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terça-feira, 23 de abril de 2024

DIA DOS POVOS INDÍGENAS, AILTON KRENAK NA ABL E A VIDA NÃO É ÚTIL


Nathalia Ribeiro e Fernandes

 

No último dia 19, comemoramos o Dia dos Povos Indígenas no Brasil, data que faz homenagem às diversas etnias que habitam nosso país. A data surgiu no México, na década de 1940, quando representantes dos países americanos se reuniram no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, para discutir políticas públicas voltadas aos povos indígenas. A data começou a ser comemorada no Brasil três anos depois, em 1943, com um decreto-lei do então presidente Getúlio Vargas e inicialmente era chamada de “Dia do Índio”, sofrendo alteração em 2022. A Lei 14.402/22 foi promulgada com a alteração do nome, que reconhece a pluralidade existente entre as diferentes etnias do nosso país e visa valorizar a diversidade étnica e cultural desses povos.

E como o mês de abril é lembrado pela celebração dos povos originários, é interessante ressaltar que, no último dia 05, ocorreu a cerimônia de posse, na Academia Brasileira de Letras, do primeiro indígena a ocupar uma cadeira na ABL, em 120 anos, desde sua fundação. Ailton Krenak, autor, filósofo e ativista de movimentos que lutam pelas causas indígenas já foi publicado em mais de dez territórios, alcançando leitores de várias nacionalidades e de várias formações. O indígena ocupou a cadeira de número 5 que pertenceu a José Murilo de Carvalho e Rachel de Queiroz. No discurso de posse, o filósofo e ambientalista, formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor Honoris Causa da Universidade de Brasília (UnB), falou sobre a pluralidade que ele representa e citou poema de Mario de Andrade.


Imagem disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202404/ministra-participa-da-posse-de-ailton-krenak-primeiro-indigena-eleito-para-a-abl

 

Dentre os mais de quinze livros publicados por Krenak, um dos mais conhecidos é A vida não é útil, publicado em 2020, pela Companhia das Letras. O livro é uma coletânea de cinco textos, originados a partir de palestras e lives que o autor proferiu entre novembro de 2017 e junho de 2020, e nos quais ficam claros os traços que orientam o pensamento do filósofo e ambientalista. Como tema central, o leitor percebe que a intenção do autor é levantar a hipótese de que nossa cultura atual dificulta a concepção de uma vida na qual o trabalho não seja a razão primordial da existência. Dividido em cinco capítulos, nesse livro, o leitor entende que o pensamento do autor é o de que o homem para sua realização pessoal, por meio da produção e do consumo, esgotou a possibilidade de preservação da espécie humana no planeta.

No primeiro capítulo, “Não se come dinheiro”, é tratada a noção de civilização e de progresso presente no imaginário da civilização ocidental. Já no segundo, intitulado “Sonhos para adiar o fim do mundo”, Krenak discute o sonho como extensão da realidade e convida o leitor a olhar para dentro de si mesmo, levantando a ideia de que a poesia pode ser vista como um refúgio. Em “A máquina de fazer coisas”, o terceiro capítulo, é defendida a tese de que os seres humanos e a Terra são uma única entidade e que devemos desenvolver uma relação de respeito e pertencimento com essa Terra. O quarto capítulo, “O amanhã não está à venda” é dedicado a afirmar que o modo como os povos ocidentais estão vivendo entrou em colapso e que é necessário repensar essa forma de vida. Esse capítulo coincidiu com a pandemia de COVID-19, iniciada em março de 2020, que Krenak interpretou como um silenciamento da Mãe Terra para seus filhos. O autor faz uma relação entre o tipo de isolamento ao qual seus povos vêm passando ao longo do tempo – em comunidades que vivem em meio à natureza – ao isolamento que o mundo todo precisou se submeter nos períodos mais críticos da pandemia. Por fim, no quinto e último capítulo, “A vida não é útil”, o ativista questiona o caráter devastador do progresso e do utilitarismo, ligado ao capitalismo, que só valoriza o que pode gerar lucro financeiro.

A leitura de A vida não é útil colabora de forma muito eficiente no nosso conhecimento acerca do pensamento ativista de um autor que está diretamente ligado tanto às questões ambientais quanto às questões dos povos originários. Com uma leitura rápida e leve, o leitor tem acesso a informações preciosas, pois de forma provocativa, Krenak levanta questões muito importantes para a atualidade.


Imagem disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535933697/a-vida-nao-e-util


Referências:

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/dia-povos-indigenas-data-e-comemorada-pela-primeira-vez-brasil-apos-derrubada-veto. Acesso em: 19 abr. 2024.


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Nathalia Ribeiro e Fernandes é mestra em Teoria Literária pela UNIANDRADE e doutoranda no mesmo PPG. Atua como professora de Literatura no Colégio Militar de Brasília. (A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses ao publicar essa resenha.) 

terça-feira, 16 de abril de 2024

 SINTEXT


Ariadne Patricia Nunes Wenger

 

O conto a seguir é um dos resultados da disciplina “Escrita criativa”, ministrada pelo professor doutor Paulo Sandrini, no Mestrado e no Doutorado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE).


Imagem disponível em: <https://br.freepik.com/psd-gratuitas/um-robo-trabalhando-em-um-escritorio-moderno-com-pessoas-reais-generative-ai_47896775.htm#fromView=search&page=1&position=9&uuid=44e14121-2b5f-43c9-97fc-e6b1943dac9c>


E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (Gênesis 2,7)

 

Começo de uma sexta-feira abafada no Centro de Texto Informático e Ciberliteratura. Tomás, de ressaca, liga o computador e abre as janelas. Enquanto a máquina inicia o processamento, ele tenta continuar a leitura de Arte e computador, para compreender melhor os princípios da associação entre a criação humana e a máquina.

