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quinta-feira, 30 de maio de 2019

 
Os líderes da nova geração
 
Professora Dra. Sigrid Renaux
 
Na revista TIME de 27 de maio de 2019, o artigo “Next Generation Leaders”(p. 32-43) apresenta a trajetória de dez jovens que estão transformando  seus campos de atuação  no mundo inteiro -  seja na política, na música, no YouTube, entre outros. Além de constarem, entre eles, um boxeador refugiado, uma dançarina de flamengo, um divulgador de notícias no  YouTube, consta igualmente um brasileiro: David Miranda. Como comenta Ciara Nugent, autora do artigo sobre  Miranda, nas primeiras semanas no Congresso em Brasília ele estava assustado demais para usar o microfone: negro e gay, ele acabava de assumir a cadeira de um colega que  fugira do Brasil após receber ameaças de morte por homofobia. Miranda, de 34 anos, que cresceu na favela de Jacarezinho no Rio de Janeiro,  destaca-se entre os membros do Congresso composto por maioria branca  e, por esta razão, vindo de uma comunidade marginalizada,  significa que ele  nunca pôde  ignorar a política. Em 2016 Miranda foi eleito como membro da Prefeitura do Rio, assim como  o havia sido Marielle Franco, ativista assassinada  no ano passado. Miranda afirma que também está recebendo ameaças de morte, mas continua determinado a falar pelas comunidades mais vulneráveis, a exemplo de Marielle. O artigo termina com as palavras de Miranda: “Preciso assumir tudo que ela fez e continuar indo adiante”. Acreditamos que esta trajetória, tão significativa para nós brasileiros, demonstra mais uma vez como  coragem e determinação superam todos os obstáculos.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Trechos de “Romance odiado”

 Paulo Sandrini *

 
XII.

A partir de agora, tudo é motivo para um exorcismo ao pavor da morte, ao medo da dor. Não sei se cairei no bisturi. Em sessões de quimioterapia, radioterapia, essas canalhices que nos fazem sofrer e mesmo assim nos deixam embalados de presente para a morte, com lacinho e cartãozinho de dedicatória e tudo. 

Sou uma espécie de Mario Levrero, o uruguaio que se disse transformado em um canalha, que abandonou por completo toda pretensão espiritual. Eu, de modo distinto ao dele, passei tempo me dedicando também a ganhar dinheiro (e Levrero ganhou pouco, claro; eu, não), e não tive de trabalhar em um escritório em Buenos Aires. Ganhei escrevendo livros sem grandes intenções de transformação (abandonei como Levrero a pretensão espiritual). Escrevi romances dramáticos, mas todos foram dramas falsos. Se a literatura pode ter algo de muito, muito falso, a mais falsa das falsidades é quando um escritor escreve um drama sem senti-lo, sem ter nesse drama algo que se identifique realmente com ele, agindo apenas como um ferreiro que forja o metal, que depois de resfriado recebe um fio bem cortante que vai machucar a alma alheia, mas nunca, nunca a de quem escreveu, de quem forjou esse metal frio e afiado do falso drama. Isso é o que sou: um falso drama. Sou daqueles que sempre postergam o ato honesto da confissão. 

Fato é que, agora, me ponho a procrastinar não apenas a escrita mas sobretudo o conhecimento dos resultados dos exames que Berrini tem em mãos. Exorcizar o pavor da morte. É isso. Quero evitar médicos, análises, consultórios, salas de cirurgia e enfermeiros, mesmo que tenha algo grave a ser extirpado de mim. Lembrando outra vez Levrero em seu “Diário de um canalha”, quero me livrar desse processo infalível diante do qual serei transformado em um objeto apenas um pouco mais que material. E uma vez que a sociedade, diz Levrero, ou parte da sociedade perde a noção de alma, ou de espírito, tratando o ser vivo como puramente material, mais adiante a tortura e o crime advêm quase que naturalmente, como resultado. Que mal há em despedaçar um objeto?

