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quinta-feira, 26 de setembro de 2019






O FIM DE EDDY: UMA REFLEXÃO SOBRE O BULLYING              

                                                                Prof. Doutor  Marcelo Alcaraz   

No mundo hodierno  o sofrimento humano é exposto na mídia de forma massiva, cotidiana. No romance O Fim de Eddy, de Édouard Louis,  a dor não se oferece como espetáculo, mas como um micro-cosmos no qual predomina a falta de empatia pelo próximo.   Na narrativa são utilizadas  dois níveis de linguagem e tempos que  dialogam, a voz que  registra o passado  opressivo e repleto de abusos e  o narrador  adulto, sem inibições e com autonomia intelectual.
O breve  romance de matiz autobiográfico foi traduzido para vinte países e  problematiza o mecanismo do Bullying  em uma  cidade pós-industrial no interior da França. Acompanha-se na narrativa  a trajetória de Eddy Bellegueulle dos sete anos de idade  até ele adentrar em  uma faculdade de teatro situada em Amiens.  
O Bullying é o grande tema do livro,  horror espelhado na maioria dos relatos do protagonista, principalmente nas situações vividas na escola. Compreendido como diminuição da humanidade do outro (PROJETO CONVIVER, 2019) esse tipo de violência se dirige ao adolescente homossexual que mora em um pequeno vilarejo.  A  presença do garoto  não passa incólume aos habitantes do  lugar: uma pessoa  vigia a outra e todos parecem prontos para expulsar quem pensa ou age de forma diferente.
A vida no vilarejo gira em torno de uma precária fábrica de latão,  tudo o que se proporciona aos meninos a partir do nascimento é direcioná-los a um trabalho insalubre. Toda e qualquer sensibilidade, intelectual ou artística, é esmagada pela escola ou pela família. O pai do protagonista também trabalha na fábrica , carrega peso demasiadamente e bebe muito  à noite,  quase não fala com o filho : “Ele e eu nunca tivemos uma verdadeira conversa. Mesmo coisas simples, bom dia ou feliz aniversário, ele parou de me dizer” (LOUIS, 2018, p.72).
No colégio o protagonista é acossado  por dois garotos que batem, cospem e o humilham: “ Eu olhava os escarros estanques na minha blusa, pensando que eles tinham me poupado ao cuspir lá, e não no meu rosto ( LOUIS, 2018, p. 45).”  Esse trecho é revelador sobre a  perversidade  humana e a impotência  de Eddy em aceitar a violência dos meninos.       
              Quando se muda para Amiens, ele  percebe a polidez dos gestos, o refinamento dos gostos.  Pela  primeira vez se dirige a uma escola sem sentir  opressão, medo ou mesmo pânico. Possui, finalmente, afinidades com pessoas cujo objetivo vital trascende o trabalho braçal  e o entorpecimento diário com bebida.
            O momento  mais impactantes da obra  é a presença dos dois garotos, antigos opressores , prestigiando-o como ator em um peça de teatro. Apesar de muito nervoso ao reconhecê-los, o protagonsita  consegue atuar sem demonstrar seu horror. No fim da peça, os antigos algozes ovacionam  seu nome e estimulam o coro da platéia. 
                    As marcas  do Bullying não se extinguem da vida do narrador, sua dor é profunda e irremediável. O  silêncio da infância se transforma  na fala de um ator seguro, contudo, não há  evidência alguma de sua cura. Se arte não o redime,  ilumina o que não pode ser esquecido.

        
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LOUIS, Édouard. O Fim de Eddy. São Paulo: Tusquets, 2018.