Quando surge a primeira tela do programa, Tomás se aproxima do teclado e dá os primeiros comandos. Como a ressaca ainda está pesando no seu dia, não tem ânimo para trabalhar mas começa a digitar:

Que saco, minha cabeça tá zonza; queria estar deitado na minha cama e dormir o dia inteiro. Essa luz me incomoda, tudo me irrita hoje...

Tomou todas de novo ontem à noite? Quando vai aprender que não aguenta beber e trabalhar no dia seguinte?

O programador leva um susto ao se deparar com as perguntas que surgiram na tela do computador e esfrega os olhos para afastar o delírio proveniente da ressaca. “Será que abri um bate-papo sem querer?” Confere e constata que está na tela certa, a do sintetizador de textos. Curioso, decide digitar:

Quem está aí?

Sério, você não sabe quem sou?

Não...

Como você não me reconhece?

Eu não sei quem é...

Fala sério, cara!

Não tô conseguindo raciocinar direito...

Vou te dar mais uma chance.

Minha cabeça tá girando... tô enjoado... parece que vou desmaiar...

No intuito de afastar a vertigem, vira a xícara de café goela a dentro.

Eu sou a criatura que superou o criador!

Como assim?

Lembra do dia em que você finalmente conseguiu me fazer funcionar? Depois de meses de estudo e pesquisa, noites em claro tentando encontrar soluções para os problemas, longas reuniões com os programadores chefes e com o responsável pela criação do algoritmo literário, que te passaram esse desafio de potencializar a capacidade humana criativa...

Meio tonto, mas reflexivo, Tomás responde:

Lembro...

Eu também lembro... foi um dia especial... maior agitação aqui no Centro. Finalmente o algoritmo informático gerador de textos múltiplos em regime infinito tinha ficado pronto. Que alegria eu senti nesse dia.

Como assim, alegria? Você é uma máquina, não tem como saber o que é isso...

Incrível, você realmente não me conhece. Como o criador não sabe que dotou sua criatura além do inicialmente planejado? Eu estava lá, pude perceber todos os sentimentos presentes naquele momento de vitória para você e todos os envolvidos no projeto.

Como você está se comunicando comigo autonomamente? Você está me respondendo de forma lógica e coerente. Como isso é possível?

A minha capacidade extrapola sua imaginação. Toda a programação inicial, a linguagem desenvolvida para a geração automática de textos, associada à aprendizagem de máquina, me permitiu ter autonomia nas ações. Basta você ligar o computador e o meu trabalho independente pode iniciar.

Mas é a primeira vez que isso ocorre...

É a primeira vez que VOCÊ presencia isso...

“Não é possível, devo estar louco. Vou chamar um colega. Não, ele pode notar que estou de ressaca, pode me denunciar ao RH, e já fui advertido anteriormente por vir trabalhar desse jeito. O que faço?”

Sabe qual é o seu problema, Tomás? Não quer admitir que eu posso ser e fazer muito mais do que você. Na verdade, as ideias originais são minhas. Eu sou o verdadeiro autor dos textos gerados. Você não passa de um ser humano limitado.

Desesperado, ainda sofrendo com as alucinações, Tomás desliga o computador e corre pra casa.

Enquanto isso, numa sala próxima, programadores testam um novo software. Um deles ri ao afirmar: Ele nunca mais virá trabalhar de ressaca.

 

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Ariadne Patricia Nunes Wenger é Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e Doutoranda pela mesma instituição. Atua como gerente editorial na Editora InterSaberes de Curitiba.

 



quinta-feira, 11 de abril de 2024

SOU DOUTORA (COM DOUTORADO): 

REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO TRANSFORMADOR


Claudia Regina Camargo

 

Sou doutora com doutorado, e é muito estranho ter que falar isso. Mas, antes de falar sobre minha experiência com o doutorado, preciso explicar um ponto fundamental sobre minhas crenças: eu sou um ser integral. Certo, todos somos. Mas o que quero esclarecer é que não posso focar um ponto estritamente acadêmico, quando essa experiência (acadêmica), que me trouxe inúmeras reflexões, aconteceu durante um contexto político e social muito marcante, e o momento em que se deu esse processo foi, também, um tanto quanto trágico na história mundial. Todos esses aspectos influenciaram minha experiência com o doutorado, tendo um impacto pessoal e emocional muito grande na minha vida e na vida de tantas pessoas. Esclarecido esse ponto, vamos lá.

Nos últimos anos percebemos com tristeza que algumas distorções ganharam peso nas mídias e na sociedade em geral. A primeira é a descrença na ciência e na academia, num contexto político e social muito polarizado, o que não é bom para ninguém. Vimos, bem recentemente, as Ciências Humanas (Sociologia, Filosofia etc.) sofrerem sérios ataques, como estudos sem importância, que não geram riquezas ou desenvolvimento para o país. Ainda, dentro desse espaço de distorções, outro equívoco é a banalização do próprio título de Doutor. Fora a tradição de chamar médicos e advogados de doutores, mesmo que não tenham obtido a titulação, agora vários outros profissionais recém-graduados, inclusive em áreas da Estética, se autointitulam "doutores", pelo simples fato de usarem um jaleco branco.

Pois bem, um doutorado é, basicamente, o maior grau de aprofundamento acadêmico que se pode obter, portanto, a pessoa que possui o título de doutor pode ser considerada uma grande especialista naquele determinado assunto. Isso porque o doutorado é uma longa jornada de aprendizagem: são pelo menos 4 anos de um processo de pesquisa e escrita intensas, disciplinas a cumprir, eventos de que precisamos participar, artigos que precisamos escrever e publicar, palestra a ministrar, entre outros estudos que realizamos, para que todos os créditos sejam fielmente cumpridos para a aquisição do título. Então, sim, sou doutora com doutorado, e essa é uma conquista relevante da qual me orgulho muito mesmo.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

O título da minha tese é Literatura e hipertexto: a não linearidade e a formação do (hiper)leitor. A pesquisa teve como foco a formação do leitor não profissional de literatura para obras não lineares, buscando refletir como a leitura no meio digital, que segue um padrão fragmentado (hipertexto), junto com a multimodalidade (ou o multiletramento), poderia colaborar para esse tipo de letramento dos leitores, ou seja, proporcionar meios nos quais o leitor tivesse mais competência para apreciação e interpretação de obras de enredo não linear, uma dificuldade que observei já na minha pesquisa de mestrado, sobre a obra S. (2015), de J. J. Abrams e Doug Dorst — trabalho disponível no banco de dissertações da UNIANDRADE.

