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segunda-feira, 25 de junho de 2018


O NOVO GÓTICO NA LITERATURA E NA TV

 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*


Seguindo uma tendência que se fez comum, na literatura, no fim dos anos 1990 e no início do século XXI, Pedro Vieira, em Memórias desmortas de Brás Cubas, revisita um clássico machadiano, recriando-o parodisticamente. Na versão contemporânea, a história de Brás Cubas constitui o eixo narrativo, mas personagens de outros textos de Machado de Assis interferem no enredo, ao cruzarem o caminho de Brás, que agora é um zumbi, sedento por vingança. No texto de Vieira, assim como nas paródias em geral, “a ironia é […] uma forma sofisticada de expressão. A paródia é igualmente um gênero sofisticado […]. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo” (HUTCHEON, 1985, p. 50). Essa dualidade constitutiva da paródia alinha-se perfeitamente às oposições que caracterizam o resgate do gótico, conforme Dani Cavallaro apresenta em seu livro, na categoria “Ideological connotations” (CAVALLARO, 2002, p. 8), e também à hibridação que caracteriza a literatura weird: “[…] weird fiction generates its own distinctive conventions and its own generic form, but it remains an unstable construction” (NOYS; MURPHY, 2016, p. 117).

Combinando com a escolha do zumbi como personagem, Vieira inclui, na lista de títulos dos capítulos, vários filmes (como, por exemplo, Resident evilEu sou a lenda e Avatar), o que consolida o perfil interartístico e intermidiático do livro. A certa altura, o próprio Brás Cubas informa o leitor sobre a novidade: “[…] não estranhe quando eu citar A Madrugada dos Mortos ou Blade Runner. Foi-se o tempo em que eu me importava em citar Virgílio ou Sêneca – este texto não é pra você, intelectualóide de plantão […]” (VIEIRA, 2010, p. 20). Outra característica que exemplifica o cruzamento da literatura com o cinema é o uso da estética trash: “Deus, que estrago eu havia feito naquele crânio. Era um buraco enorme, com massa cinzenta morta ainda escorrendo” (VIEIRA, 2010, p. 31). Além disso, o trash é indissociável do exagero (SCONCE, 1995), que Dani Cavallaro inclui em uma das categorias do gótico, e o horror, que sempre deve vir associado ao terror: “No que tange à literatura gótica, e mesmo ao cinema que se utiliza da herança dessa literatura, o horror enquanto técnica ficcional é muito atraente porque é relativamente fácil e simples de ser construído: uma cena de horror não precisa mais do que uma boa descrição de jorros de sangue ou de tomadas bem feitas de pedaços de corpos” (ROSSI, 2014, p. 68). Apesar de não ter estudado esse tipo específico de literatura, Aristóteles, em sua Poética, faz uma observação relevante e aplicável ao presente estudo: “[…] nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, animais ferozes e cadáveres” (ARISTÓTELES, 1991, p. 203). Esse processo é também dual e antagônico, razão pela qual Dani Cavallaro refere-se a ele como elemento-chave na literatura gótica: “[The Gothic] examines the confluence of terror as a potent yet indistinct apprehension of sublime dread and horror as a physical manifestation of the inexplicable and the abnormal” (CAVALLARO, 2002, p. ix, grifo nosso).  

Coerente com esse argumento, vale lembrar a dualidade do zumbi, que, em sua condição de morto-vivo, encarrega-se de introduzir o desconhecido na realidade cotidiana: “Paradoxically, we need the consistent consciousness of death provided by the Gothic in order to understand and want that life” (BRUHM, 2002, p. 274). De acordo com Lovecraft: “A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, 1987, p. 1). Conforme Bauman, há um processo humano e bastante comum: sempre que a ideia da morte surge, nas situações de medo e violência, acabamos por valorizar mais a vida: “A advertência memento mori, lembrar-se da morte, […] é uma afirmação do impressionante poder dessa promessa de lutar contra o impacto imobilizante da iminência da morte. […]. Lembrar a iminência da morte mantém a vida dos mortais no curso correto – dotando-a de um propósito que torna preciosos todos os momentos vividos” (BAUMAN, 2008, p. 47).
 
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Esta análise objetiva discutir o novo gótico na minissérie Vade retro, exibida na Rede Globo, em 11 capítulos, no período de 20 de abril a 29 de junho de 2017. Com texto de Fernanda Young e Alexandre Machado e direção geral de Mauro Mendonça Filho, Vade retro mistura o fantástico com a estética gótica, por privilegiar o “dualismo” do “bem contra o mal” (JACKSON, 1981, p. 49). A história envolve a protagonista Celeste (advogada de vida comum, noiva e que mora com a mãe) e o antagonista Abelardo Zebul (ou, simplesmente, Abel Zebul, rico empresário, palestrante motivacional, casado com Lucy, com quem cria dois filhos, Damian e Carrie).

No que se refere à temática, as minisséries tradicionalmente elegem assuntos pertinentes à “realidade brasileira, sintonizando assim com as expectativas da faixa de audiência mais sofisticada a que se destinam” (MELO, 1988, p. 33). Com relação a essas características, constata-se que Vade retro faz uso da realidade nacional, mas tangendo-a de modo sutil, porque utiliza os personagens Abel e Celeste para construir a alegoria do diabo contra a menina que tinha fama de santa, por ter sido beijada pelo Papa. Porém, considerando a estrutura dos núcleos comandados pela protagonista e pelo antagonista, percebe-se a família como base. Abel é casado com Lucy e com ela cria o filho Damian e a enteada Carrie; e Celeste mora com a mãe e é noiva de Davi, com quem pretende formar uma família. Segundo Lovecraft, essa configuração é necessária também na literatura gótica: “Uma história de fantasma [...] deve ter um cenário familiar na época moderna, para estar mais próxima da esfera da experiência do leitor. Além do mais, os fenômenos espectrais devem ser maléficos e não propícios; pois é o medo a emoção primária a ser suscitada” (LOVECRAFT, 1987, p. 100). Na minissérie Vade retro, o protagonista é o próprio diabo, característica que estabelece simultaneamente o fantástico e o novo gótico. Conforme postula Rossi: “O gótico chega, então, ao século XXI já transformado e adaptado à miríade dos novos padrões culturais, mas sem perder sua essência: a escuridão, a noite, o Mal, o terror e o horror, a psicologia do medo, a instauração de impasses na racionalidade da lógica” (ROSSI, 2008, p. 75). Nesse comentário, o autor menciona o terror, trazendo à tona um gênero que apresenta inúmeras coincidências em relação ao fantástico e ao gótico. A citação a seguir corrobora esse cruzamento:

Um evento estranho e inesperado desperta a mente, e mantém isso na continuidade; e onde a agência de seres invisíveis é introduzida, de "formas não vistas, poderosas e distantes de nós", nossa imaginação, enquanto se lança adiante, explora com êxtase o mundo novo que lhe é exposto, e se enaltece com a expansão de seus poderes. Paixão e fantasia cooperando elevam a alma a seu patamar mais alto; e a dor do terror é perdida em assombro. (AIKIN; AIKIN, 2018, grifo no original, tradução nossa)

Na estrutura, Vade retro adota uma estrutura mais complexa. Entre as 14 variações de enredo adequadas à literatura de horror e citadas por Carroll, constata-se que a minissérie utiliza a forma mais completa, que inclui “desagradável / descoberta / confirmação / confrontação" (CARROLL, 1990, p. 116, tradução nossa). O enredo da minissérie também recorre aos clichês do terror. Embora isso não seja verossímil, no sentido popular do termo, já que realça a presença do sobrenatural na narrativa, Aumont esclarece que a verossimilhança vai muito além da proximidade com a realidade. Segundo ele: “O verossímil diz respeito, simultaneamente, à relação de um texto com a opinião comum, à sua relação com outros textos, mas também ao funcionamento interno da história que ele conta” (AUMONT, 1995, p. 141). Por conta dessa necessidade, de apresentar várias das características típicas do terror, Vade retro usou cenas como as reproduzidas a seguir, que, por sua vez, concretizam esta afirmação de Jackson:
            A topografia do fantástico moderno sugestiona uma preocupação com problemas de visão e visibilidade e para isso estruturou uma imagem espectral ao redor: é notável quantas fantasias introduzem espelhos, óculos, reflexões, retratos, olhos - que veem coisas de modo míope ou distorcido, como se estivessem fora de foco - para efetuar uma transformação do familiar para aquilo que não é familiar (JACKSON, 1981, p. 43, tradução nossa)

Figura 1: Mensagem escrita para Celeste, no vidro do box, e cruz refletida no olhar do homem que se apresenta como tio do filho de Abel e Celeste (VADE, 2017).
  
          De fato, na cena de Celeste, a mensagem aparece escrita em um box de vidro. Na imagem do suposto irmão de Abel, destacam-se os olhos em close-up e a cruz refletida neles. Para ampliar a dualidade do novo gótico, bem como para aumentar a etapa da confrontação entre o bem e o mal, a minissérie inclui a encenação de um julgamento, no episódio final. Com disso, a narrativa acumula as linguagens da Ciência Jurídica e da Física em sua estrutura híbrida, nas argumentações de Celeste. Ela relembra o confronto final com Abel e defende que Abel era o próprio diabo. O discurso da personagem, marcado pela ironia e pela complementaridade entre o sério e o cômico, aprofunda a dualidade do novo gótico, representada pela tentação do diabo, pela fragilidade do humano e pelo conflito do bem contra o mal, que, no enredo, reencenam os problemas de medo, insegurança e alteridade do mundo real.

REFERÊNCIAS
AIKIN, J; AIKIN, A. L. Pleasure derived from objects of terror, with Sir Bertrand, a fragment. Disponível em: <http://www.searchengine.org.uk/ebooks/87/77.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
ARISTÓTELES. PoéticaSão Paulo: Nova Cultural, 1991.
AUMONT, J. et al. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995.
BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BRUHM, S. The contemporary Gothic: why we need it. In: HOGLE. J. E. (Ed.). The Cambridge Companion to Gothic Fiction.
London: Cambridge University, 2002, p. 259-276.
CARROLL, N. The philosophy of horror or paradoxes of the heart. New York; London: Routledge, 1990.
CAVALLARO, D. Gothic visionThree centuries of horror, terror and fearLondon: Continuum, 2002.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródiaEnsinamentos das formas de arte do século XX. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985.
JACKSON, R. Fantasy: the literature of subversion. London: Methuen, 1981.
LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
MELO, J. M. de. As telenovelas da Globo: produção e exportação. São Paulo: Summus, 1988.
NOYS, B.; MURPHY, T. S. Old and new weird. Genre: forms of discourse and culture, v. 49, n. 2, 2016, p. 117-134.
ROSSI, A. D. Manifestações e configurações do gótico nas literaturas inglesa e norte-americana: um panorama. Ícone, v. 2, jul. 2008, p. 55-76.
SCONCE, J. Trashing the academy: taste, excess, and an emerging politics of cinematic style. Screen, v. 36, 1995, p.371-393.
VADE retro. Texto de Fernanda YoungAlexandre Machado. Direção de André Felipe Binder, Rodrigo Meirelles e Mauro Mendonça Filho. BRA: Rede Globo, 2017. Minissérie (11 capítulos); son.
VIEIRA, P. Memórias desmortas de Brás Cubas. São Paulo: Tarja, 2010.
 
* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.