Acesso em 21 de julho de 2019






  

terça-feira, 24 de setembro de 2019


REQUIEM PARA TONI MORRISON (1931-2019)


Mail Marques de Azevedo
 

A escritora que elevou a literatura afro-americana ao grau máximo de visibilidade internacional, com a recepção do Prêmio Nobel de Literatura, em 1993, faleceu há pouco mais de um mês, aos 88 anos de idade. A escolha de sua obra como tema de minha tese de doutorado, intitulada The Nonessential Victim in a Persecution Text: a Reading of Toni Morrison’s The Bluest Eye, defendida na USP em 1998, iniciou-me no estudo da literatura de minorias e motivou pesquisas posteriores em literatura afro-brasileira e literaturas pós-coloniais. O aprendizado resultou não apenas da extensiva pesquisa bibliográfica realizada, mas do contato com a força vibrante da escrita de Toni Morrison, que fez de sua obra uma baliza no continuum da arte afro-americana. Como homenagem de gratidão, este trabalho comenta alguns dos traços que Morrison considerava indispensáveis para fazer de seus romances a versão impressa das estórias narradas pelo griot, o contador de estórias da tribo. Para isso buscou sempre estabelecer uma relação afetiva de partição com o leitor, num estilo elusivo, mas identificável como próprio da literatura negra: “Minha alegria é quando penso que cheguei perto, minha tristeza quando penso que não consigo chegar lá” (MORRISON, 1984, p. 340).

Para o crítico afro-americano Henry Louis Gates, Jr Morrison definitivamente chegou lá: “Toni Morrison pode bem ser a romancista mais sofisticada da história da literatura afro-americana. Na realidade, sua conquista marcante como escritora é ter conseguido excepcionalmente inventar seu próprio modo de representação literária” (GATES, 1993, p. ix). Em estilo marcadamente próprio e, ao mesmo tempo, representativo da Arte Negra, ela se utiliza do romance para empoderar seu povo a fim de que sobreviva a circunstâncias difíceis, ainda em dias de hoje.


Sei que não posso mudar o futuro, mas posso mudar o passado. É o passado, não o futuro, que é infinito. Nosso passado foi apropriado. E eu sou uma das pessoas que tem de reapropriá-lo. (MORRISON, citada em TAYLOR-GUTHRIE, 1994, p. 14-15)

Morrison reivindica inicialmente fazer com que seu povo seja ouvido e sua presença reconhecida na cultura americana. Na coleção de ensaios Playing in the Dark: Whiteness and the Literary Imagination, Morrison chama a atenção do leitor para a presença do Negro na literatura dos Estados Unidos, presença até então negada ou simplesmente ignorada pela crítica anglo-europeia. Novas interpretações da ficção americana deveriam, portanto, questionar

(...) o conjunto de suposições aceitas convencionalmente por historiadores e críticos da literatura que circulam como ‘conhecimento’. Esse conhecimento afirma que a literatura americana canônica tradicional está não apenas livre da presença que perdura por quatrocentos anos, dos africanos a princípio e, posteriormente, dos afro-americanos nos Estados Unidos, mas também nada lhes deve em termos de influência e forma. (MORRISON, 1993, p. 4-5)

            Mais ainda, Morrison acredita no papel funcional de sua literatura para o fortalecimento da cultura afro-americana, combinando função e estética. A ficção que escreve, como toda arte, é política por inerência e compromissada com o belo. Seu desafio, portanto, é burilar com a linguagem uma cosmologia e perspectiva históricas distintas, frequentemente ignoradas e esquecidas. Uma vez que a expressão artística mais notável dos afro-americanos, que é a sua música – os blues e o jazz - foi apropriada pela cultura dominante, Morrison sente-se na obrigação, como escritora negra, de usar a sua arte para expressar o seu povo.

            De fato, Toni Morrison deplora a perda da tradição afro-americana causada pelo distanciamento da vida comunal e das raízes ancestrais, em consequência da migração maciça dos negros americanos do sul rural para as cidades do norte.

Não moramos mais em lugares onde podemos ouvir essas estórias; os pais não sentam mais para contar aos filhos aquelas estórias mitológicas e arquetípicas, que nós ouvíamos anos atrás. Mas uma nova informação tem de ser transmitida, de qualquer maneira. Uma delas é o romance. (MORRISON, 1984, p. 340)

  Toni Morrison escreveu sete romances em um período de trinta anos, de O olho mais azul, em 1969, a Paraíso, em 1998: Sula (1974), A canção de Salomão (1977), Tar Baby (1981), Amada (1987) a mais conhecida, adaptada para o cinema em 1998, e Jazz (1992). Mais recentemente Amor (2003), A Mercy (2008), Voltar para casa (2012) e Deus ajude essa criança (2015). Seus romances ilustram o “registro pessoal de representação” a que se refere Gates. A autora é muito clara a respeito das perspectivas de seu trabalho:

Se for para confrontar uma realidade diferente da realidade padrão do Ocidente, o meu trabalho deve centralizar e animar informação desacreditada pelo Ocidente – desacreditada não por não ser verdadeira ou importante ou mesmo de algum valor racial, mas por se tratar de informação descrita como “lore” ou “falatório” ou “mágica” ou “sentimento”. (MORRISON, 1989, p. 2)

A informação desacreditada é evidentemente a cultura tradicional negra, transmitida oralmente, que é ignorada como produto de uma raça considerada inferior. A violência física e psíquica contra os negros marcou os quase quatrocentos anos de sua presença nos Estados Unidos da América, desde as primeiras “imigrações” para o país, até o período sombrio da emancipação, quando a alegria da liberdade arduamente conquistada logo deu lugar à realidade crua da matança generalizada de antigos escravos. Ainda se praticam atrocidades contra os negros dez anos após a abolição da escravatura, como enfatizado por Morrison em Amada:

Mil oitocentos e setenta e quatro e os brancos ainda andavam à solta. Pequenas cidades totalmente limpas de sua população negra; oitenta e sete linchamentos em apenas um ano em Kentucky; quatro escolas para negros incendiadas; homens adultos açoitados como crianças; crianças açoitadas como adultos; mulheres negras estupradas, propriedades roubadas, pescoços quebrados. (MORRISON, 1992, p. 180)

           A situação de inferioridade permanece em tempos modernos em forma de preconceito racial. A contribuição positiva dos negros na formação das características do povo americano e de seu modo de vida é totalmente ignorada. Em entrevista de 1989, Morrison revela-se profundamente entristecida a respeito da relação entre pretos e brancos.

O povo negro foi usado sempre  neste país como amortecedor para impedir (...) outros tipos de conflagrações. Se não fosse pelos negros, este país já estaria balcanizado. Os imigrantes teriam cortado as gargantas uns dos outros, como fizeram em outros lugares. Mas quando se tornam americanos, vindos da Europa, o que têm em comum é o desprezo que sentem por mim – é simplesmente uma questão de cor. De onde quer que venham, unem-se para dizer “Eu não sou isso”. Nesse sentido, tornar-se americano baseia-se numa atitude: que exclui a mim. Para eles não era negativo – era unificador. Quando desciam do navio, a segunda palavra que aprendiam era “nigger”. (ANGELO, 1994, p. 255)

Os imigrantes veem-se em situação de crise emocional, física e social aguda. A perda de todos os pontos de referência pode ser compensada direcionando a frustração contra os que lhe são inferiores em todos os aspectos, na perversa escala social do novo país. A ideia de uma vítima – o negro (nigger) – que polariza a agressividade de grupos sociais revela o mecanismo de perseguição por meio do qual a angústia e a frustração coletivas – de imigrantes em face do desconhecido – encontram apaziguamento vicário. A violência praticada contra os afro-americanos, transformados em bode expiatório do grupo social majoritário, é sistemática em toda a história da escravidão e de suas consequências, nos Estados Unidos.

A violência física e psicológica é denominador comum em todos os romances de Morison. Pecola é vítima do ódio concentrado de toda uma comunidade. Sula torna-se pária em sua comunidade, que sente apenas alívio com a morte da personagem. Pilate, a feiticeira benévola de Canção de Salomão, e Baby Suggs, a pregadora africana em Amada, são sacrificadas à dissensão e ao ciúme comunal. Sethe, a mãe escrava fugitiva, no mesmo romance, mata o bebê “que já engatinhava” para impedir que fosse reconduzida à escravidão. Dorcas, a sedutora jovem de Jazz é assassinada pelo amante, num ímpeto de paixão. Durante o funeral, a esposa enraivecida retalha o rosto da morta.