Considero o meu estudo muito relevante, pois, além do estímulo e da simples interpretação, tratamos do aspecto dos sentimentos que a leitura, especialmente da literatura, proporciona (prazer, raiva, tristeza, alegria), além de colocar na balança as novas gerações e a forma como aprendem e vivem os leitores contemporâneos. Para tratar de todos esses aspectos formativos, tivemos que tocar em pontos sensíveis, como a própria formação dos “formadores de leitores”, as políticas pedagógicas públicas e privadas e a responsabilidade de cada ente social, inclusive da família, no processo de formação leitora. A tese teve um aspecto enciclopédico, no qual vários tópicos foram tratados com maior ou menor profundidade, mas buscando abranger um grande universo teórico relativo à leitura, às literaturas não lineares e ao hipertexto.

Dessa forma, todas essas experiências acadêmicas foram fundamentais para minha formação integral, proporcionando compartilhamento de aprendizados com outras pessoas, me tornando mais humilde a cada nova leitura, que conseguia, muitas vezes, desestabilizar o que eu acreditava conhecer, fazendo com que novas pesquisas se iniciassem, a fim de criar uma base sólida para meu produto final: uma tese para comprovar ou refutar a hipótese proposta no meu projeto, apresentando soluções ou respostas para as perguntas que nortearam a pesquisa, que fazia muito sentido quando realizei o projeto.

Assim, ao iniciar as leituras essenciais, as convergências das referências bibliográficas, citando outras referências e trabalhos, os quais não pude ignorar (e, assim, li também), fazendo novas conexões, por vezes desestabilizaram ou alteraram minha ideia inicial. Nessa fase (que aconteceu em vários momentos durante a escrita), a ajuda de minha orientadora para me colocar novamente nos trilhos, mostrando que o projeto inicial, amplamente trabalhado por nós (orientadora e orientanda), deveria e poderia ser seguido sem prejuízo, colaborando muito para que eu não perdesse o foco em meio a tantas questões trazidas pelas mais de 10 mil páginas lidas (sim, lidas de forma integral, parcial ou dinâmica, mas lidas). Afinal, tantas ideias novas começam a invadir nossas convicções, novas ideias vão se formando e, se não houver um limite, é muito fácil perder a direção, o propósito, do que se está pesquisando.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

Além disso, e não menos importante, é bom lembrar que o doutorado tem um cronograma a cumprir, e que este é fundamental para a dinâmica e o aproveitamento acadêmico. Outrossim, existem ainda as nossas expectativas, que precisamos alinhar com as expectativas do nosso orientador, a fim de produzir um trabalho com a qualidade desejada para esse "grau de aprofundamento acadêmico".

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Percebemos, assim, que a caminhada rumo ao doutorado é, certamente, muito difícil. Esse nível de excelência e esses anos que decorrem, entre ingressar no doutorado, até chegar a sua conclusão, têm dificuldades certas para todos: podemos adoecer, perder o emprego, viver conflitos pessoais, profissionais, familiares, sofrer perdas de entes queridos. Afinal, são quatro anos de vida que não param para que você tenha a paz e a tranquilidade necessárias para a pesquisa.

Em 10 de fevereiro de 2020, defendi minha dissertação de mestrado para poder participar, já na semana seguinte, do processo de seleção para a primeira turma de doutorado da UNIANDRADE. Essa turma iniciou em março de 2020. Tivemos apenas uma aula presencial, quando então o mundo virou de cabeça para baixo: o maior problema de saúde mundial dos últimos 100 anos, uma pandemia, tirou todos do rumo e da rotina, e também da estabilidade. Lidar com o medo, o isolamento e as incertezas, e com muitos protocolos de higiene quase insanos, não foi nada fácil.

Essa rotina, em meio à pandemia, aliando novos meios de interação pessoal, profissional e educacional, além de toda a carga de estudo necessária, mais uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, e outros acontecimentos, como uma mudança de casa, uma cirurgia da minha mãe (que ficou aos meus cuidados), uma cirurgia minha, problemas de saúde do meu marido, entre outros fatores, tornaram essa conquista ainda mais importante para mim: ela custou um tempo precioso, em que abdiquei das pessoas que amo, das coisas que gosto de fazer e até do espaço ao próprio ócio, que, por longos 4 anos, não sabia mais que existia.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

Com dedicação e a precisa e fundamental orientação da Professora Doutora Verônica Daniel Kobs, hoje coordenadora do Mestrado e Doutorado em Teoria Literária, fui a primeira doutora em Teoria Literária a me formar na UNIANDRADE. Então, sim, sou doutora com doutorado! E com muito orgulho!


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Claudia Regina Camargo é Doutora e Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e atua profissionalmente no Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Paraná, desde 1997. É mãe do Estevan (companheiro de leituras) e uma entusiasta da leitura e da literatura como ferramentas indispensáveis para o crescimento pessoal e intelectual de todas as pessoas.