Por outro lado, soo a uma besta paradoxal, que fala em espírito e exalta Cioran. Entre Levrero e Cioran? Fico com a desilusão destruidora dos dois. Sou apenas um dos diluidores de suas ideias, e não tenho nada de verdadeiro. Não penei como escritor, não tive de passar anos, até o fim da vida, comendo no bandejão da Sorbonne, como Cioran, para não passar fome. Nem tive de fazer de tudo para ganhar a vida como Levrero. Sou um sortudo. Apenas um sortudo que paradoxalmente se deu mal por não enfrentar uma escrita mais comprometida (ao menos comigo mesmo) e por não contar aquilo que realmente vem de mim. Sou um impostor. Dos piores.

Amanhã, ligarei para Mariana, para acertar minha ida até seu país de conto de fadas e certamente de enfado.

Londres amanhece brumosa, como convém. Vou caminhando, cortando parques e ruas vazias do sul londrino. Depois, tomo um táxi e desço na rua Oxford, que hoje se parece a qualquer região comercial de uma cidade grande qualquer. As mesmas lojas, as mesmas marcas, vitrines desestimulantes e restaurantes de fast food. O charme a mais, no momento, são as lojinhas de alimentos saudáveis que proliferam por aqui. Mas esse conceito de saúde me parece o mais doentio possível, pois nada nos pode salvar, na maioria das vezes, de nos sentarmos para mastigar, solitariamente, nossos reveses em restaurantes repletos de boas intenções, e que, apesar dos ingredientes saudáveis, nos alimentam de pura amargura e ansiedade. 

Pelas calçadas tumultuadas, estrangeiros e britânicos levam no peito frases em inglês. Tudo se iguala. O Ocidente aniquila tudo e todos. E o Ocidente vem fabricado, agora, da China. É uma nova civilização: Sino-Ocidental. O mundo já não é diferente, em todos os lugares é o mais do mesmo. Tudo é visível, tudo é visto em qualquer parte. Ao mesmo tempo, a possibilidade de ver algo com profundidade desvanece no momento mesmo em que começamos a tentar ver, pois sempre surge algo para que deixemos de lado o que estamos observando para já nos colocarmos atrasados na tentativa de apreender alguma novidade. O planeta Global é cansativo. A Babel turística de Londres é inebriante; por outro lado, a Palavra como ponte real entre todos esses seres distraídos caminhando pelas cidades cai no ostracismo. Em Londres, todos olham vitrines, mas quase ninguém se encoraja a olhar nos rostos. Basta olhar as superfícies.  Os olhares penetrantes se resumem a atravessar os vidros das vitrines. É a profundidade máxima que se pode atingir. Seguimos num caminho que certamente dará na exclusão inexorável do olhar. E ao olhar com dedicação, entrega, afeto e outras paixões mais convulsivas, que alteram nossa percepção, resta-nos ter consciência de que isso vai perdendo suas nuances e matizes mínimos; e assim os olhos, mesmo sem cerrar as pálpebras, se fecham.

XIII.

Em Londres me ponho a refletir sobre a duração do tempo quando estamos em viagem. Dois dias aqui e me parecem muito mais, como se num curto intervalo houvesse se esgotado o espaço da cidade. E olha que fiz pouco por aqui.  Uma fração de hora ganha o status de um Dia Inteiro, coisas que fiz há pouco parecem ter acontecido ontem ou anteontem. Alguns defendem que a vida contemporânea comprime o tempo, deixa-o mais rápido e os dias são mais curtos, os meses e os anos. Mas tenho outra sensação; uma hora aqui, sobretudo em viagem, em deslocamento, parece durar muito mais, há um retrocesso no tempo que me dá chances de viver mais de um dia em somente um dia.