São breves referências que ilustram também o caráter ritualístico da violência nos romances de Morrison, com o envolvimento da comunidade no sacrifício simbólico da vítima. A vítima é principalmente a mulher, o bode expiatório do grupo social majoritário e de uma sociedade patriarcal, cujos membros femininos ocupam a mais baixa das posições na escala social, na percepção de que “não são nem brancas nem homens, e todo tipo de liberdade e triunfo lhes é proibido”, nas palavras do narrador onisciente em Sula (MORRISON, 1973, p. 53).

Decorre dessas considerações a escolha de um dos romances de Morrison para ilustrar a vitimização ritualística da mulher negra como bode expiatório, em um texto de perseguição, como caminho para aprofundar o conhecimento de sua arte literária, em minha pesquisa de doutorado. Por que especificamente O olho mais azul? Com a ação firmemente localizada no espaço e no tempo, a cidade de Lorain, Ohio, no período 1940-1941,, o romance tem características quase históricas contra o pano de fundo das grandes ondas migratórias que levaram milhares de negros do sul agrário para as fábricas e indústrias dos estados do norte e do meio oeste. Foi considerável o impacto cultural sobre pessoas que viviam geralmente em comunidades exclusivamente negras, gerando conflitos e desajuste social. É o contexto ideal para examinar a ação das diferenças e limitações sobre o individuo, e como o sujeito negro reage quando se confronta com as consequências de sua “dupla condição de negro e americano”, na seminal postulação de W.E.B. Du Bois.

A leitura realizada confirmou o caráter de texto de perseguição do romance, mas a compreensão do propósito estético de Morrison de criar uma arte caracteristicamente negra exige que sua obra como um todo seja lida, em contraposição, como texto de resistência, na forma de metáfora estendida do estupro do povo negro por um sistema social injusto.

Os quatro romances da autora, publicados no século vinte e um, confirmam seus propósitos estéticos e a determinação de fazer de sua obra um meio de preservar as tradições culturais afro-americanas. Seu último romance Deus ajude essa criança, publicado em 2015, fecha o ciclo iniciado quase cinco décadas antes, em 1969, com The Bluest Eye. À semelhança de Pecola, a heroína, Lula Ann Bridewell, é discriminada por ter pele profundamente escura. O bebê negro ao nascer provoca surpresa e repulsa: o pai abandona a família e a mãe educa a menina para tratá-la pelo nome, Sweetness, ao invés de chamá-la de mãe. Estão lá os sinais de alteridade: aquele indivíduo que por ser radicalmente diferente, pelos traços físicos ou pela estranheza de costumes, é visto como ameaça em potencial. Em comum com o romance de 1969, os ideais de beleza ligados à pele e aos olhos claros, hoje, como em 1940, propagados pela mídia. Pecola enlouquece, acreditando ter conquistado os olhos azuis que a fariam amada. Bride é uma mulher de sucesso profissional, mas que tem igualmente dificuldade em encontrar o amor. No romance, excepcionalmente situado em tempos atuais, Morrison reafirma as diretrizes de sua obra magistral irrevocavelmente dedicada a preservar a identidade cultural afro-americana: denunciando a violência contra os negros, particularmente a mulher; escrevendo a partir de seu povo e para o seu povo; reivindicando o direito de posse do próprio passado e usando modos literários não realísticos condizentes com suas raízes africanas.  
 

REFERÊNCIAS

ANGELO, B. The Pain of Being Black. An Interview with Toni Morrison. In TAYLOR-GUTHRIE, D. (Ed.) Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press of Mississippi, 1994. 

GATES, JR., H. L. Black Literature and Literary Theory. London: Routledge, 1990.

MORRISON, T. The Bluest Eye. New York: Washington Square Press, 1972.

______ . Rootdness: The Ancestor as Foundation. In EVANS, M. (Ed.) Black Women Writers (1950-1980): A Critical Evaluation. New York: Anchor Press, Doubleday, 1984. 339-345.

______. Beloved. New York: Plume, 1988.

______ . Memory, Creation and Writing. In OTTEN, T. The Crime of Innocence in the Fiction of Toni Morrison. Columbia: Un. of Missouri Press, 1989, p. 2.

______ . Playing in the Dark. Whiteness and the Literary Imaginarion. New York: Vintage Books, 1993.

TAYLOR-GUTHRIE, D. (Ed.) Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press of Mississippi, 1994.  






 

A PRESENÇA DE HANS ULRICH GUMBRECHT

 

Profa. Dra. Greicy Pinto Bellin (UNIANDRADE)

 

 
Hans Ulrich Gumbrecht, professor e pesquisador da Universidade de Stanford, ministrou o minicurso intitulado “O leitor não-profissional de literatura e seus desafios”, no XI Seminário de Pesquisa - III Seminário de Dissertações em Andamento – Semana de Iniciação Científica de Letras do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE, que aconteceu entre os dias 18 e 20 de setembro de 2019 no campus em Santa Quitéria. O minicurso versou sobre as características do leitor não-profissional de literatura e seus desafios nos dias de hoje. Aproveitando a presença de Gumbrecht ente nós, abordarei, neste breve texto, a importância de seu pensamento para a teoria literária contemporânea, apontando para um percurso teórico que transita entre várias áreas do conhecimento e que, talvez por este mesmo motivo, não perca a sua vitalidade.
Uma das grandes contribuições do estudioso não apenas para a teoria literária como também para o campo da intermidialidade é a organização, em 1988, da coletânea Materialidades da comunicação, publicada pela editora Suhrkampf Verlag no mesmo ano em Berlim. A obra representa um verdadeiro turning point na forma de se pensar nas relações entre literatura, artes e outras mídias, instaurando um entendimento sobre as materialidades da comunicação, isto é, as experiências estéticas advindas da produção de sentido de um texto. Gumbrecht contribui, neste sentido, para a ruptura com uma tradição hermenêutica forte na academia brasileira, permitindo-nos pensar a respeito da concretude da obra literária, capaz de produzir presença, termo utilizado para se referir à esfera do não-hermenêutico, de tudo aquilo que não se encontra no campo da interpretação e do sentido. Exemplar sob este aspecto é a obra Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir, publicado em 2010, que se inscreve no panorama da chamada “crise da representação”, tão cara ao pensamento pós-moderno e ao que Otávio Leonídio chama, em seu prefácio, aos “arautos da desconstrução”. Influenciada por pensadores como Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, que foi, aliás, seu orientador de pesquisa, a obra de Gumbrecht é muito importante para a estética da recepção pelo fato de investigar as relações entre obra e receptor por meio da exploração da ideia de presença ou stimmung, para usar o termo em língua alemã. Outra contribuição relevante de Gumbrecht é a obra Modernização dos sentidos, publicado em 1998, em que ele amplia, com lucidez, o entendimento do conceito de modernidade desde a Idade Média até o século XXI. Esta obra é basilar em bibliografias de cursos de pós-graduação no Brasil todo, o que reforça a sua relevância e potencial de atuação entre pesquisadores de diversas áreas.
Uma característica marcante do estudioso é sua abertura para diálogos dos mais variados tipos com intelectuais e acadêmicos brasileiros. Gumbrecht esteve no Brasil pela primeira vez em 1977, na condição de professor visitante na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Travou diálogos intensos com Luiz Costa Lima e João Cezar de Castro Rocha, tendo resenhado, em 2013, o livro Machado de Assis: por uma poética da emulação. Criou verdadeira tradição em receber orientandos brasileiros na Universidade de Stanford, contribuindo para a internacionalização da pesquisa brasileira de forma coerente e consistente. Seus orientandos, aliás, são unânimes em afirmar que Sepp, como gosta de ser chamado pelos mais íntimos, dá total liberdade para o desenvolvimento de pensamentos e teorias próprias, o que é altamente salutar e desejável para a formação de um pesquisador. Em entrevista dada para o Estado de S. Paulo em 2016, por ocasião de sua vinda para o congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), Gumbrecht admitiu que o intercâmbio com os brasileiros foi e ainda é de fundamental importância para lapidar as reflexões desenvolvidas em sua obra, que transita não apenas pela literatura, mas pela história, filosofia, filologia, estética, história e antropologia.
Em tempos em que se dissemina a crença de que forma literária e processo social estão imbricados, conforme nos diria o já falecido crítico Antonio Candido, o pensamento de Gumbrecht, mas especificamente o exposto em Produção de presença, não nos deixa esquecer que somos seres biológicos com uma existência material concreta. Não se trata de negar a existência do social e/ou do histórico, mas de reafirmar a primazia do estético e, por conseguinte, da literatura como experiência estética compreendida a partir das materialidades da comunicação, as quais são de fundamental importância para o entendimento do fenômeno literário em todas as épocas e em todas as suas nuances.
No XI Seminário de Pesquisa deste ano, circulou, entre os participantes, a edição especial de crítica literária do Jornal RelevO, organizada por Greicy Bellin, professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE, e Daniel Zanella, jornalista e aluno da instituição. A edição conta com artigos de ex-orientandos de Sepp Gumbrecht e traduções, tanto do inglês quanto do alemão, de autoria de Greicy Bellin, Anna Camati e Sigrid Renaux, professoras eméritas do Mestrado. Entre estas traduções, está uma biografia de Michel Foucalt, um dos teóricos mais relevantes da contemporaneidade. Merece especial atenção o artigo “Gelassenheit e seus descontentes: algumas reflexões sobre a obra de Hans Ulrich Gumbrecht”, de autoria de João Cezar de Castro Rocha, no qual o estudioso realiza um percurso instigante pela obra de Sepp, como gosta de ser chamado por seus amigos. O simpático e afetuoso pensador alemão agradece.     
 