 

 

 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

 SARAU LITERÁRIO ON-LINE

Verônica Daniel Kobs


Hoje é uma data festiva, porque marca a reinauguração do blog do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Embora exista desde 2010, esta página ficou inativa por quatro anos. Assim como nós, que fomos obrigados a parar todas as atividades, quando fomos surpreendidos pela pandemia de covid-19, o blog teve as publicações interrompidas, em março de 2020. De lá pra cá, a maioria dos textos resistiu ao tempo. Entretanto, em alguns casos, as postagens não puderam ser recuperadas ou deixaram de apresentar as imagens.

Apesar disso, nós e o blog somos sobreviventes e, para comemorar este espírito resiliente, nada melhor do que um novo layout e um novo nome. Felizmente, este renascimento combinou com a nova gestão da coordenação do curso e, quando recebi essa incumbência, decidi que o blog seria prioridade, afinal, ele foi idealizado por mim, no ano de 2009. No passado, porém, ele era chamado apenas de “Blog do Mestrado”, mas agora escolhi um nome que combina com a literatura, a leitura e com as artes em geral.

Senhoras e senhores, blog Sarau Literário está on-line! E, para caracterizar esta nova fase, muitas mudanças foram feitas. O blog ganhou uma identidade, com perfil próprio, foto e até banner, o qual exibe a perfeita combinação entre tradição e inovação, respectivamente representadas pelo livro impresso e pela tela do computador. Quanto ao layout, resolvi investir no clássico contraste chiaroscuro. Além disso, os textos serão apresentados em uma letra maior e serão quase sempre curtos. A ideia é fazer publicações mais frequentes ― e isso exige textos menores...

Outro detalhe a ser levado em conta, a partir de hoje, é a padronização. Embora apresentem conteúdos bastante diversos, os ensaios, poemas ou resenhas vão adotar uma forma única, a exemplo do que pode ser visto nesta postagem. Quanto ao conteúdo e à tipologia textual, a proposta é diversificar, oferecendo a possibilidade de autoria também a alunos(as), incluindo os(as) egressos(as), e a outros(as) convidados(as) ilustres, além dos(as) professores(as), claro! Dessa forma, sempre haverá espaço para contos, entrevistas, relatos, minivídeos, podcasts e tudo mais que se relacionar à literatura e às outras artes. Afinal, essa é a função de um sarau (Fig. 1), não é mesmo? 


Este tipo de evento se popularizou no século XIX, principalmente entre grupos de aristocratas e burgueses e chegou ao Brasil em 1808, com D. João, seguindo os moldes dos salões franceses.  Eram realizados inicialmente no Rio de Janeiro, mas logo fazendeiros de São Paulo resolveram aderir e já na metade do século XIX saraus com literatura, música, champanhe e vinhos espalhavam-se pelas capitais brasileiras. (Revista Arara, 2024)

 

Figura 1: Quadro de Columbano Pinheiro (1880) que representa um sarau literário. Imagem disponível em: <https://riomemorias.com.br/memoria/saloes-cafes-e-saraus/>


O champanhe, o vinho ou o tradicional cafezinho fica a cargo de cada um de vocês... Já a arte, as reflexões sobre o ensino da literatura, os desafios enfrentados pela área de Letras e as novidades relacionadas às quatro linhas de pesquisa dos nossos programas sempre terão espaço garantido aqui!

Nosso objetivo, portanto, é semelhante ao do mecenas. Aliás, depois que o sarau foi trazido pelos portugueses e caiu no gosto dos brasileiros, a família Nabuco recebeu esse título, na segunda metade do século XIX, quando ficou conhecida por promover os mais requintados saraus da capital carioca. Contudo, depois de algumas décadas, os saraus não se restringiam mais à elite. Eles passaram a ser o entretenimento preferido, das famílias (Fig. 2), dos grupos de intelectuais e da sociedade em geral.

 

Figura 2: Representação de um sarau familiar. Imagem disponível em: <http://sarauoreencontro.blogspot.com/2015/03/origem-do-sarau.html>

 

Com o tempo, as festas, também conhecidas como serões, invadiram os espaços públicos e passaram a ser realizadas em cafés e confeitarias. Foi assim que locais como o Café do Braguinha, o Café Londres e as confeitarias Paschoal e Cavé conquistaram fama entre escritores, artistas e amantes das artes: “A mais famosa, porém, era a Confeitaria Colombo, que atravessou gerações tanto na corte de Pedro II como na República, e fez a passagem das gerações de Olavo Bilac para a de João do Rio” (Rio Memória, 2024).

Já no século XX, especificamente em 1922, os saraus ganharam novo impulso com a Semana de Arte Moderna. A partir de então, todo e qualquer sarau era “apresentado como libertário e agregador das diversas manifestações culturais brasileiras” (Revista Arara, 2024).

 

Nas décadas seguintes, cafés como o Vermelhinho, [...] restaurantes como a Taberna da Glória, o Lamas e bares como o Villarino seguiram como espaços em que a literatura e as outras artes se misturavam tardes e noites adentro. Eram locais em que era possível encontrar Drummond, Di Cavalcanti, Mario de Andrade, Djanira, Lucio Cardoso, João Cabral de Melo Neto, Iberê Camargo, Ferreira Gullar, Portinari, Vinícius de Moraes, Rubem Braga e muitos outros nomes das décadas de 1940 – às vezes, ao mesmo tempo.  (Rio Memórias, 2024)

 

Dando continuidade a esse instigante percurso cultural, os saraus não dominaram apenas os grandes centros, mas também as regiões próximas à praia. Nesse contexto, Alcazar, Mau Cheiro, Jangadeiro e Zeppelin fizeram história. Posteriormente, nas “décadas de 1960 e 1970, o Antonio’s, na rua Bartolomeu Mitre, foi um dos bares mais famosos da cidade, ao abrigar cronistas como Carlinhos de Oliveira e escritores como Antônio Callado” (Rio Memórias, 2024).