            A ausência de Mariana me aflige. Ando por Londres como se andasse pela terra devastada do poema de Eliot. Em meio à multidão, meu vazio existencial me agride ainda mais. Estou esperando pelo Grande Nada. Sinto dores, agora mais fortes. Pode ser algo que piore com o frio. Ou pode ser mesmo o frio que chega com a morte. Vou caminhando, esbarrando por vezes em mulheres de burcas negras que saem correndo das lojas de grife, abarrotadas de sacolas, e entram tão rápido quanto saíram de grandes carros de luxo. O petróleo negro. A burca negra. O petróleo que faz com que as de burcas negras comprem tudo o que há nesse buraco negro que é o comércio de luxo. Todo esse negro que vem em minha mente piora como o negror do céu londrino. Tudo é úmido e cinza escuro. As pessoas estão cinzas. Eu me sinto aflito. É a falta de contato. A falta da fala. Sinto ainda mais isso aqui, neste lugar em que quase ninguém fala minha língua. Em meu país, os que falam minha língua geralmente não me interessam. Tento fugir da minha misantropia aqui, em Londres. Talvez seja a pior escolha. Mariana está me deixando no vazio, no escuro. Tínhamos combinado. Eu vou pra lá depois de amanhã. E ela nada de entrar em contato. Assim mesmo, vou. Tenho o endereço e Liubliana não é Moscou.  Me sinto péssimo. Tudo para o que olho me aflige. Uma espécie de pânico. De temor de chegar ao fim tendo feito muito pouco por minhas relações afetivas. Sempre fui um hedonista. Sempre um calhorda, canalha, mentiroso ficcional. Na verdade, o que vem tomando conta de mim nos últimos tempos é o desespero. A solidão máxima. Precisava encontrar Bertolt, mas ele não pode sair do trabalho. Assim mesmo ligo, e enquanto procuro o número dele na agenda do celular, mais uma vez me lembro de Cioran, sempre o maldito Cioran, mas desta vez, lembro-o por um de seus lados, se assim devo dizer, não pessimista.

            Lembro-me de ele ter comentado uma vez numa entrevista sobre suas visitas aos cemitérios e sobre a consciência do Nada. Diz que uma vez encontrou uma moça conhecida e ela estava desesperada por conta de um problema afetivo. Então ele lhe sugeriu que visitasse o cemitério de Montparnasse, e ficasse por ali um tempinho, com isso veria que sua tristeza iria parecer tolerável. Ir ao cemitério, segundo o filósofo romeno, é melhor do que consultar um médico, é uma lição de sabedoria praticamente automática. E completa, perguntando o que se pode fazer por uma pessoa em desespero profundo. Nada ou mais ou menos nada, ele mesmo responde. O único modo de suportar o vazio do desespero é ter essa consciência do Nada. Se não fizermos assim, a vida não pode ser suportável. Com a consciência do Nada, tudo que nos acontece ganha proporção normal e assim deixa de assumir proporções dementes que são os traços marcantes da exageração em momentos de desespero.
 
XX.

Não tive coragem. Deixei-a me esperando. Isso, se ela foi realmente ao local combinado. Ela já é o passado de uma relação promissora. Ela é o medo de que eu tanto necessitava. O medo que me faz ir adiante para logo voltar ao lugar de origem. Ela é a encarnação de várias outras situações me dizendo que sempre haverá desencontros. Frustrações. Me dizendo que as buscas nunca se concretizam. É como um manual de autoajuda ao contrário. A vida é sempre uma busca ansiosa sem ponto de chegada. Inexaurível. A vida é a insônia. O tempo lento e dilatado das amarguras e esperas por momentos mais sãos que, se chegarem, vão desaparecer num átimo de segundo, fazendo cócegas em nossas mãos, sem nem dizer adeus, tudo para provar que nunca estiveram por perto.  E logo virão novas ansiedades. Todas as noites serão longas. Todas as esperas te perseguirão. Até que você todo seja constituído de um tempo que se esgota sem pressa, um tempo obeso de possibilidades que se transformará em seu sistema nervoso; um tempo morno que aquecerá e se tornará sua carne resignada, um tempo espesso de demoras que constituirá sua ossatura.  Você: sobrepeso de possibilidades. Você: carne morna e resignada. Você: esqueleto de esperas óbvias jamais concretizadas.  Você e o tempo rastejante. Você e o tempo-verme. O tempo longo. O tempo-trem que range suas rodas numa estrada de ferro rumo ao leste. O leste lento.  A peste negra do tempo esticando-se, esticando suas noites. Transformando seus dias em noites. Suas luzes sempre acesas. Você, sempre alerta. E se prolongando junto ao tempo para que as esperanças se mantenham. Para que a vida se mantenha. Eterna e imutável. Como você nunca quis. Como você sempre quis. Assim, fugindo dos encontros. Torcendo para que deem errado. Fazendo com que tudo dê errado. E mesmo quando é para dar certo, você, inconscientemente, sabe: não vai dar certo. Tudo continuará como espera. E assim você seguirá. Sendo seu próprio tempo, confundindo-se com ele, com a sua própria espera, sua própria demora em chegar, sua própria eternidade prolongando uma vida lenta, sem nenhum risco. Sem o risco dos encontros que afligem, acariciam e arranham a pele seca, escamosa, da sua vida de serpente-tempo-rastejante.