Referências
ANTONIOLLI, Juliano Francesco; BATALHONE JR, Vítor. Entrevista com Hans Ulrich Gumbrecht. Aedos: revista do corpo discente do PPG-História da UFRGS, Porto Alegre, v. 5, n. 2, 2009, p. 152-159. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/12072/7331 Acesso em: 08/08/2018. 
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
_________. Modernização dos sentidos. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Editora 34, 1998. 
________; PFEIFFER, Ludwig. Materialities of communication. Stanford: Stanford University Press, 1994.
PETRONIO, Rodrigo. A arte-vida de Hans Ulrich Gumbrecht. Revista Caliban, São Paulo, 2016. Disponível em: https://revistacaliban.net/a-arte-e-a-vida-de-hans-ulrich-gumbrecht-123246dfcb Acesso em: 08/08/2018.
RIBEIRO, Claudio. Uma filosofia da presença. O Estado de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/hans-ulrich-gumbrecht-todo-o-passado-de-que-conseguimos-lembrar-esta-presente-quase-que-de-maneira-fisica-em-nosso-presente/ Acesso em: 08/08/2018.
ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
 
 
 
 
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2019


DUAS ESTÉTICAS QUE ILUSTRAM PROXIMIDADES E DISTÂNCIAS

 

Prof. Dr. Edson Ribeiro

 

É bastante conhecida, entre historiadores da arte, a frase de E. H. Gombrich, (1988, p. 411) em sua História da Arte: “Manet é Flaubert; Courbet é Zola”.

O historiador apontava, na pintura, a diferença mais marcante entre o Realismo e o Naturalismo, nos dois escritores que pontificavam nas duas estéticas, na França da segunda metade do século XIX.

Está-se diante de uma obviedade, quando se atenta para aquilo que Luiz Costa Lima (2003, p. 179s) chama de “mimesis da representação” ou da realidade, ou seja, a representação estética como cópia daquilo que constitui o real. Essa mimesis representa, para Costa Lima, uma característica da arte feita antes da modernidade. No entanto, ela está ali. Em Courbet, não há nenhuma surpresa em se enxergar essa cópia como tentativa de documento. O real naturalista não traz, de fato, nada que se possa considerar como novo, em termos daquilo que define qualquer arte: os elementos que compõem sua linguagem.

Courbet não nos nega nada; também não nos entrega nada:


Figura 1: COURBET, Gustave.  Moças peneirando trigo.  Óleo sobre tela. 1854.  Museu de Arte de Nantes.