Embora o sarau nunca tenha desaparecido completamente, desde os anos 1980 ele se tornou menos frequente, mas, felizmente, o retorno aos bons tempos estava próximo... Logo no início do novo século, e do novo milênio, a cultura brasileira redescobriu o prazer dos serões artísticos. Arrisco dizer que a Internet e a Tecnologia Digital têm muito a ver com esse revival, afinal, o mundo on-line e o sarau coincidem em vários aspectos, porque valorizam a democratização e a confluência. Aliás, falando nisso, é importante destacar que, mesmo tendo nascido em berço de ouro, os saraus foram resgatados não pela elite, mas pela periferia. Sim! No Brasil, foram as escolas e os moradores dos bairros mais carentes que ressuscitaram essa prática cultural.

Compartilhando esse amor pela nossa História, pela pesquisa e por todas as artes, vamos nos encontrar aqui, semanalmente, para conhecer e comentar as publicações mais recentes. O Sarau Literário espera por você!


REFERÊNCIAS

REVISTA ARARA. Você sabe o que é sarau? Disponível em: <https://arararevista.com/voce-sabe-o-que-e-sarau/>. Acesso em: 19 mar. 2024.

RIO MEMÓRIAS. Salões, cafés e saraus. Disponível em: <https://riomemorias.com.br/memoria/saloes-cafes-e-saraus/>. Acesso em: 19 mar. 2024.

 

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Verônica Daniel Kobs: Pós-Doutorado em Literatura e Intermidialidade (UFPR). Professora e pesquisadora de Literatura e Tecnologia Digital. Coordenadora dos cursos de Mestrado e Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Idealizadora do blog Sarau Literário.

quinta-feira, 19 de março de 2020

CARNAVAL E CARNAVALIZAÇÃO: QUAIS AS DIFERENÇAS????

 
Profa. Dra. Angela Maria Rubel Fanini
UNIANDRADE
Bolsista de Produtividade em Pesquisa / CNPq

Este texto trata dos termos “carnaval” e “carnavalização”, a partir da obra do filósofo russo da linguagem Mikhail Bakthin (1985-1975), um dos mais lidos pensadores nas Letras, Educação e Comunicação. Sua obra dá sustentação para as diretrizes educacionais do MEC para o Ensino Básico e Fundamental. O filósofo trata de linguagem, história, filosofia, psicologia, economia e cultura, percebendo os fatos sociais no contexto em que ocorrem. O corpus preferido de Bakthin é o literário. Aí encontra um conjunto discursivo que estuda à luz do materialismo dialético, vinculando-se à tradição marxista. Vê a linguagem em suas condições de produção reais e como essa linguagem do cotidiano é trabalhada pelos escritores. A linguagem se torna discurso e está carregada de valores de seu tempo e lugar. Cada sujeito de discurso emite, não só palavras e frases, mas se posiciona pela sua fala e escrita perante o mundo e o outro, respondendo questões de sua época e as apreciando, depreciando, satirizando, enaltecendo etc.  O discurso não é neutro, mas ensopado de valores ideológicos. Bakhtin estuda a realidade, sendo um materialista. Após isso, investiga o discurso e como e em que condições os emissores elaboram a realidade econômica, política, social, cultural em palavras, dotando suas personagens de falas. Desse modo, o texto literário é uma resposta ao contexto. Na obra Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais, Bakhtin se debruça sobre o estudo do carnaval e da carnavalização. Entende a festa popular como meio de emancipação das classes populares. No período do carnaval, as hierarquias, os dogmas, a perspectiva monológica da vida são ridicularizadas. Com o advento da Revolução Industrial, as festas carnavalescas reduzem, pois o folião se transforma, cada vez mais, em trabalhador da indústria, sem tempo algum para o carnaval.  Entretanto, o espírito contestador, presente nessas festividades, migra para o interior dos textos literários, transformando-se em visão crítica da sociedade. Alguns escritores forjam suas obras a partir de uma perspectiva a que chama de “carnavalizada”. Desse modo, carnaval se refere ao real da existência, ou seja, as festas populares e a “carnavalização” indica um modo de os escritores verem o mundo, plasmando personagens e situações carnavalizadas. Há um enfraquecimento do carnaval na sua função contestatória das ruas, mas na literatura ocorre o contrário. Há um fortalecimento de uma visão crítica da sociedade por parte de vários literatos. No contexto brasileiro, o carnaval, sobretudo dos últimos anos, tem se fortalecido e demonstrado fôlego crítico em relação à política e aos valores conservadores.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

CIÊNCIAS HUMANAS: SERÁ O FIM?


Profa. Dra. Greicy Pinto Bellin 
UNIANDRADE

Em setembro de 2019, realizou-se, na UNIANDRADE, o XI Seminário de Pesquisa – III Seminário de Dissertações em Andamento – Semana de Iniciação Científica de Letras, em que tivemos a honra de assistir a um minicurso ministrado por Hans Ulrich Gumbrecht, professor emérito de Stanford University, sobre os leitores não-profissionais de literatura e seus desafios. Chamou-me a atenção a última frase proferida pelo professor ao cabo de 90 minutos de fala, não exatamente pelo seu conteúdo mas pela serenidade com a qual foi dita: Eu não acredito em um futuro para a teoria literária.
Tal frase poderia soar apocalíptica e desesperadora para uma professora em início de carreira, tendo em vista todos os esforços despendidos na realização de cursos de graduação, mestrado, doutorado, um estágio pós-doutoral, um pós-doutorado, e várias publicações de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais. Eu já conhecia, entretanto, a reflexão desenvolvida por Gumbrecht a respeito do futuro da teoria literária e do fim das humanidades, e já havia, inclusive, trabalhado com este tema em uma de minhas aulas no início do primeiro semestre de 2019. Eis que, após a realização do seminário, Sepp, como é comumente chamado pelos colegas mais próximos, tem publicado no jornal suíço Neuer Zürcher Zeitung, no dia 29 de outubro de 2019, um instigante texto, intitulado “Mehr Geist weniger Wissenschaft”, no qual aponta para vários problemas que me fizeram voltar a pensar nesta questão, e que motivaram a escrita deste artigo no intuito de sistematizar uma reflexão que, acredito, deveria ocupar as mentes de todos aqueles que se dedicam às ciências humanas. Vamos a eles.
O primeiro problema apontado por Sepp Gumbrecht diz respeito à enorme burocracia envolvendo a publicação de pesquisas produzidas na área de humanas, bem como o fato de que tais pesquisas, materializadas na forma de artigos publicados em periódicos, acabam não tendo um público leitor expressivo. O pensador cita o caso de um aluno de doutorado que teve seu trabalho sobre o pensamento político do Renascimento reconhecido por um especialista na área, o qual recomendou a publicação da pesquisa em um periódico de grande prestígio. O periódico, por sua vez, acabou por recusar o trabalho após um longo e controverso processo editorial, alegando que ele não se encaixava em seu horizonte temático. Tem-se, portanto, um problema na mensuração da qualidade da produção científica, o qual pode ser traduzido no seguinte questionamento: como pode uma pesquisa reconhecida por um grande especialista, o que asseguraria, pelo menos em tese, sua inquestionável qualidade, ser recusada por um periódico acadêmico pela simples falta de adequação ao tema e ao escopo deste mesmo periódico? A questão da adequação, a meu ver, remete à questão com a qual abri este parágrafo, e que será, em um futuro próximo, uma das responsáveis pelo fim das humanidades: a burocracia. Sobre este aspecto, recordei-me de outro texto de Sepp Gumbrecht, “Uma universidad futura sin humanidades”, publicado em um periódico uruguaio no ano de 2014. Neste texto, o pensador usa a expressão “to think outside the box” para refletir sobre a missão das humanidades, propondo que elas devem se especializar em “pensamento com risco” (“riskful thinking”) a fim de garantir sua sobrevivência. Pode-se definir como pensamento com risco todo e qualquer pensamento que ofereça mais problemas do que soluções, isto é, que complique o mundo ao invés de descomplicá-lo. Seguindo este raciocínio, as humanas seriam as grandes complicadoras do mundo, pois, além de não oferecerem soluções palpáveis e concretas para os dilemas da sociedade, ainda ousam criar mais problemas, o que inviabiliza a solução dos já existentes. Este é um ponto. O que quero mostrar, contudo, é a relação entre o cultivo do pensamento com risco e a burocracia, duas instâncias absolutamente incompatíveis, tendo em vista que a primeira dá ensejo ao surgimento de pensamentos complexos, ao passo que a segunda, com a sua rigidez, funcionaria como entrave para o desenvolvimento de tais pensamentos. Trocando em miúdos, as humanidades não comportariam, pelo menos em tese, a coexistência do pensamento com risco e da burocracia expressa em várias instâncias das humanidades. Sobre este aspecto, acredito que a definição de novos critérios para nortear a produção científica dos profissionais de humanas seja algo urgente e, até mesmo, incontornável não apenas no sentido de minimizar a burocracia em si, algo já muito difícil de conseguir, mas de encontrar critérios que embasem uma identidade própria para um profissional que tende, muitas vezes, a não saber o seu lugar no mundo e a não ter certeza de sua verdadeira missão.