* Paulo Sandrini é escritor, autor de livros de contos e romances, entre eles “O estranho hábito de dormir em pé” (2003), “Osculum obscenum” (2008) e “Peixes coloridos de alto-mar” (2017). É editor da Kafka Edições, mestre e doutor em Letras pela UFPR. Atualmente é professor do programa de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade (Curitiba).

segunda-feira, 13 de maio de 2019


Morgan Lloyd Malcolm dá vida à Dark Lady de Shakespeare.
Mail Marques de Azevedo
 
               Contratada pela diretoria artística do Globe Theatre para escrever uma peça sobre a intrigante Emilia Bassano, que poderia ter sido a Dark Lady dos sonetos de Shakespeare, a dramaturga e scriptwriter Morgan Lloyd Malcolm dá vida à personagem em Emília, encenada em setembro de 2018. A análise do processo da construção da peça e de sua protagonista constituiu a base do trabalho que apresentamos ao seminário Shakespeare and Cultural Appropriation, durante a 47ª reunião anual da Shakespeare Association of America, de 17 a 20 de abril, em Washington D.C. O estudo põe em destaque o sucesso da concepção e execução da peça como libelo contra a discriminação do “outro” – a mulher e o estrangeiro – e o eco desses preconceitos em obras literárias posteriores.
 
                 São escassas as informações sobre a Emília Bassano histórica: viveu de 1569 a 1645, era filha de um músico italiano da corte; foi mãe e professora e, fato inédito na época, publicou um livro de poesia em seu próprio nome. Lloyd Malcolm faz dela uma protofeminista em luta pelos direitos da mulher, num espetáculo que congrega comédia, drama, teatro musical e paródia. O elenco, exclusivamente feminino, compõe-se de treze elementos que representam mais de um papel. A cor dos trajes, vermelhos para os homens e azuis para as mulheres, ajudam a definir quem é quem (Fig 1).


Figura 1. O elenco de Emília. Fonte:

               Três atrizes representam o papel título como Emilia1 Emilia2 Emilia3, em três períodos temporais (Fig 2).

 

Figura 2: Emilia1, Emilia2, Emilia3. Fonte:

 

  
           No prólogo, Emília3, a personagem em idade madura, lê fragmentos do diário do astrólogo Simon Forman, seu contemporâneo, única informação direta disponível sobre Emília Bassano Lanier, a quem o diarista acusa levianamente “... ela é ou será uma prostituta” e acrescenta palavra contemporânea de baixo calão. Movendo apenas os lábios, Emilia3 traduz a palavra desconhecida para a plateia e, a seguir, anuncia que o título da peça, Emilia, lhe fora sugerido em sonhos. Em one fell swoop, como diria Shakespeare, Lloyd Malcolm transfere a autoria para sua personagem e introduz o tema da misoginia: uma mulher que fora amante de um nobre e está no momento destituída de recursos, deve, certamente, viver da prostituição. Na esperança de reverter a visão negativa, Lloyd Malcolm publica os poemas de Bassano juntamente com a peça, a fim de “expô-los através de uma lente diferente”, em suas próprias palavras.
 
            Decorrem daí as linhas diretivas deste trabalho, que examina como Lloyd Malcolm chama a atenção do público não apenas para a poesia de Bassano, mas para os obstáculos que enfrentou no contexto sociocultural da Renascença na Inglaterra. Focalizam-se, portanto, dois aspectos relevantes da peça: 1) a relação entre os sexos como reflexo da inferioridade social da mulher; 2) a apropriação do Shakespeare histórico como amante de Emilia e porta-voz das normas que regulam o comportamento feminino na sociedade elisabetana. Avançando um passo no terreno da ficção, como a personagem-título fica arrasada ao descobrir que seu amado introduzira na fala de seus personagens expressões de carinho dos momentos íntimos dos dois e, até mesmo, passagens escritas por ela (Fig. 3).

