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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

ESCRITOS COMPLETOS DE ERNANI REICHMANN
Ao meu pai / bisavô, com carinho.



Alexa Reichmann (USP / PUC-SP)*
Brunilda Reichmann (UNIANDRADE)**
 
 
 

Foto da inauguração da Divisão de Obras Raras e Especiais da Biblioteca da UFPR.
Guenia, neta mais nova de ER, compõe a foto. 
 
 
Recebemos muitas vezes mensagens de leitores que encontraram alguma obra de Ernani Reichmann (ER) nos sebos da Curitiba e se apaixonaram por ela. Temos ainda alguns volumes que foram publicados a partir de Volta às origens. Portanto, colocamos à disposição dos interessados os títulos que temos.

ER era um homem que provocada paixões exacerbadas ou distanciamentos intransponíveis. Era considerado o maior conhecedor da obra de Sören Kierkegaard no Brasil e tinha a maior biblioteca com obras de filósofos europeus da América do Sul – hoje as obras de sua biblioteca fazem parte das Obras Raras da Biblioteca da Universidade Federal do Paraná (ver foto da inauguração da Divisão de Obras Raras e Especiais da Biblioteca da UFPR, acima). Em 1959, ER sai com destino a Copenhagen para conseguir as primeiras edições e escritos diversos de seu amado filósofo. Volta nove meses depois, carregado de preciosidades.

Recentemente Ernani Reichmann passou a fazer parte da Academia Paranaense de Letras – APL (in memoriam) e os responsáveis publicaram uma nova edição de A noite do absoluto. Essa edição é primorosa, com uma capa cativante, se bem que completamente diferente das capas que ER utilizaria. Mas agradecemos de coração o carinho e a homenagem.

Vocês encontrarão abaixo a relação de obras de ER, como ele as datilografou. Tentamos reproduzir a datilografia dele: respeitamos a fonte normal e as caixas altas, porque era assim que ele registrava os títulos de suas obras.

Se quiserem adquirir gratuitamente algum livro ainda disponível, podem solicitar pelo e- mail: brunilda.reichmann@gmail.com.


TÍTULOS:
1. Cadernos Van de Lubbe (seis volumes)
2. Hic Fuit
3. O Cantar de Pedro
4. Intermezzo Lírico-Filosófico (4 volumes)
5. Volta às Origens
6. A Noite do Absoluto
7. As Lanternas
8. A Mula e o Mágico (com Face Perdida)
9. Longe no Horizonte um Homem
10. A Espiral e o Círculo
11. Cadernos Passionários (3 volumes)
12. O Único e o Agreste (2 volumes)
13. Cadernos ECR (6 volumes)
14. Ilustração Imprópria, Terminal
15. Inéditos de Angústia Subjugada, Intermezzo Lírico-Filosófico e Volta às Origens
16. O Instante
17. Cadernos PS (2 volumes)
18. Cadernos PS III
19. Ser e Sismar
20. Ser e Sismar VIII/IX
21. Ser a Sismar VI /VII
22. Projeto de Salvação
23. A Passagem (inacabado)

TÍTULOS EM SEPARADO:
1. Kierkegaardiana
2. Octávio de Faria
3. Kierkegaard: Textos Selecionados
4. A Poética de Carlos Nejar
5. O Trágico de Octávio de Faria
6. Cartas e Sueltos para Ernani Reichmann (Clementino Schiavon Puppi)


*Alexa Reichmann é bisneta de Ernani Reichmann, estudante de Letras da USP e de Jornalismo na PUC-SP.
**Brunilda Reichmann é filha de Ernani Reichmann, Professora Titular aposentada da UFPR, Professora Titular e Coordenadora da Pós-Graduação da UNIANDRADE.







quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Questões de gênero e sexualidade em Otelo: o mouro de Veneza

Profa. Dra Anna Stegh Camati

O texto shakespeariano Otelo permite diversas leituras, tanto é que pode ser interpretado a favor e contra as ideologias sexistas. As complexas relações entre os sexos, no universo textual da peça, têm sido investigadas pela crítica feminista que tende a examinar a posição da mulher como sujeito e/ou objeto, e sua atuação na sociedade patriarcal à época.
As considerações teóricas de Juliet Dusinberre, no livro intitulado Shakespeare and the Nature of Women (Shakespeare e a natureza das mulheres), cuja primeira edição foi publicada em 1975, inaugurou a crítica feminista shakespeariana que se debruçou sobre uma longa linhagem de discursos masculinos a respeito das persongens femininas de Shakespeare.
Dusinberre afirma que a profunda compreensão da natureza humana permitiu a Shakespeare investigar “paixões sem preconceitos de raça ou gênero” (DUSINBERRE, 1996, p. 130) , apresentando questões éticas e morais sob múltiplos pontos de vista, subvertendo, assim, as teorias de oposições binárias, entre elas casamento/ prostituição e amor/desejo. Nesse sentido, para ilustrar as inquietações do início da modernidade, a autora menciona um incidente em Otelo, especificamente a cena em que o mouro se refere a Desdêmona como prostituta:

Shakespeare é o único dramaturgo que entendia o sentido da palavra comedimento, tão cara ao código moral dos Puritanos, ou seja, o comedimento era uma maneira de diferenciar o casamento da prostituição. [...] Quando os Puritanos pregavam sexo moderado no matrimônio, dissociando o casamento do calor do bordel, objetivavam deixar clara a sua convicção de que a posição da esposa não tinha relação com o comércio que envolvia o ofício das meretrizes. [...] Segundo os Puritanos, o casamento somente oferecia a uma mulher uma vida melhor do que o meretrício, se o seu cônjuge a tratasse como parceira e não como propriedade. Na peça de Shakespeare, o homem tem o direito de tratar com violência sua amante, porque ela é um objeto que ele comprou. Quando Otelo bate em Desdêmona, isso choca Ludovico que exclama: – ‘Não acredito, ele bate na esposa?’ – porque esse ato nega a ela a dignidade de uma esposa. Algumas produções cênicas, sublinham essa questão ao fazer Cássio agredir físicamente sua amante Bianca que o persegue e não o deixa em paz. (DUSINBERRE, 1996, p. 119-120 e 126)

Valerie Wayne, no artigo “Historical Differences: Mysogyny and Othello” (“Diferenças históricas: Misoginia e Otelo”), argumenta que Shakespeare evoca as inquietações culturais à época na peça e explora as tensões entre três tipos de discurso: o residual, o dominante e o emergente.
Os discursos do início da modernidade, de acordo com Wayne, continuavam incorporando preconceitos medievais residuais, mostrando que, em grande proporção, havia inquietações masculinas a respeito do desejo e da sexualidade femininas, como atesta o trecho misoginista medieval de O romance da rosa, de Guillaume de Lorris e Jean de Meun, citado por Wayne:

Todas as mulheres são, serão, ou foram meretrizes, de fato ou em pensamento e, nesse sentido, nenhum homem é capaz de refrear os seus apetites sexuais. Todas as mulheres têm o privilégio de serem senhoras de seus desejos. Isso porque nenhuma violência física ou aprimoramento moral é capaz de mudar as inclinações femininas; assim, se algum homem conseguisse mudá-las ele teria soberania sobre seus corpos. (Citado em WAYNE, 1991, p. 156)

Wayne argumenta que a conversa rude de Iago com Emília e Desdêmona, na chegada a Chipre (2.1), associa o vilão “com o discurso residual misógino da Renascença” (WAYNE, 1991, p. 154). Ela esclarece que as provocações de Iago, que insultam as mulheres, remetem a uma retórica medieval encontrada em provérbios, romances de amor cortês, livros de conduta e escritos de clérigos, adaptada por Shakespeare com propósitos específicos em Otelo, oferecendo evidências de que muitos pensamentos misóginos residuais ainda se mantiveram ativos na formação do processo cultural do início da modernidade para restringir as atividades da mulher e refrear seus desejos sexuais.
Na minha opinião, o solilóquio de Otelo, na terceira cena do terceiro ato, que expressa sua agitação psicológica após ouvir as calúnias e insinuações maldosas de Iago, é construído de acordo com discursos residuais misóginos. O excerto de O romance da rosa, citado acima, reverbera no discurso de Otelo quando lamenta não ser capaz de controlar o apetite sexual de sua mulher:

OTELO

[...] Casamento
Maldito, que nos dá tais criaturas,
Mas não seus apetites. Antes ser
Um sapo no vapor de um calabouço
Que ter só parte da coisa que amo
Pr’uso dos outros. (3.3)
  
Esse solilóquio mostra que Otelo não considera Desdêmona como sua legítima parceira, como em teoria pregavam os Puritanos, visto que ele lamenta não ter controle sobre seus desejos sexuais e se refere a ela em termos de posse: a coisa que amo (the thing I love). Segundo a crítica feminista, essas palavras de Otelo relativizam o seu discurso final em que explica que matou Desdêmona por amá-la em demasia: “Falem só? De alguém que, não sabendo amar, amou demais” (5.2).
Por outro lado, Wayne (1991) observa que o discurso alternativo de Emília, sobre a questão do desejo da mulher (4.3), mostra que Shakespeare também inclui em seu texto os discursos emergentes que defendem condições de igualdade para as mulheres a partir do argumento da “similaridade entre os sexos” (WAYNE, 1991, p. 167):

EMÍLIA

[…] Saibam os os homens,
Que nós temos sentidos, que nós vemos,
Cheiramos, separamos doce e amargo,
Assim como os maridos. O que fazem
Os que nos trocam por outras? Só brincam?
Creio que sim. A causa foi paixão?
Creio que sim. Por fraqueza é que erram?
É também. E não temos nós paixões?
E fome de brincar, fracas, como eles?
Pois que nos usem muito bem, e tomem tino.
Os nossos erros vêm do seu ensino. (4.3)

O discurso revolucionário de Emília alude ao padrão duplo (dois pesos e duas medidas) que permite o adultério do homem e repudia o mesmo procedimento em relação à mulher, uma ideologia persistente que equaciona a contenção sexual da mulher como uma virtude e o desejo sexual como um vício. Assim, por meio de estratégias diversas, Shakespeare questiona os valores e as ortodoxias prevalecentes à época em que viveu e escreveu.