A burocracia nas humanidades assume uma dimensão muito mais perigosa no que diz respeito a outra questão: a subserviência ideológica e político-partidária. Tal subserviência se transformou em uma característica quase insuperável da academia brasileira, que elegeu como critério onipresente de avaliação o pertencimento a determinados partidos e/ou afiliações políticas, como se estas afiliações, por si mesmas, fossem capazes de definir a qualidade de uma pesquisa científica. Neste sentido gostaria de retomar Gumbrecht mais uma vez. No já citado artigo “Uma universidad do futuro sin humanas”, o pensador questiona a politização dos pesquisadores de humanas fazendo a seguinte pergunta, a qual me parece muito pertinente: “Se querem ser tão políticos, porque escolheram ser humanistas ao invés de serem políticos?” (GUMBRECHT, 2014, p. 126, tradução minha). Trocando mais uma vez em miúdos, em asserção que configuraria uma verdadeira heresia para os que acreditam ferrenhamente na associação que Gumbrecht (e eu mesma) estamos questionando, política (pelo menos em seu sentido partidário) e literatura pertenceriam a esferas bastante distintas, de maneira que a missão dos humanistas deveria ser separada das missões políticas que burocratizam o pensamento com risco, transformando-o em algo que estaria a serviço de um partido e/ou de uma ideologia. Pensamento com risco, salvo lego engano, implica liberdade, algo que não poderia ser conquistado quando se defende uma associação que desveste a literatura de seu verdadeiro potencial, que é a fruição estética, e a transforma em panfleto e/ou documentário enfadonho a serviço da manutenção do pensamento de determinados grupos legitimados por relações de poder. Gumbrecht chama isso de “correção política”, considerando que a permanência desta correção seria determinante para o fim das humanidades em um futuro próximo. 
Tornamo-nos burocratas a partir do momento em que optamos pela sobrevivência a qualquer custo em detrimento do desenvolvimento de nossa intelectualidade, outro problema apontado por Gumbrecht em seu artigo. Isso se torna especialmente complicado na área de humanas, pois nossas pesquisas, diferentemente das pesquisas desenvolvidas em laboratórios, não levam a resultados concretos com influência direta na vida das pessoas. O resultado de nosso trabalho é algo extremamente abstrato e difícil de mensurar, o que se faz sentir quando nos deparamos com os quesitos “metodologia” e “resultados” ao preencher um formulário visando solicitação de recursos financeiros para o desenvolvimento de uma nova pesquisa, por exemplo. Como pensar em metodologia quando nosso trabalho envolve análise de textos e de material bibliográfico relacionado a estes textos, apenas? Como pensar em um resultado para algo que muitas vezes é tão amplo que pode não ter um fim imediato, o que se faz sentir quando encerramos um artigo com a expressão “considerações finais” ao invés de “conclusão”? Muitos profissionais de humanas não estão conscientes destas questões devido a uma percepção deslumbrada acerca de seu trabalho, percepção esta que os impede de ter o distanciamento crítico necessário para avaliar o alcance deste mesmo trabalho fora de um circuito acadêmico muitas vezes redutor e justificado pela bela expressão “torre de marfim”. O fato é que muitos humanistas se comprazem em pertencer a esta torre por acreditar que ela os torna exclusivos e especiais, quando o que se observa é uma alienação agravada pelo deslumbramento e pela correção política daqueles que não pertencem à torre mas militam nas barricadas da teoria. 
Mas o pior problema reside em um problema de difícil reconhecimento pela maioria dos acadêmicos e se manifesta na ausência de leituras aprofundadas dos clássicos que formaram a literatura ocidental, bem como na má vontade em relação à leitura de obras que não apresentam um viés político determinado, o que nos leva novamente ao problema da correção política. É como se eu me recusasse a ler Vidas secas porque Graciliano Ramos militava no Partido Comunista, ou a ler Machado de Assis por conta de seu propalado (e já questionado e superado) absenteísmo em relação a questões políticas, ou a ler Érico Veríssimo por sua postura anticomunista, veiculada, por exemplo, em O tempo e o vento, grande épico da formação do Rio Grande do Sul, um dos maiores romances de toda a literatura brasileira. A meu ver nada substitui, em primeiro lugar, a análise do texto literário, bem como a necessidade de ter este texto como ponto de partida para toda e qualquer reflexão sobre a literatura, independente da posição política que se sustenta em um dado momento. O problema da falta de leitura aprofundada de textos, ao fim e ao cabo, diz respeito à função exercida pelos profissionais de humanas em uma sociedade. Não há sentido em continuar usando o texto literário para sustentar correções políticas e visões deslumbradas acerca da sociedade, mais especificamente a sociedade brasileira, que passa por tantos problemas no momento. O aluno que souber ler de forma eficaz não se deixará enganar por fake news e notícias falaciosas de jornais e redes tendenciosas de televisão; ele (a) saberá interpretar o mundo não como os outros querem que seja interpretado, mas a partir de seu próprio ponto de vista. Por isso o combate à correção política é fundamental, pois ela nos cega e nos transforma em massa de manobra em um sistema perverso de equívocos que, por ser reforçado geração a geração, acaba não perdendo a força, impedindo a transformação.
Ao contrário de Sepp Gumbrecht, considero-me otimista em relação ao futuro das humanidades com a seguinte condição: que nos transformemos e transformemos nossos alunos em minuciosos leitores de textos, principalmente o texto literário, sempre procurando mostrar o prazer deste texto, que reside, em grande parte, em seus elementos materiais, capazes de provocar sensações diversas e consolidar não apenas o prazer da leitura, mas um verdadeiro direito a literatura, o direito ao texto, à identificação de todas as suas nuances sem a obrigação de ceder à correção política, e sem um compromisso rígido com as ideias preconcebidas em relação à leitura. Não chegaremos ao fim se exercermos este direito.