 





Figura 3: Emilia2 confronta Will Shakespeare. Fonte:

 
              Emília2 não encontra a tão sonhada alma gêmea no Will Shakespeare criado por Lloyd Malcolm. Embora troquem expressões de amor em linguagem poética, Will não entende a necessidade de Emília de ver seu trabalho reconhecido. Deveria dar-se por satisfeita de que suas palavras fossem ouvidas nas peças que ele escreve: “Fale-me mais da estória e eu a escreverei. Embora apareça apenas o meu nome, você saberá que é sua a inspiração que se desnuda.” Seu protetor, Henry Carey, Lord Chamberlain, pensa da mesma forma: sua escrita é mero passatempo feminino. Mas recomenda enfaticamente que Emilia não interferisse no trabalho promissor do jovem Shakespeare, seu afilhado artístico.
            Em uma sociedade patriarcal, com regras que discriminam a mulher, Emília “sente-se aprisionada por três homens e um menino” (Henry Carey, Will Shakespeare, o marido Afonso Lanier e o filho, Henry). Seus esforços teriam sido vãos? Seria seu destino da mulher olhar através das nuvens “num esforço para vê-los galgar triunfalmente montanhas cada vez mais altas, belas e generosas que ela é impedida de escalar?”
            Na década de 1920, Virginia Woolf não é admitida na biblioteca de “Oxbridge” a não ser acompanhada de um aluno ou professor. Por que não haviam suas ancestrais femininas provido filhas e netas com os meios destinados à educação? Provavelmente por estarem ocupadas dando à luz os filhos que lhes competia depois educar. A própria Virgínia estava reduzida às “principais atividades abertas às mulheres antes de 1918”: endereçar envelopes, ler para senhoras idosas ou ensinar leitura para crianças de jardim da infância.
            A peça de Lloyd Malcolm oferece resposta apropriada ao pedido urgente de Virginia para que alguém reescrevesse ou, ao menos, suplementasse a história, a fim de incluir nela a mulher elisabetana comum. Devem existir fatos em algum lugar, provavelmente em registros de paróquias e livros de contabilidade (WOOLF, 1989).
            A provação de Emilia acrescenta o desenraizamento a suas mágoas. “Em minha família itinerante de músicos eu fui a última em uma longa linha de indivíduos impedidos de criar raízes”. Na cena final da peça, um defunto Will Shakespeare, ainda arrogante, diz a Emilia3 o que sabe a respeito dela: “Que você vinha de uma família de músicos. Italianos. Talvez mesmo do norte da África. Provavelmente judeus, mas sempre escondeu isso.”
            Durante toda a peça Emilia tem consciência de que, como estrangeira, está sujeita à boa ou má vontade dos governantes e das massas. Emilia é um “deles” (one of them), gente de pele escura, de costumes e crenças diferentes. Embora se esforcem para absorver os usos de sua nova terra, seus processos de pensamento, de acordo com a visão de cultura como mecanismo de controle, permanecem os mesmos de sua comunidade de origem. “Pensar consiste em um tráfico de símbolos que impõem significado à experiência de um indivíduo. Fazem parte de Comunidade antes de seu nascimento – no quintal da casa, no mercado, na praça central – e continuarão em circulação depois que morrer” (GEERTZ, 1973, p. 45).
            Protestos violentos contra estrangeiros tiveram lugar em tempos elisabetanos. O discurso arrebatador de Sir Thomas More, na peça de mesmo título, hoje atribuído indiscutivelmente a Shakespeare, é dirigido à multidão enraivecida que exige a expulsão de “strangers”:
 
[...] you must needs be strangers, would you be pleas’d 
To find a nation of such barbarous temper 
That breaking out in hideous violence
Would not afford you an abode on earth. [1]



[1] E se fossem eles os strangers e encontrassem uma nação de têmpera tão bárbara que irrompendo em violência hedionda lhes negasse um abrigo na terra? (Tradução livre)
  
 
Tais considerações sobre o preconceito contra o outro – a mulher e o estrangeiro – em Virginia Woolf e, no próprio Shakespeare, complementam a análise do texto de Morgan Lloyd Malcolm. O elenco exclusivamente feminino de Emilia é uma réplica do século XXI à crença imemorial de que a mulher nunca foi, nem pode ser igual ao homem. Trata-se de recurso efetivo para enfatizar o tema da luta centenária da mulher pela igualdade de direitos. A rejeição ao estrangeiro, de modo similar, atinge picos críticos quatro séculos mais tarde. 
Uma vez que Henry Carey era patrono do grupo de atores Lord Chamberlain’s Men, é possível aventar a hipótese de que Shakespeare e Emilia Bassano se tenham cruzado, em algum momento, nesse meio artistico comum. Partindo dessa premissa, Lloyd Malcom confere verossimilhança a uma trama envolvente que mantém o leitor preso à página escrita. Teria sido verdadeiramente gratificante ter assistido à performance da peça no palco do Globe Theatre.
 

