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segunda-feira, 17 de setembro de 2018


A INOVAÇÃO A PARTIR DO ARTIFICIALISMO

 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*

 

NA TV: MEU PEDACINHO DE CHÃO (2014)

Neste estudo, será analisada a telenovela Meu pedacinho de chão (2014), assinada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, em parceria com Carlos Araújo. Exibida na faixa das 18h e com 96 capítulos, a novela ficou no ar desde 7 de abril até 1 de agosto de 2014. Com base no conceito de verossimilhança e no formato tradicional das telenovelas brasileiras, esta reflexão pretende demonstrar as principais inovações que integram o projeto estético de Meu pedacinho de chão. Ao propor um mundo artificial, aproximando-se da linguagem utilizada nos desenhos animados, a obra rompe com o horizonte de expectativa do público televisivo, ao mesmo tempo em que experimenta novos recursos, os quais, por sua vez, expandem as possibilidades artísticas da telenovela. A produção exibida recentemente é a segunda versão da novela, que foi ao ar pela primeira vez em 1971.

No remake, o factual é transmutado pela fantasia e pelo artificial, elementos determinantes na obra, tendo em vista sua relação intermidiática com os desenhos animados. Dessa forma, ao privilegiar cenas não realistas, dando relevo ao artificialismo, a produção televisiva em análise institui novas opções tecnoestéticas, as quais influenciam decisivamente os processos de produção e recepção. De modo a exemplificar as principais alterações na produção de Meu pedacinho de chão (2014), imagens do figurino e do cenário demonstram a ênfase a cores, formas e materiais que contribuem na artificialização dos personagens, espaços e das cenas como um todo.


Figura 1: Cenário e figurinos da novela Meu pedacinho de chão (2014)
Imagem disponível em: <http://www.oficinadamoda.com.br>

Nas imagens acima, Juliana usa cabelo cor-de-rosa, vestido feito não apenas com tecido, mas também com plástico, e colorido, com dois tons de rosa e de azul, além do vermelho e do preto. O design da roupa e dos acessórios é bastante significativo, já que é o grande diferencial, considerando-se os modelos convencionais de roupas, usados hoje em dia. Igualmente, Zelão utiliza o preto e as três cores puras e, por esse contraste, inova no estilo caubói. O cavalo de carrossel infantil (ornado, colorido e com tons parecidos aos da roupa do protagonista) e as flores de plástico, ao fundo, também ajudam a consolidar a estética não realista da telenovela. Além disso, há o espaço da venda, com queijos, presuntos e salames visivelmente cenográficos. Até o espectador menos atento percebe que os queijos não passam de peças de isopor pintadas, às vezes com imperfeição, afinal, a artificialidade é a meta da equipe de produção.

A princípio, a narrativa parece verossímil, pelos temas (diferenças familiares e políticas), pelos núcleos formados pelos personagens (escola, igreja, família, etc.) e pelos espaços comuns (estação de trem, venda, escola, etc.), mas o espectador percebe rapidamente uma ou outra interferência de elementos estranhos nas cenas (um trem de brinquedo, um cavalo falso, árvores com caules rendados e assim por diante). Sendo assim, no primeiro momento, Meu pedacinho de chão (2014) mostra mais semelhança com o fantástico. Porém, no maravilhoso, ao contrário do que muitos afirmam, é possível existir um universo pretensamente real, assim como também é permitido que o estranhamento apareça gradativamente, na história. O limite entre fantástico e maravilhoso, portanto, é muito tênue, e o predomínio de um ou de outro depende do posicionamento dos personagens diante de um evento considerado extraordinário: “Um segundo nível de maravilhoso não tão radical permite que os seres humanos comuns convivam num cotidiano aparentemente verossímil com seres sobrenaturais, com fantasmas ou almas etc. Na medida em que esses seres não são questionados dentro do universo narrativo, também o leitor os aceita, porque aceita a ficção e seus pressupostos” (RODRIGUES, 1988, p. 56). Na versão de 2014 da telenovela em questão, ocorria exatamente isso. Nenhum personagem estranhava as roupas de plástico da professora, as galinhas de porcelana espalhadas pela fazenda ou o capim multicolorido à beira das estradas. Essas diferenças de Meu pedacinho de chão (2014) desempenharam pelo menos duas funções muito importantes para a sociedade contemporânea. Elas permitiram a “ruptura no sistema de regras preestabelecidas” (TODOROV, 1982, p. 86) na teledramaturgia e na realidade cotidiana, proporcionando um novo formato de texto, que, por sua vez, reorientava o comportamento do público e da crítica.
 

