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terça-feira, 6 de setembro de 2016

A SIMPLICIDADE QUE OCULTA SUAS RAZÕES; SER SIMPLES PODE NÃO SER NADA FÁCIL

*Edson Ribeiro da Silva

Mario Benedetti ainda é dos autores latino-americanos que não causam por aqui a mesma celeuma que vizinhos mais presentes no mercado editorial do país. Por isso, é um acontecimento para não ser desperdiçado vê-lo editado. O autor uruguaio é reconhecido como dos mais importantes da região, mas suas visitas às nossas livrarias podem ser comparadas às do protagonista montevideano aos seus avós portenhos.
A borra do café é daquelas obras que podem ser consideradas um indício do interesse do mercado e do leitor por textos autobiográficos ou autoficcionais. Reaparece em um momento em que espera muito pela voz de um grande escritor falando de si. No caso, sem o aparato das obras extensas, que descem a níveis de memorialismo complexos, como a memória involuntária, a análise impressionista de fatos que portam significações existenciais únicas. Nada de desafios interpretativos nem de teorizações acerca do passado. O livro é formado por muitos capítulos curtos, em que os fatos são narrados sem a descrição exaustiva de estados psicológicos, sem comentários impressionistas, apenas de forma breve e quase anedótica. O protagonista, de nome Cláudio, narra episódios da infância até a idade adulta. Não se trata de um romance de formação. O narrador não está interessado na análise de como formou sua personalidade. Tudo parece devidamente resolvido ao longo dos capítulos, as brincadeiras, a morte da mãe, a primeira relação sexual, chegando às vésperas do casamento. O único elemento insolvível é a existência (ou não) de uma garota, que surge em momentos decisivos e desaparece, sem que ninguém saiba de quem se trata. E o livro acaba confirmando o mistério: como desfecho, ela já não aparecerá, mesmo não se sabendo se era real.
 Tudo o mais é leve e se encaixa numa existência comum, de menino, de adolescente ou de jovem estudante e profissional. Sem saltos, tudo decorre no tempo comum da existência. Aquele tempo biológico, ou físico, em que os acontecimentos da vida parecem convencionados. E a convenção permite que o narrador não tente nem precise explicá-los.
E, no entanto, uma das principais convenções desse tipo de narrativa é subvertido em A borra do café. O narrador em primeira pessoa, que fala de si, voltando ao passado, parece se relacionar a tantos outros. Mas há um capítulo, no início do livro, dentre a quase centena de outros, tão curtos e leves, em que o autor parece ter entregado uma chave ao leitor. O menino conversa com um amigo, um cego chamado Mateo, e quer saber como ele sonha. Como a imagem se forma em sua mente. O cego responde que já enxergou no passado, mas que vai perdendo a memória visual das coisas. Assim, as palavras ditas pelas pessoas acabam se transformando em ideias novas, imagens que já fogem daquelas que a memória havia fixado. A comparação que ele faz é com a diferença entre alguém ter presenciado um fato ou ouvi-lo contado pela voz de outra pessoa. O capítulo seguinte apresenta um narrador em terceira pessoa, que fala de Cláudio como sendo uma personagem, um outro. E a alternância entre a narração em primeira pessoa, em que um confidente adulto se porta como íntimo do leitor, levando-o a presenciar fatos marcantes, como a primeira relação sexual, mas que o faz sem alongar capítulos, sem envolver o leitor através da passionalidade, e a narração em terceira pessoa, em que uma voz de fora mantém a mesma conduta narrativa do narrador-protagonista, sendo breve, sem arroubos de sentimentos, ela faz com que o livro ganhe o desafio de se tentar entender as razões para a opção pela mudança. Por que se ouve a voz de um outro narrando o que se esperava ouvir pela própria voz da personagem? É uma confissão de ficcionalidade na obra memorialística? Seria uma forma de se confirmar a unidade do autor-narrador com a personagem? Ou de se assumir que a imaginação, a criação, pode se sobrepor à memória? Assumir a terceira pessoa seria uma ação de confirmar o que o cego havia falado: ouvir o fato contado por outro o modifica? Que mudanças ocorrem quando a voz é delegada a um narrador que não viveu o fato, apenas o narra?
A aparente simplicidade da obra exige que se atente para aquilo que Wolfgang Iser considerava como a base para o estabelecimento do jogo que é a leitura: o modo como a narração se constitui, como a voz do narrador chega ao leitor. Aqui, o desafio é perceber a diferença, quando a leitura menos atenta aponta para a semelhança. Tal como nos sonhos do cego, a memória dos fatos vai se modificando conforme os outros contam o passado. Já não há como separar a exatidão da imagem lembrada da criação da imagem contada.
O livro entrega tal desafio ao leitor, para deixá-lo insatisfeito, assim como o narrador faz com a personagem Rita, a garota que surge e desaparece e ninguém sabe quem é nem o que motiva a sua existência, se era real ou apenas imaginada pelo protagonista.

*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.