REFERÊNCIAS

GEERTZ, C. The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books, 1973.

MALCOLM, M.L. Emilia. London: Oberon Modern Plays, 2018. Kindle Edition. Location 1-3194.

WOOLF, V. A Room of One’s Own. San Diego, New York: Harcourt, 1989.




quinta-feira, 9 de maio de 2019


A ESCRITA DO COTIDIANO  EM JULYO RAMÓN RIBEYRO

 

                                                                                                                    RIBEYRO, Julio Ramón. Prosas Apátridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
                                                                                                                   
                                   Marcelo B.  Alcaraz ¹         
 

                A obra  Prosas Apátridas,  publicada em 2016 pelo editora Rocco, é uma pequena mostra  da literatura do escritor peruano Julio Ramón Ribeyro, autor ainda pouco conhecido no Brasil. Uma escrita  aparentemente  simples e de difícil classificação, o livro explora as inquietações e possibilidades do cotidiano, representando-o  de modo ao mesmo tempo breve e profundo.

               Júlio  Ribeyro foi um  importante escritor peruano nascido em 1929, residiu  parte de sua vida na capital francesa. Ele percorreu  a sua maneira as ruas da cidade parisiense, e de certo modo fugiu  do estereótipo   de muitos outros autores do século XX, como Hemingway ou Fitzgerald,  que deixaram a América  para de alguma  sobreviverem e se divertirem na capital. Ribeyro, ao contrário dos autores supracitados, não idealiza de forma alguma, os trabalhos e os frágeis vínculos formados na cidade, sua escrita é gris, quase amarga quando fala do lugar.

                Ribeyro estreou na literatura com o romance  Los  Gallinazos sin Plumas  ( 1955) e publicou duas outros narrativas longas, no entanto as formas breves  nortearam a sua vida de escritor. Seu contos completos formam um volume de quase mil páginas e uma coletânea  deles foi traduzida para o português, publicada em  2007 pela extinta editora paulista Cosac e Naify.

                 Prosas Apátridas é um livro  constituído por 200 fragmentos: aforismos, reflexões, trechos de diário, e sua difícil classificação é uma de suas maiores marcas. O texto pertence a coleção Otra língua, que lançou no mercado editorial brasileiro relevantes autores latino-americanos como Mário Levrero, Copi, Pablo Palacio, e mais  uma dezena de  nomes importantes nunca antes traduzidos para o português.

                  O modo de  vivenciar   e sobreviver  em Paris  teve como contraponto permanente a ideia do fracasso e dificuldades de toda ordem. Antes de trabalhar na imprensa, o autor fez uso de muitos expedientes para sobreviver.  Não por acaso, tais dificuldades vividas na capital francesa são descritas também nos seus volumosos diários, chamado La Tentación del Fracaso.

                  O título, Prosas Apátridas, segundo o próprio escritor peruano Júlio Ribeyro (RIBEYRO, 2016, p.9), não significa uma literatura sem pátria, mas textos independentes, sempre na fronteira, no limite entre um e outro gênero; originalmente não foram pensados como contos nem prosa poética, diário íntimo ou aforismos, mas podem ocasionalmente apresentar características de tais gêneros, ou permanecerem inclassificáveis.

                 Os gêneros que se apresentam e se entrelaçam na obra  convergem para um aspecto comum: o apreço aos movimentos do cotidiano: velozes,  aleatórios e inconscientes, mas também um espaço desvinculado do universo do trabalho, capaz de gerar cenas surpreendentes. Dor, poesia, solidão, encontros e desencontros dos habitantes de Paris, o livro se insere na tarefa que Certeau pensou para a literatura ao representar o cotidiano:Essas maneiras encontram aí um novo espaço de representação, o da ficção, povoado por virtuosidades cotidianas das quais a ciência não sabe o que fazer” (CERTEAU, 2008, p.142).