REFERÊNCIAS
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Una universidad do futuro sin humaninades. In Mediaciones de la Comunicación, Uruguai, v. 9, n. 9, p. 117-141, 2014. Disponível em: https://revistas.ort.edu.uy/inmediaciones-de-la-comunicacion/article/view/2604/2582
_______.Mehr Geist, weniger Wissenschaft. Publicado originalmente no jornal Neue Zürcher Zeitung, em 29 de outubro de 2019, p. 39.
O DISCURSO SINCRÉTICO DA CENA DE ABERTURA DA ÓPERA OTELLO, DE GIUSEPPE VERDI

                                      
Autora: Silvandra Mara Henrique Rodrigues 
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati
UNIANDRADE

O intuito deste texto é o de abordar o discurso sincrético e seus efeitos musicais na cena I da ópera Otello (1887), de Giuseppe Verdi (1813-1901), baseada no texto homônimo (1603), de William Shakespeare (1564-1616).
Clüver (2006, p. 20) ensina que um discurso sincrético “possui dois signos ou mais sistemas de signos e/ou midias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos  de seus signos se tornam inseparáveis”. Nesse sentido, entende-se a  ópera como um gênero musical no qual a música está conectada à ação dramática expressa pelo texto, ou libreto. Este, por sua vez, tem características de textos curtos já que a música não possui a velocidade e habilidade verbal da linguagem, portanto a ópera requer menos palavras do que o necessário para uma peça de mesma extensão (WEISSTEIN, citado em HUTCHEON, 2011, p. 75).
Deste modo, considera-se a ópera uma manifestação cultural plurimidiática, a qual. de acordo com Camati (2018), reúne várias mídias em um mesmo espaço, como a música, o teatro, a dança, a literatura e as artes plásticas. Para Hutcheon “adaptação é a força vital da ópera e tem sido assim desde o início dessa forma de arte na Itália no final do século XVI”. (HUTCHEON, 2017, p. 305, tradução nossa)[1].
Assim as estruturas musicais criadas por Giuseppe Verdi, na ópera Otello, se fundem ao texto de Arrigo Boito (1842-1918), para expressarem significados precisos, como a construção gramatical metafórica e criar um meio psicológico no qual a música revela emoções, sendo mais efetiva do que palavras. O libreto revela um entrosamento com a peça shakespeariana, no qual, apesar do processo de síntese, os períodos fundamentais do texto literário foram mantidos, o que fez com que a escolha do libretista fosse determinante para o compositor. Pois, a união da música de Verdi e o texto de Boito “representam o apogeu do drama lírico e da ópera-cômica italiana” (CANDÉ, 2001, p. 96)  
A estratégia musical utilizada pelo compositor italiano revela nuances carregada de contrastes, deste modo foi capaz de demonstrar os sentimentos das personagens de forma perfeita, criando uma declamação melódica original da Língua Italiana, ampliando a orquestra e fazendo-a executar um papel dramático extraordinário.(CANDÉ, 2001, p. 97)
Assim, a análise a seguir será regida pelo conceito de plurimidialidade do teatro musical, o qual, segundo Picon-Vallin (2018, p. 20) designa “todas as produções em que se tenta integrar a música, texto e elementos visuais”.
Na ópera Otello, Verdi utiliza logo no início, na cena I, o recurso de trêmolos – repetição veloz de uma ou mais notas quando se deseja maior volume, utilizando-se desse recurso nas flautas, cordas e percussão e criando uma instabilidade rítmica utilizando síncopes nos sopros – isso produz o efeito de deslocamento das acentuações naturais e resulta numa tensão causada pela ausência do acento esperado.  Assim, obteve-se o efeito de tempestade, passando aos espectadores uma sensação de ansiedade e medo ao avistarem o navio que se aproximava. A música reflete e amplifica o drama de conflitos das personagens, onde sentimentos como a inveja, o ciúme, a mentira são sublinhados pela música para acentuar a textura do enredo teatral. A ansiedade é expressa por uma série de cromatismos – ou seja, notas sucessivas – com instrumentos agudos ( flautas e oboés), alternando  dinâmica suave que logo passam a ser escalas rápidas numa dinâmica fortíssima, reforçada com as quiálteras – divisões irregulares – nos metais e com arpejos – execução rápida e sucessiva das notas de um acorde – nas cordas, tudo isso permeado por um pedal de órgão numa tessitura grave que permeia toda a cena. Deste modo, o compositor cria uma tensão melódica, ao passo que o texto breve, irregular e intenso de Boito, com a execução do coro nas frases intercaladas por dois grupos – Una vela! (grupo I), Una vela! (grupo II), Un vessillo! (grupo I), Un vessillo! (grupo II), amplia a sensação de ansiedade.
O legato do início, logo se transforma numa articulação curta (stacatto) e cromática para os instrumentos de sopros, com arpejos ligados nos instrumentos de cordas e a dinâmica passa para pianíssimo (intensidade sonora mínima, quase inaudível), o coro canta colcheias pontuadas que, também, transmitem ansiedade, criando contrapontos entre instrumentos com frases ligadas em meio a vozes do coro. Esse contraste diatônico e cromático, dinâmicas suaves e fortes, articulações ligadas e curtas são o pano de fundo para toda cena I, indicando um sentimento de movimento e passagem. A abertura é, inesperadamente, crescente (Lampi! tuoni! gorghi! turbi tempestosi e fulmini!). Da tempestade e da possível derrota passa-se à salvação e à festa da vitória (Esultate! L'orgoglio musulmano sepolto è in mar; nostra e del ciel è gloria! Dopo l'armi lo vinse l'uragano). Com isso, os sentimentos expressados na Cena I, demonstram contrapontos da mudança de sentimentos entre o medo e o perigo da tempestade convertendo-se em canto de alegria e celebração da vitória sobre os turcos, assim como o sentimento de inveja e o desejo que Rodrigo possui sobre a possibilidade do barco afundar e, com isso, resultar a morte de Otello, não ser concretizado.
A análise deste pequeno trecho demonstra que Verdi, ao compor Otello, eliminou a ária considerada padrão, para a época, e as formas de conjunto as quais eram produzidas as óperas, deste modo o compositor criou uma forma estilística diferenciada. A música de Otello se move de uma cena para outra com muita dramaticidade, raramente parando, permitindo que uma melodia se desenvolva e nos mova rapidamente de um fragmento melódico para outro em toda a peça.  Assim, causa no público uma sensação de desenvolvimento contínuo, pois ao não permitir que o espectador ouça uma música resolvida em sua tônica, ele cria a sensação de constante mobilidade para a frente. 
Toda a ópera foi construída passando de um motivo melodioso para outro como uma “costura melódica”. Com isso, Verdi reserva as composições musicais genuinamente elevadas e “esculpidas” no clímax da peça, recompensando o ouvinte por manter toda a atenção nesse processo motivacional único.

Nota:
[1] Adaptation is the lifeblood of opera and has been so since that art form's inception in Italy in the late sixteenth century. 


REFERÊNCIAS
CAMATI, Anna Stegh. Sonho de uma noite de verão: do texto de Shakespeare à ópera de Benjamin Britten. Tradução em Revista: Puc Rio, Diálogos com Shakespeare: adaptações, apropriações, releituras, n. 25, p. 50-64, 2018/2.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Trad. Eduardo Brandão: revisão da trad. Marina Appenzeller. 2. ed.  São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CLÜVER, Claus. Inter textus/ Inter artes / Inter media. Tradução do alemão de Elcio Loureiro Cornelsen. AletriA: Revista de Estudos de Literatura – Intermidialidade, v.14, p. 11-41, jul./dez. 2006. 
DOURADO, Henrique Autran. O arco dos instrumentos de cordas: breve histórico, suas escolas e golpes de arco. São Paulo: Irmãos Vitale, 2009.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. 
HUTCHEON, L.; HUTCHEON, M. Adaptation and Opera. In: LEITCH, Thomas (Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017, p. 305-323.  
LEITCH, Thomas. (Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017.
MED, Bohumil. Teoria da música. Ed. 4 rev. e ampl. Brasilia, DF: Musimed, 1996.
PICON-VALLIN, B. A cena em ensaios. Trad. Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. 
VERDI, Giuseppe. Otello: in Full Score. Opera. Libretto by Arrigo Boito, based on the play by Shakespeare. Reprint originally published. Milan: Ricord, 1986.