REFERÊNCIAS
DUSINBERRE, Juliet. Women as Property. In: _____. Shakespeare and the Nature of Women. London: Macmillan, 1996, p. 110-136.

SHAKESPEARE, William. Othello. Arden Shakespeare. Edited by E. A. J. Honigmann. Third Series. London: Methuen, 1997.
SHAKESPEARE, William. Otelo. In: _____. Teatro Completo. William Shakespeare: tragédias e comédias sombrias. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 545-694.

WAYNE, Valerie. Historical Differences: Misogyny and Othello. In: _____. (Ed.). The Matter of Difference: Materialist Feminist Criticism of Shakespeare. Ithaca NY: Cornell University Press, 1991, p. 153-179.

Obs. O artigo completo, intitulado “Otelo, o mouro de Veneza: o texto de Shakespeare no contexto da era elisabetano-jaimesca” foi publicado no livro O julgamento de Otelo, o mouro de Veneza – edição comemorativa Shakespeare 400 anos/ René Ariel Dotti. Coordenação Daniel Ribeiro Surdi de Avelar. Organização: Angela dos Prazeres e Liana de Camargo Leão. 1ª. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 89-98.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019


Como estou me comunicando: sendo agressivo ou amistoso?

 Profa Dra. Angela Maria Rubel Fanini

A linguagem é central para o ser humano. Ela difere o homem dos outros animais. Por mais que os outros animais tenham uma linguagem, a nossa é bem mais complexa. Ela se altera, se modifica, serve para nomear as coisas, para identificar as pessoas, para se comunicar e serve também para enaltecer, subjugar, agredir, elogiar. A linguagem é nosso meio de nos inserirmos na sociedade. Nosso primeiro contato é na infância com a família ou com quem nos cuida. A criança vai aprendendo a apreender o mundo e entendê-lo a partir da linguagem. A mãe ou quem cuida da criança vai apontando as coisas e nomeando-as. É um ato bem complexo, pois as palavras não são as coisas. São símbolos para as coisas. São uma convenção social. É um código, mas não é sempre igual a um código matemático, em que os símbolos não mudam conforme o sujeito que os emite. A linguagem da matemática em contextos matemáticos é universal. Não sofre modificação. Já a linguagem humana  não é só um código técnico que eu aprendo bem na escola ou no convívio com os demais. Ela é fonte de juízo de valor sobre as coisas. Quando falo ou escrevo, emito juízos bons ou ruins sobre aquilo ou aquele de que falo ou sobre o quê ou quem escrevo. Por isso, devemos ser responsáveis em nossa comunicação, pois podemos agredir ou exaltar alguém. O racismo, o sexismo, o ódio ao estrangeiro vêm pela linguagem que falamos. Mas o amor, a afetividade, a solidariedade também são veiculados pela linguagem. A linguagem tem poder de construir ou destruir uma reputação. Ela tem uma perspectiva ética e moral daquele que a emite. Vejam com a mídia é poderosa. É um quarto poder, pois tanto bate em um mesmo discurso que cria realidades. Então a linguagem não nomeia as coisas tais quais são. Posso destruir a imagem de um governo, de uma pessoa, de uma instituição ou construir de modo positivo de acordo com a linguagem que uso. Não permaneço neutro quando falo ou escrevo. O ato comunicativo tem sempre uma intencionalidade ética, moral, política, afetiva etc. Nesse passo, a Filosofia da Linguagem a partir de Mikhail Bakhtin (filósofo russo) e Michel Foucault (filósofo francês), pode esclarecer bastante nossa compreensão sobre como devemos entender e usar a linguagem. A qualquer pessoa, universitária ou não, interessa pensar sobre o que fala, o que escreve e o que veicula nesse discurso emitido. Podemos nos encontrar com as pessoas, produzindo e fortalecendo laços de amizade via linguagem ou destruir esses laços para sempre. O que se diz de modo negativo permanece e causa mágoa. Todavia, os elogios via linguagem também são sempre lembrados. Pensem nisso, caros leitores e leitoras! Pense em como está a sua linguagem em família, com amigos, no trabalho e nas redes sociais. Você está sendo agressivo ou amistoso? Boa reflexão!