                O livro tem uma certa filiação, segundo o próprio autor com o Spleen de Paris de Baudelaire, (RIBEYRO, 2016, p.10) não só por tratar de forma fragmentada o cotidiano parisiense, mas também por representar um dos sentimentos mais frequentes nos dois livros: o tédio.

                Onipresente no século de Baudelaire, mas também frequente na prosa de Ribeyro o tédio é um aborrecimento anacrônico que, além de não ser atenuado pelos chamados avanços da civilização, transmuta-se também em melancolia e depressão: “A vida começa a parecer-nos insulta, lenta, estéril, sem atrativos e repetitiva, como se cada dia fosse o plágio do dia anterior (RIBEYRO, 2016, p. 71).”

                Apesar do aspecto fronteiriço de sua prosa, ela se aproxima constantemente do diário íntimo. Não é demasiado lembrar que Ribeyro foi um grande leitor e produtor de diários, expressando-se em quase mil páginas nesse gênero na obra La tentacion del fracasso (RIBEYRO, 2008). O texto também tem muitas características dos diários íntimos: a onipresente temática do cotidiano e o exercício do autoexame.

                 Segundo Lejeune, no diário: “o autorretrato nada tem de definitivo, e a atenção dada a si esta sempre sujeita a desmentidos futuros” (LEJEUNE, 2008, p. 304). O tom é ácido e o olhar peculiar se dirige às máscaras sociais usadas pelo homem urbano. Para Ribeyro: “Vivemos em um mundo ambíguo, as palavras não querem dizer nada, os valores carecem de valor, as pessoas são impenetráveis, os fatos, uma massa disforme de contradições, a verdade, uma quimera” (RIBEYRO, 2016, p.12).

                 Contudo, ao contrário de outros diários íntimos, ou escritas de si muito comuns na historia do ocidente desde as Confissões de Santo Agostinho, em Prosas Apátridas não há uma relação de segredo, catarse, ou mesmo amizade entre o diarista e seu diário e sim uma áspera e contraditória relação com a literatura. ” Admiro, portanto, os artistas que criam no sentido de sua vida e não contra a sua vida, os longevos, verdadeiros e jubilosos, que se alimentam de sua própria criação e não fazem dela, como eu, a subtração do que nos era tolerado viver (RIBEYRO, 2016, p. 99).

                 Outra característica da obra é que em muitos trechos ela pode assumir um tom ensaístico ou aforístico, tecendo considerações variadas sobre a condição humana, a vaidade, as contradições da história, e o apego às coisas mundanas. A paixão do colecionador é um dos temas desses breves escritos, nela, assim como em outras paixões, o homem tenta construir um templo para afastar o medo da morte.  Sobretudo após raciocinar muito, o autor concluiu que nada afasta tal sentimento, nem mesmo a escrita e a notoriedade de alguém pode afastar o perigo do total esquecimento que um dia advirá.

                 Todos esses temas citados fazem parte desses pequenos ensaios, aforismos ou diário íntimo, constituintes da prosa de Ribeyro, e mesmo numerados eles não sugerem nenhuma ordem ou hierarquia; a aleatoriedade é um dos pontos fortes do livro tornando-o inclassificável, sua hibridez o situa em um locus de inovação e liberdade, pouco frequente na indústria do livro hodierna.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, CHARLES. O Spleen de Paris. Porto Alegre: L&PM, 2016.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano,vol 1. Petropólis: Vozes, 2010.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

RIBEYRO, Julio Ramón. La Tentación del Fracaso. Madri: Seix Barral, 2003.

______    Prosas Apátridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
_______. Los Gallinazos sin plumas. Disponível em: <https://docelibros.files.wordpress.com/2012/05/julio-ramocc81n-ribeyro-11-cuentos.pdf> Acesso em: 25 de julho de 2017.



[1] Graduado em Filosofia pela UFPR,  Doutor em Literatura pela UFSC possuí Pós- doutorando pela Univerirsidade do Minho- Portugal. Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade, email: marceloalcaraz1969@gmail.com