A preocupação com a representação do real, como cópia, leva o pintor a procurar técnicas que não se pareçam, por exemplo, com o Barroco de Weermer, com suas texturas e efeitos de luz. Courbet só quer a cena, dizer ao seu público que é possível representar a realidade feia de forma dura. Se o movimento da moça não harmoniza as partes da pintura, é considerada brusca, ao mesmo tempo ele chama a atenção para a representação da realidade como documento. Costa Lima não veria, nesta técnica, aquilo que chamou de “mimesis da produção” ou da modernidade. Ou seja, a obra não pretende desnudar, a quem a contempla, a sua própria produção.

Pode-se ver Émile Zola na pintura de Gustave Courbet. Como estética que copia para chamar a atenção para a coisa copiada; a técnica fica a serviço desse real. Trata-se de uma arte que não chega a ser transparente, mas que também não faz da opacidade um contrato de recepção. Basta ler-se o começo de Germinal e a mesma recepção, baseada na transparência e na atenção para a coisa representada, chama a atenção:

 

Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. A sua frente, não enxergava nem mesmo o solo negro e somente sentia o imenso horizonte achatado através do sopro do vento de março, rajadas largas como sobre um mar, geladas por terem varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se reta como um quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas.

O homem partira de Marchiennes lá pelas duas horas. Caminhava a passos largos, tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta e da calça de veludo. Um pequeno embrulho, feito com um lenço de quadrados, incomodava-o bastante; ora o mantinha apertado debaixo de um braço, ora de outro, para poder assim enfiar no fundo dos bolsos as mãos entorpecidas que o açoite do vento leste fazia sangrar. Uma única idéia lhe ocupava o cérebro vazio de operário sem trabalho e sem teto, a esperança de que o frio se tornasse menos agudo com o romper do dia. Havia uma hora que ele caminhava assim, quando percebeu à esquerda, a dois quilômetros de Montsou, uns clarões vermelhos, três braseiros queimando ao ar livre, e como suspensos. A princípio hesitou, tomado de receio; mas logo após não pôde resistir à necessidade dolorosa de aquecer por um instante as mãos. (ZOLA, 2006, p. 8)
 

Germinal é de 1885. Época em que as artes já tinham se acostumado a representarem-se como linguagem opaca. O romance de Zola, tal como a pintura de Courbet, está preocupada com a coisa representada. É um modelo de arte que vai influenciar a modernidade brasileira. Um realismo exacerbado mas que permanece como mimesis da realidade. É difícil ver modernidade ali.

A mimesis da produção é o que diferencia a modernidade da arte feita antes. Mostrar a obra como linguagem e evidenciar seus modos de produção constituem, para Costa Lima, a revolução que dá origem à arte moderna. Para a obra moderna, não interessa copiar o real, mas fazer da própria obra a realidade que interessa.

E Costa Lima toma como marcos do início da modernidade, da mimesis da produção, tanto Baudelaire quanto Flaubert. Madame Bovary, em 1857, inaugura a literatura como obra que se mostra como tecnicamente perfeitamente. É preciso que o leitor a desmonte, que entenda que ali há recursos de linguagem que se destacam da coisa representada, Como mimesis da produção, a modernidade passa a demandar um público que atente para as técnicas, que compare obras e forme aquilo que um dia Wolfgang Iser (1996, p. 101) iria chamar de “repertório”, ou seja, estar de posse dos recursos de que a arte dispõe como linguagem e não como imitação do real.

Gombrich estava certo. Édouard Manet é ainda o precursor da técnica que iria criar a pintura moderna e desencadear as vanguardas em todas as artes. O Impressionismo é ainda um sintoma de opacidade da linguagem, pois Manet é considerado um realista. Seu modo de representar a luz e sua atenção para imagens que valem apenas como motivos para serem representadas fazem dele alguém que chama a atenção para a técnica. Tal como Flaubert, o pintor tem sua obra atacada, proibida, vista como indecente:
 

Figura 2: MANET, Édouard. O almoço sobre a relva. 1863. Óleo sobre tela. Paris, Musée d'Orsay.


