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quinta-feira, 20 de abril de 2017

(RE) LENDO STEFAN ZWEIG

*Mail Marques de Azevedo


A palestra do professor Celso Lafer sobre o pacifismo de Stefan Zweig, a que assistimos na USP, no dia 31 de março, abordou a conferência sobre a unidade espiritual da Europa, pronunciada pelo escritor austríaco no Rio de Janeiro, em 1936, no Instituto Nacional de Música. Professor titular de Filosofia do Direito na Universidade de São Paulo, membro da Academia Brasileira de Letras, por duas vezes ministro das Relações Exteriores, o palestrante falou com autoridade sobre a trajetória pacifista de Stefan Zweig, impulsionada pelo ideal da harmonia entre os povos.

A utilização do avanço do conhecimento tecnológico para a destruição em massa, que transformou a Primeira Guerra Mundial em um banho de sangue, teria sido o ponto de partida para a jornada utópica de Stefan Zweig por diversos países do oriente e do ocidente em busca de mostras da dignidade do ser humano.

Utilizando-se da alegoria da torre de Babel na peleja contra o belicismo, Zweig argumenta na referida conferência que a capacidade de traduzir é o fio de Ariadne que conduz o homem para fora do labirinto. Daí a função do intelectual como mediador: enquanto a política divide, a cultura une, vive e cresce no diálogo; é o caminho que conduz à universalidade. Apesar de retrocessos e recaídas, o intelectual não deve duvidar da força da comunicação pela linguagem. É a linguagem universal da música que permite a Handel transferir-se dos estados germânicos para a Itália e, posteriormente, para a Inglaterra, criando sua arte monumental.

Como cidadão europeu, Stefan Zweig viveu a experiência da Europa da cultura, cujos valores de harmonia entre os povos inspiram o ideal da Comunidad
e Europeia. A conferência de 1936, publicada em várias línguas, contém o germe da obra Brasil, o país do futuro, evidentemente a mais conhecida dos brasileiros, e isto por mais de uma razão.

Desde a divulgação pelas coordenadoras do GT Literaturas Estrangeiras Modernas, que promoveu a palestra, o assunto escolhido acordou ecos de contatos recentes com a obra de Zweig. Há algum tempo, fiz a revisão final do artigo “Vida e morte de Stefan Zweig no cinema de Sylvio Back (1995-2003): identidades, ressentimentos e suicídio como protesto,” publicado em 2013, na nossa Scripta Uniandrade. Dos pontos ressaltados pela articulista, Rosane Kaminski, na análise do filme ficcional de Back, Lost Zweig, parece-me importante comentar “o sentimento de solidão intelectual e o dilaceramento de Zweig entre o ato criativo da escrita e as pressões exercidas pelo governo Vargas sobre sua atuação profissional”.

Nos anos 1930, a publicação das obras de Zweig no Brasil atingia elevado número de leitores com sucesso incomum. Não é de surpreender, portanto, que fosse recebido de braços abertos em sua primeira visita ao país, ocasião em que pronunciou conferências para salões sempre lotados. Nas viagens que fez ao Brasil, até estabelecer-se com a esposa, Lotte, em Petrópolis, em 1940, Stefan Zweig coletou anotações para o ensaio Brasil, país do futuro, publicado em 1941, de onde se originou a alcunha “país do futuro”, quase um aposto aplicado ao nosso país.

A publicação suscitou reações adversas de jornalistas que viam na obra um pagamento à concessão pelo governo Vargas a Zweig do visto de residência no Brasil. Artigos no Correio da Manhã insinuam o “comercialismo do escritor” e censuram as “interpretações abusivas” de Zweig na descrição dos hábitos do povo brasileiro. Trata-se de “um livro mau” e tendencioso marcado por imprecisões históricas. Sai em sua defesa Afrânio Peixoto que, no prefácio do livro polêmico, apresenta ao leitor o escritor famoso como “um encanto de convivência, de conversação, de simplicidade” (...) “... aqui está, aqui esteve, sem ruído, no Brasil. Aqui, não foi ao Catete nem ao Itamarati, nem às Embaixadas, nem à Academia” (...) “Não quis nada, nem condecorações, nem festas, nem recepções, nem discursos . . . Não quis nada.”

