é tudo que a natureza  não é. De  Mon-
taigne, o esforço para  registrar a condição  humana. De  Shakespeare,  Cervantes (e  também  de
Giotto) a corporalidade do personagem e  o poder da tragédia. Da  comédia de  Moliére o cinema
aprende que a  história é uma  máquina. Voltaire ensinou  a decupagem, a técnica do holofote e o
humor como forma avançada da filosofia. De Goethe o  cinema (e também a televisão) aprendem
o prazer do sofrimento alheio. De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narração off e o autor  co-
mo personagem. De  Flaubert, vem a imagem  dramática e o roteiro como  tentativa de literatura.
Brecht é o pai do cinema-teatro e da idéia de que realismo tem hora. (FURTADO, 2005, p. 4)


REFERÊNCIAS

BACK, S. Cinema e literatura. Disponível em: <http://www.ufmg.br/online/arquivos/000574.shtml>. Acesso em: 23 jul. 2005.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CARDOSO, L. M. O. de B. Literatura e cinema: simbioses narratológicas. Disponível em: <http://www.ipv.pt/forumedia/5/17.html>. Acesso em: 23 jul. 2005.
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
_____. A diferença entre livro e filme. Entre livros, ano 1, n. 7.
FURTADO, J. A adaptação literária para cinema e televisão. Disponível  em:
<http://www.casacinepoa.com.br/port/conexoes/adaptac.htm>. Acesso em: 23 jul. 2005.
OLIVEIRA, M. P. de. Laços entre a tela e a página.  Disponível em:
 <http://www.joaogilbertonoll.com.br/estudos.html>. Acesso em: 23 jul. 2005.
SILVA, V. M. de A. e. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1988.

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*Professora de Imagem e Literatura e Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária. Professora dos Cursos de Letras, na FACEL e na FAE.


terça-feira, 14 de outubro de 2014

EM BUSCA DE RAÍZES GEOGRÁFICAS E ESPIRITUAIS:
O SUJEITO DIASPÓRICO NO SÉCULO XXI.[i]
Mail Marques de Azevedo

As palavras proféticas de W.E.B. Du Bois - “O problema do século XX é o problema da linha da cor” - ressoam ainda mais fortes no século XXI, quando o sujeito diaspórico de pele escura continua na busca de um lugar de pertença, tema dominante na chamada literatura pós-colonial. O lócus do romance de estréia da anglo-jamaicana Zadie Smith, Dentes brancos (2000), é o mundo multicolorido, multirracial e plurilingüístico do distrito londrino de Brent. O conto alegórico “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo, escritora mineira conhecida pela celebração de suas raízes afro, dá vida a uma comunidade negra mítica que se regenera, após um longo período de esterilidade, com o nascimento de uma criança. As duas narrativas se encontram em um ponto comum: a focalização de personagens diaspóricos de cor, embora em diferentes estágios do processo pós-colonial.
Este trabalho examina na prosa irreverente e humorística de Smith, e no texto poético da escritora brasileira, o papel da literatura como mediação. O termo designa na teoria pós-colonial o papel da literatura como comentário ou defesa de um determinado ponto de vista, bem como de crítica e resistência a problemas decorrentes do processo colonizador europeu: diáspora, deslocamento, perda de identidade, racismo, opressão econômica e desvalorização cultural, que atingem particularmente o homem de cor.
Os termos correlatos pós-colonial, pós-colonialismo, pós-colonialidade, largamente empregados nos meios acadêmicos, sofrem o problema da imprecisão semântica, concretizada já no prefixo “pós”, cuja acepção de “o que vem depois” está em desacordo com o âmbito do campo de estudo, que engloba todo o processo de colonização. A imprecisão se estende ao objeto e aos métodos da crítica e das teorias ditas pós-coloniais.
Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin demonstram no seminal The Empire Writes Back (1989) uma agenda para os estudos pós-coloniais em inglês e definem seu objeto:

Usamos o termo pós-colonial para cobrir toda a cultura afetada pelo processo do imperialismo, do momento da colonização até o dia de hoje. Sugerimos também que é o termo mais apropriado para a nova critica cross-cultural que emergiu nos últimos anos e para o discurso em que se constitui. Neste sentido este livro se ocupa do estado do mundo durante e após o período da dominação do imperialismo europeu e os efeitos nas literaturas contemporâneas. (Ashcroft et al., 1989, p. 2)

Quanto à crítica pós-colonial, igualmente ampla é a definição de Bart Moore-Gilbert que a vê como “conjunto de práticas de leitura mais ou menos distintas (...) voltadas principalmente para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam (...) relações de domínio e subordinação” (Apud HUGGAN, 2001, p. 12). Relações essas que “têm raízes na história do moderno colonialismo e imperialismo europeu, mas que são ainda aparentes na era atual do neocolonialismo”. O espaço temporal de séculos é superado apenas pela amplitude espacial do processo imperialista, que abrange a quase totalidade do mundo moderno, se considerarmos seus pólos opostos: o dominador e o dominado.
A seguirmos Moore-Gilbert, justifica-se a inclusão dos textos selecionados para o corpus deste trabalho como objeto da crítica pós-colonial. O imperialismo europeu tomou formas diversas em tempos e locais diferentes, daí a procedência de colocarmos lado a lado textos díspares, para um estudo que vai “além dos pós-colonialismos e dos pós-nacionalismos”.
Não há como discutir que as consequências da opressão imperialista assumem os mesmos aspectos em todos os povos e regiões, em todas as culturas e línguas. A diáspora dos povos africanos – os “imigrantes” involuntários da expansão européia para além-mar – está na base das histórias de vida de Zadie Smith e de Conceição Evaristo, bem como na construção de suas personagens em seus respectivos enclaves étnicos.
No conto alegórico de Evaristo, não há personagens individualizadas, mas um conjunto de traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem dela a protagonista da narrativa. Resistente diante do sofrimento, sábia, forte e paciente, a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade física da mãe-terra, quando se rompe o ciclo de morte e renascimento que comanda a natureza:

E então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejo para os nossos corpos (. . . ) O milagre da vida deixou de acontecer também, nenhuma criança nascia e, sem a chegada dos pequenos, tudo piorou. (. . . ) agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole. (EVARISTO, 2005: p. 35; 37)

No significado alegórico do conto está representada a esterilidade da vida do homem negro, que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão do imperialismo europeu, ainda aparentes na era atual do neocolonialismo. De fato, a problemática da posição do sujeito colonial e pós-colonial, - e nisso os críticos estão de acordo -, é o que mais se aproxima de um tópico prioritário ao qual se poderia subordinar a teoria pós-colonial. Independente da idade, o indivíduo diaspórico olha para o passado a fim de reconhecer o que sobrevive dele no presente: “Os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo  ... (EVARISTO, 2005, p. 36)
Na análise dos textos, a posição do sujeito diaspórico, foco principal deste trabalho, é examinada no relacionamento mais restrito do indivíduo com a ambientação física, psicológica e cultural. Em espectro mais amplo, analisam-se as relações persistentes de desigualdade ─ social, política, econômica ─ no quadro da sociedade multicultural que habita um dos centros irradiadores da cultura branca européia, sob o foco da apropriação da cultura das minorias como representação do “exótico”, cuja valorização estética põe em relevo seu caráter de objeto de curiosidade.
É esse o quadro que se percebe na Willesden Green criada por Zadie Smith para abrigar o mundo multicultural de Dentes brancos, formado por paquistaneses, hindus, chineses, jamaicanos, árabes, cujos destinos vêm desembocar ali, deixando para trás raízes geográficas e espirituais. “What is past is prologue”: a citação de The Tempest, epígrafe do romance evidencia a importância da pré-história das personagens, o legado de suas origens e a questão de como chegaram até o presente, ao mesmo tempo em que fornece o esquema para o desenvolvimento do enredo.
O romance narra a saga de várias gerações que abrange o século vinte, mas atinge as raízes mais remotas do quebra-cabeças cultural de seu background: as personagens vão e vêm entre Bangladesh, Bulgária, Jamaica, Itália e Escandinávia, mas todos se reúnem nas ruas da Londres de Zadie Smith. Envolve três famílias ─ os Joneses, casal misto, ele inglês e ela, jamaicana; os Iqbals, de Bangladesh, e os judeus-católicos, os Chalfens ─, que vivem nas proximidades, e cuja localização geográfica comum se sobrepõe a heranças culturais díspares e liga seus destinos.
Se postulamos que em “Ayoluwa” o papel de protagonista é desempenhado pela comunidade, em Dentes brancos, a função se distribui entre os membros da geração mais jovem dos três grupos familiares, que estabelecem a conexão entre as famílias. A análise do modo característico como enfrentam a complexidade do ambiente multicultural de Willesden Green, que se repete dentro de casa, ilustra um dos temas centrais do romance: o legado do império, a reunião de imigrantes nos velhos centros  imperiais, e a consequente constituição de sociedades multiculturais.
Quer se trate de comunidades afrodescendentes, isoladas fisicamente, no conto de Evaristo, ou multiculturais, perdidas como fragmentos multicoloridos no mosaico de línguas, religiões e manifestações da cultura material desenhado por Zadie Smith na antiga metrópole do Império Britânico, tais grupos partilham os mesmos problemas decorrentes da diáspora iniciada com a expansão marítima do século XVI.
Apesar de inconsistências de definição e de metodologia, é indiscutível que o conjunto dos estudos pós-coloniais — teoria e critica – provou ser uma força catalisadora para algumas das produções intelectuais mais estimulantes do presente. No caso deste trabalho, forneceu importantes parâmetros para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam relações de domínio e subordinação na natureza do sujeito diaspórico no século XXI.

REFERÊNCIAS
ASHCROFT, B. et al. The Empire Writes Back. Theory and Practice in Post-Colonial Literatures. London and New York: Routledge, 198
EVARISTO, Conceição. ”Ayoluwa, a alegria do nosso povo” In. Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje: Ed. dos Autores, 2005.

MAKARIK, Irena. R. (Ed.) Encyclopedia of Contemporary Literary Theory. Approaches, Scholars,
SMITH, Zadie. White Teeth. New York: Vintage, 2001.
__________. Dentes brancos. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Cia das Letras, 2003.




[i] Reproduzem-se aqui as páginas iniciais do texto Em busca de raízes geográficas e espirituais: o sujeito diaspórico no século XXI, publicado na coletânea Para além dos nacionalismos e pós-colonialismos, páginas127-148. O texto completo pode ser downloaded no site da HN Editora & Publieditorial, endereço www.editorahn.com.br