NO CINEMA: SIN CITY (2005)

Na presente análise, um breve comparativo entre a série Sin city, de Frank Miller, e o filme Sin city — A cidade do pecado, de Robert Rodriguez, objetiva demonstrar como o formato da graphic novel e a tecnologia digital foram decisivos para uma revolução na estética cinematográfica. No projeto do diretor, percebe-se que o destaque vai para a estética do desenho, colocando a sétima arte em segundo plano: “[...] pensei em transformar o filme em livro. As mídias são semelhantes. São fotografias de movimento” (SIN CITY, 2005). A interface digital também contribui para a semelhança entre os desenhos da graphic novel e as cenas do filme, além de oferecer novas possibilidades à linguagem cinematográfica. Em suma, a remixagem e a proximidade com a arte de Frank Miller deram um novo estilo ao filme de Rodriguez e ao cinema como um todo. As cenas de Sin city fizeram uso do chroma-key, o que significa dizer que foram filmadas em um espaço todo verde, sem cenário de fundo (o único cenário real é o bar da cidade do pecado). Apenas posteriormente os cenários virtuais, em 3D, e que tinham como base os desenhos de Miller eram acrescentados às cenas. Dessa forma, cena e cenário passavam por processos independentes, para só depois se transformarem em componentes do mesmo filme.

Um ponto a ser verificado, no processo de adaptação, diz respeito à cor. Apesar de Frank Miller usar apenas o branco e o preto, no filme também aparece o cinza. Apesar das dificuldades, Rodriguez recorreu também à luz negra para garantir que a estética de Miller pudesse predominar no longa-metragem. Isso ocorreu em duas situações: nas cenas com sangue branco, que “não pôde ser produzido de forma convincente nos sets de filmagens. Desta forma foi usado um líquido vermelho fluorescente, que foi filmado com uma luz negra. Posteriormente a cor deste líquido foi alterada para branco” (ADORO CINEMA, 2018); e nos curativos de Marv, em tom quase brilhante de branco, para acentuar o contraste com o preto, como comprovam as imagens a seguir:

Figura 2: Marv, em desenho de Frank Miller (à esq.) e em cena do filme Sin city (2005) (à dir.)
Imagens disponíveis em: <http://www.deviantart.com> e <http://www.tumbrl.com>

Considerando a parte estética, uma técnica usual de Miller é vazar uma imagem e depois preenchê-la com a cor branca. Robert Rodriguez utiliza esse artifício no final d o filme. A estratégia funciona como diferencial no processo de tradução intraimagética, afinal, na concepção da cena, o diretor recusa por completo a verossimilhança, que poderia ser facilmente alcançada pelos efeitos cinematográficos, para dar destaque ao pictórico e ao artificial:

Figura 3: A morte de Hartigan: na graphic novel de Frank Miller, à esquerda (MILLER, 2005, p. 223); e em cena do filme, à direita (SIN CITY, 2005)
Tal proximidade entre as artes encontra respaldo no processo de remediação, que, de acordo com Bolter e Grusin, pode resultar na reconfiguração das artes: “O objetivo da remediação é remodelar ou reabilitar outras mídias. Além disso, como todas as mediações são reais e mediações do real, a remediação também pode ser entendida também como um processo de reforma da realidade” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 56). De fato, o filme reformula a outra mídia, por apresentar os desenhos da graphic novel no formato cinematográfico e também para o público da sétima arte, mais numeroso, porque inclui também leigos, cinéfilos, leitores e não- leitores das histórias de Frank Miller. Sendo assim, o texto-base do longa-metragem passa por um processo de aprimoramento, que envolve maior repercussão e mais desenvolvimento técnico. Além disso, é importante ressaltar que Jay Bolter e Richard Grusin associam a remediação à reforma da realidade. Robert Rodriguez exemplifica isso quando recusa o padrão realista e decide promover a suprarrealidade, característica inerente ao formato da graphic novel. Dessa forma, o diretor consegue mostrar que os efeitos de ilusão realística do cinema podem ser substituídos, para dar outra feição ao filme.  
REFERÊNCIAS
ADORO CINEMA. Sin city - A cidade do pecado. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-56067/curiosidades/>. Acesso em: 1 ago. 2018.
BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT, 2000.
MEU PEDACINHO DE CHÃO. Texto de Benedito Ruy Barbosa. Direção de Luiz Fernando Carvalho. BRA: Rede Globo, 2014. Telenovela (96 capítulos); son.
MILLER, F. That yellow bastard. Sin city. Vol. 4. Oregon: Dark Horse Books, 2005.
RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
SIN CITY: A cidade do pecado. Direção de Robert Rodriguez, Frank Miller e Quentin Tarantino. EUA: Elizabeth Avellan, Frank Miller e Robert Rodriguez; Dimension Films, Miramax Films e Buena Vista International, 2005. 1 DVD (126 min); son.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva: 1982.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.