No quadro de Manet, não existe aquele realismo documental que, às vezes, é confundido com a verossimilhança. Percebe-se um modo ousado de a obra mostrar-se como linguagem e não realidade. As duas figuras humanas que olham para quem as contempla, que pode ser o pintor que as retrata, tentam passar uma impressão de gratuidade: por que alguém as retrataria em momento tão banal como um almoço? Há sobras de comida. A realidade como cópia não justifica a nudez das mulheres. O que seria uma fuga do real sem se chegar à mitologia. A atenção de Manet para a luz faz com que os pés e os cotovelos da moça toquem de modo irreal aquilo em que se apoiam. A atenção para a paisagem, como representação da luz e não como reprodução de uma realidade considerada digna de ser pintada é uma marca da mimesis da produção nessa obra.

Esse realismo de Manet é, de forma recorrente, chamado de representação da psicologia das figuras pintadas. Haveria, já aí, uma intenção de mostrar aspectos conflitantes da psicologia humana. Meandros como os que Flaubert, como realista que construía sua narrativa a partir de pontos de vista internos, sem a preocupação com grandes painéis, alinhava e faz com que suas cenas, aparentemente fortuitas situações de vida de província, sejam pretextos para construções narrativas arquitetônicas. Ou polifônicas. Uma cena de Madame Bovary pode ser enxergada em Manet. A vida sensual da protagonista, que apenas se entrega, sem que isso precise ser explicado se não como construção romanesca, constrói a mimesis da modernidade. Não é necessário que se recorra a práticas de explicação de comportamentos a partir de uma causalidade para que se negue aquilo que Costa Lima enxerga na obra: sua natureza como mimesis de si mesma, obra que demanda um leitor que reconheça os elementos que formam a narrativa literária.

Tal como em Manet, uma cena fortuita. Não há como se exemplificar, evidentemente, a natureza de mimesis da produção de Madame Bovary em poucos trechos. Mas a condição de cena fortuita da pintura pode ser percebida:

 
Algumas vezes pensava que aqueles eram, apesar de tudo, os mais belos dias da sua vida, a lua-de-mel, como se dizia. Para lhe saborear a doçura, teria sido necessário, sem dúvida, partir para aqueles países de nomes sonoros onde os dias imediatos ao do casamento têm mais suaves ociosidades! Em confortáveis assentos de mala-posta, sob cortinas de seda azul, sobem-se a passo caminhos escarpados, ouvindo a cantilena do postilhão, que ecoa na montanha com os chocalhos das cabras e o ruído surdo da cascata. Quando se põe o Sol, respira-se à beira dos golfos o perfume dos limoeiros; depois, à noite, nos terraços das vivendas, a sós, com os dedos entrelaçados, contemplam-se as estrelas e fazem-se projectos. Parecia-Lhe que certos lugares da Terra deviam produzir felicidade, como as plantas próprias de um terreno que se desenvolvem mal noutro lugar. Não poder ela debruçar-se à varanda dos chalés suíços ou encerrar a sua tristeza numa casa de campo escocesa, com um marido trajando casaca de veludo preto, com grandes abas, botas flexíveis, chapéu bicudo e punhos de renda! (FLAUBERT, 2000, p. 39)

 
A cena faz pensar no que as figuras de Manet poderiam estar pensando. Essa felicidade gratuita, aqui, motiva inúmeras interpretações. A literatura não tem como evitar. Seu realismo acaba sendo explicação. Na pintura, o real pode ser apenas uma imagem.

Sim, Gombrich compara estéticas e, ao fazê-lo, ilustra com o que aparece como imagem do real, tanto na pintura quanto na literatura. Mas é preciso ver mais nessa comparação: a mimesis da modernidade está escancarada em Manet, assim como em Flaubert; Courbet e Zola são copistas da realidade. Não há que se ver neles a grande invenção, a técnica revolucionária, como é saliente nos outros dois.

 
 

FLAUBERT, G. Madame Bovary. Tradução de Fernanda Ferreira Graça. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000.

GOMBRICH, E. H. História da Arte.  Tradução de Álvaro Cabral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Volume 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

LIMA, L. C. Mímesis e modernidade. Formas das sombras. 2ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2003.

ZOLA, E. Germinal. Tradução de Francisco Rage Bittencourt. 2ª ed., São Paulo: Martin Claret, 2006.