Entre o libelo e o panegírico, escolho ouvir o próprio autor. Tenho em mãos os dez volumes das Obras completas de S. Zweig, publicadas pela Delta, em 1960. É uma daquelas edições encadernadas, com decorações em vermelho e dourado, pertencente a meu pai que, certamente, rendeu-se às técnicas insistentes de algum vendedor – hoje substituído pelas incursões igualmente intrusivas que sofremos via TV, e-mail, Ipad, Ipod, smartphone e quejandos. Retirei os livros dos fundos da prateleira de obras de referência, onde descansavam em tranquilidade. Surpreendi-me fascinada pelo texto, lendo trechos aleatoriamente, sem me concentrar na busca específica que deveria fazer. 

O prefácio à história de Maria Antonieta, na primeira página, por exemplo, oferece-nos de pronto sinais da honestidade intelectual do escritor que não se alinha com detratores ou defensores da desventurada rainha, mas introduz com equanimidade os argumentos com que irá apresentar a personagem ao leitor:


Assim como o artista procura às vezes intencionalmente um motivo na aparência mesquinho, (...) a fim de melhor provar sua força criadora, também o destino, uma vez ou outra, escolhe um herói insignificante, para mostrar que, de uma matéria frágil, sabe tirar o mais intenso patético, de uma alma fraca e indolente, a mais alta tragédia. Maria Antonieta é um dos mais belos exemplos desse heroísmo involuntário. (ZWEIG, 1960, vol. 1, p. 4)


Ao invés de me embrenhar em comentários sobre Brasil, o país do futuro, − o texto de maior interesse para nós, brasileiros − em que Zweig parte da história do país, desde a chegada dos portugueses − prefiro citar um trecho curto da “Pequena viagem ao Brasil”, cuja epígrafe indica: O Brasil: primeiro um curso de repetição para o europeu. Após constatar a ignorância do europeu culto que vê o Brasil como “uma terra de clima quente e pouco saudável, com paisagens lindíssimas e muita matéria-prima não aproveitada, à espera de imigrantes e colonos audazes e desesperançados em suas pátrias”, Zweig nos dá sua própria visão do Brasil: “um país com uma cultura própria, independente e valioso, uma terra que tem a extensão de um continente. Um país que dentro de poucos decênios será um dos mais poderosos e importantes do mundo” (ZWEIG, 1960, v.10, p. 247). Pergunta-se: onde ficou a inocência atávica que encantou o escritor?

Resta ainda comentar a solidão intelectual que leva o escritor a renunciar à vida, na terra em que depositara suas esperanças de um recomeço saudável depois da débâcle da civilização europeia.  Em uma de suas últimas cartas, Zweig fala da situação de exílio, das perdas que isto representa, entre outras, a do seu público leitor, os falantes de sua língua materna e as dificuldades de adaptar-se ao novo público e em especial dos efeitos do exílio em sua obra. “Em meu trabalho propriamente dito estou paralisado devido ao sentimento inconsciente de não possuir mais um público leitor certo” (ZWEIG, 1953, p. 232).

Na apresentação do professor Lafer, nossa colega Nancy Rosenchan referiu-se ao tema de estudo que desenvolvemos no presente biênio “Línguas em trânsito na literatura: espaços, memórias, identidades”, que visa a estudar literaturas que apresentem a complexa contingência do exercício de uma língua distinta da materna por autores ou personagens, ou seja, uma desterritorialização. A literatura se articularia, então, a partir de uma rede de impossibilidades: a de escrever, a de não escrever e a de escrever de outra maneira. Uma língua desterritorializada seria, assim, a que se escreve fora de um território, dito de origem. Nesse sentido, o caráter político dessa literatura é fundamental. A desterritorialização da língua, junto à ligação do individual com o imediato político e o agenciamento coletivo de enunciação, são, portanto, as três categorias caras a este projeto de estudo. Difícil imaginar, no contexto deste tema, personalidade literária que mais se teria enquadrado no aspecto da desterritorialização do que Stefan Zweig que, saído da Áustria, encontrou abrigo no Brasil, mas não o seu território linguístico e cultural.

(Re)leiamos Stefan Zweig!

 


REFERÊNCIAS

ZWEIG, Stefan. Encontro com homens, livros e países. Tradução de Odilon Galloti. Rio de Janeiro: Guanabara, 1953.
__________. Obras completas de S. Zweig. Rio de Janeiro: Delta, 1960. 10 volumes.

KAMINSKI, Rosane. “Vida e morte de Stefan Zweig no cinema de Sylvio Back (1995-2003): identidades, ressentimentos e suicídio como protesto”. Scripta Uniandrade, v.11 n.2 (2013).
* Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE