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terça-feira, 31 de maio de 2016

Nota sobre os três copos de leite mais perigosos do cinema

Isadora Dutra*

Na abertura do filme de 1971 de Stanley Kubrick, "Laranja Mecânica", a câmera se afasta do rosto de Alex e revela o copo de leite que ele bebe com os "drugues" no Kolova Milkbar. O movimento de câmera continua, saindo do plano fechado, até o plano geral, se afastando do personagem e apresentando o cenário. O leite que Alex bebe é o "milk plus", que pode ser adicionado de vellocet, synthemesc ou drencom. Segundo ele, o leite moloko drencom, aguça os sentidos e deixa pronto para os atos de "ultraviolência" que se seguem à cena.

No filme de Quentin Tarantino "Bastardos Inglórios", de 2009, o comandante da SS, Hans Landa, sentado à mesa prefere um copo de leite ao de vinho oferecido pelo camponês LaPadite. Em plano médio, Landa aguarda que uma das filhas do camponês sirva o leite, intercalando o olhar do copo para a menina. Ele bebe o leite de um só gole. A cena continua com o nazista e o camponês sentados frente a frente, o copo vazio entre eles. Inicia o interrogatório de Landa a LaPadite e, a seguir, acontece o assassinato da família judia escondida debaixo da casa que é metralhada pelos soldados nazistas.


De repente, a luz que vem de uma porta que se abre desenha o chão e aparece a sombra de um homem carregando um copo. O ambiente escurece novamente e o personagem Johnny entra com um copo de leite. No filme de 1941, "Suspicious", Alfred Hitchcock usa a linguagem do gênero noir, construindo cenas com grande contraste de claro e escuro como na cena do copo de leite. Johnny percorre um quadriculado de sombras no chão até a escada. Não se vê o seu rosto na subida dos degraus, seu corpo é uma mancha escura na cena, o ponto mais escuro. Não se vê, portanto, a expressão do personagem. Ao contrário, o leite dentro do copo é o ponto mais claro. A atenção se volta para o branco do copo e culmina no close do objeto no final da sequência. No plano seguinte, vê-se o rosto tenso da esposa Lina antes de Johnny entrar no quarto trazendo-lhe o copo de leite. Diante do olhar desconfiado dela, ele coloca sobre a mesa o copo de leite, que ela desconfia estar envenenado.


Nos três filmes citados, o copo de leite está atrelado ao desenvolvimento da narrativa como um elemento de tensão de modo simbólico e indicial. Em Hitchcock, o copo de leite assume inclusive o papel de "arma do crime" do ponto de vista da suspeita de Lina. Em Kubrick e Tarantino, o objeto tem relação com os desdobramentos violentos das cenas em que ele aparece: no primeiro, o copo de leite é instrumento mesmo da violência já que "deixa pronto" para agir, nas palavras do protagonista; no segundo, o copo de leite adia o desenrolar da ação, intensificando a tensão da cena, e, a partir daí, funcionando como índice da possibilidade de descoberta da identidade oculta dos judeus por parte do nazista e consequente assassinato. Os copos de leite dos exemplos estão, portanto, no cerne da ação violenta, associados a momentos de grande tensão e suspense.
Com o rosto enquadrado no plano fechado, o Alex de "Laranja Mecânica" olha em direção à câmera de baixo para cima. Percebe-se sua respiração e ele tem o olhar fixo, agressivamente desafiador, quando leva o copo de leite à boca. Os "drugues" repetem o mesmo olhar ou tem ar perdido, alienado. Eles também bebem o "milk plus". O movimento de câmera na cena inicial do filme tem valor descritivo, partido do close ao plano geral, numa sequência sem cortes que apresenta o protagonista e seu contexto.
Alex tem os pés apoiados em uma manequim feminina que serve de mesa. Outras bonecas estão espalhadas pelo lugar em posição exposta. O corpo feminino simulado pelo manequim serve de objeto utilitário. As paredes e o chão são negros em contraste com as roupas e manequins brancos e os detalhes em cores intensa que fazem referência à estética da pop art. O cenário bizarro combinado à versão eletrônica da música tétrica do funeral da rainha Maria (composição de Henry Purcel, versão de Wendy Carlos) criam uma atmosfera sombria, estranha e tensa.
A câmera revela que Alex e os "drugues" estão sentados no fundo de um longo corredor negro repleto de manequins brancas onde todos bebem o "moloko plus", leite adicionado de droga. O aspecto sinistro da cena na leitaria ainda é intensificado pela fala de Alex, protagonista e narrador, que gera a expectativa em relação ao que vai acontecer e causa estranhamento com seu vocabulário próprio, a linguagem "nadsat", criada pelo escritor Anthony Burgess no romance de 1962 que deu origem ao roteiro do filme de Kubrick. O movimento de câmera descreve os personagens, a gangue de Alex e outros frequentadores do lugar, seus modos e vestimentas, os objetos e o cenário. O personagem  anuncia os próximos atos de "ultraviolência" e a cena inicial encerra-se.
Tal cena serve de introdução ao universo caótico e sinistro em que vivem as personagens. Trata-se de um mundo dominado pela violência perpetrada em cadeia de modo que apenas duas posições são possíveis, a de algoz ou a de vítima. Os atos de violência são difundidos de indivíduo para indivíduo, como faz a gangue de Alex na sequência de espancamentos, roubos e estupros que praticam pela cidade, e também do estado para o indivíduo, como no "Método Ludovico", aplicado em Alex pelo Estado como forma de refrear seus impulsos destrutivos e que o submetem a um processo violento de lavagem cerebral que, posteriormente, o transforma em vítima semelhante as suas.
A violência em "Laranja Mecânica" é um método de coerção por parte do Estado e uma forma de entretenimento por parte do indivíduo. Do ponto de vista dos "drugues" a "ultraviolência" significa diversão. Nesse sentido, a violência é uma fonte de prazer naquele universo mecanizado da cidade. O leite está diretamente relacionado à violência a partir da fala de Alex que informa, na primeira cena do filme, que o leite "plus drencom" prepara para os atos violentos. O leite é, portanto, uma das causas da violência e também uma preparação para o prazer. Ele funciona como um dos instrumentos para o exercício da violência como entretenimento na cultura dos "drugues". A bebida branca, repetindo a cor do uniforme usado pelos personagens e boa parte dos objetos em cena, alcança sentido simbólico: o leite simboliza a violência e o prazer pela violência nas personagens.
Ao mesmo tempo, o copo de leite é estabelecido na cena inicial como índice da "ultraviolência". A partir de tal cena, entende-se que o leite antecipa e anuncia os eventos violentos subsequentes. O momento na leitaria Kolova é preparatório da noite de atividades dos "drugues". A relação indicial entre o copo de leite e o ato violento também se estabelece em "Bastardos Inglórios" de Tarantino. O oficial nazista Landa bebe leite antes de ordenar o massacre da família de judeus escondida sob o piso da casa do camponês francês. O tempo em que o personagem pede e bebe o leite estende a ação dramática, intensificando a tensão da cena através do adiamento do desfecho da cena com a violência do assassinato dos judeus.
O comportamento de Landa na cena também mistura violência e prazer na medida em que o gestual exageradamente metódico é combinado à expressão de satisfação do comandante nazista na sua função de caça aos judeus, ideia que fica explícita no diálogo com LaPaditte, quando ele se vangloria de seu apelido. Os modos do personagem expressam o seu sadismo. O próprio adiamento do desfecho da ação violenta remete a esse traço do personagem, que demonstra ao logo de todo interrogatório se comprazer em encurralar LaPaditte.
A cena funciona como um duelo entre o nazista e o camponês. O filme começa com a cena externa do  e uma das filhas estendendo roupa. Num plano geral, a câmera mostra a aproximação dos carros dos nazista na estrada. Os carros são vistos quando a filha de LaPaditte faz o gesto de remover o lençol branco estendido em frente do ponto em que se vê a movimentação dos nazistas. Esse plano muda o tom bucólico inicial para o clima de tensão que dura todo primeiro capítulo do filme e que se intensifica no diálogo à mesa, com o copo de leite entre os dois personagens.
Ainda na cena externa, o camponês lava o rosto como quem se prepara para o embate antes de receber o nazista dentro de casa. A cena interna começa com uma sequência de pequenas ações aparentemente insignificantes: a apresentação das filhas do camponês, a oferta e recusa do vinho, o pedido de leite, o elogio do nazista e o pedido para que as filhas saiam da sala. Todas essas pequenas ações têm uma função: elas atrasam o desenrolar da cena, aumentando a tensão visível no rosto dos personagens que vivem na casa. Além disso, as ações apresentam os personagens, suas características, comportamento e reações. Landa é metódico e apegado a rituais meticulosos como quando prepara a tinta da caneta, momento idêntico ao pedido do copo de leite. Ambas as ações estendem a narrativa.
O leite, a partir dessa cena, é marca do personagem Landa, funcionando como um identificador. A cena encontra paralelo em outra cena do capítulo final em que Landa encontra a única sobrevivente da família assassinada no início do filme. Emmanuelle Mimieux, dona de um cinema, é a identidade que a judia  Shoshana Dreyfus assume no momento em que reencontra o algoz. Nessa cena, ele pede um copo de leite para ela e um café e apfelstrudel para si. O diálogo que segue repete a situação de tensão da abertura do filme com a possibilidade de revelação da identidade oculta e a expectativa de violência. O copo de leite marca a semelhança entre as cenas como um índice do terror.
A primeira cena com o copo de leite é toda construída com planos que remetem à linguagem do western, num jogo de primeiro e segundo plano e de plano médio com close, criando tensão sem o uso da câmera lenta. O início da cena dentro da casa é realizado intercalando primeiro e segundo plano: em determinado momento, por exemplo, vemos as personagens que falam na sala e, através da janela, em segundo plano, os soldados nazistas que aguardam ordens do lado de fora. A imagem intensifica o clima tenso porque indica a impossibilidade de fuga, o encerramento dos personagens dentro da casa com o algoz nazista. A sequência de pequenas ações antes do diálogo/duelo, além de participar da tensão, também conferem o sentido de encenação que toda a cena assume do ponto de vista do nazista, o que se confirma de modo explícito no final da mesma quando ele ordena que o camponês siga a "mascarada", forjando um diálogo de despedida enquanto os soldados nazistas entram na casa e executam os judeus.
Em Kubrick e Tarantino, o copo de leite está ligado a momentos de tensão e/ou suspense e de violência. Efeito semelhante tem o copo de leite que o personagem Johnny carrega na cena da escadaria em Hitchcock. No filme de 1941, uma mulher, Linda McLaidlaw, desconfia que o marido seja um assassino e que o leite esteja envenenado. A cena do copo de leite é colocada entre dois planos da mulher no quarto com o rosto tenso, aguardando a entrada do marido. Vemos Johnny com o copo de um ângulo superior e a partir de um movimento de câmera que o acompanha desde o momento em que vemos sua sombra no chão quando a porta por onde ele passa se abre, até o ponto em que ele alcança o topo da escada e a cena encerra com um close do copo de leite.
O suspense da cena tem como elemento chave o copo de leite, destacado no plano através de dois recursos técnicos, a iluminação e o close final. No jogo de claro e escuro da estética noir, o copo de leite é o ponto mais iluminado da cena. O branco do copo se contrapõe a massa escura formada pelo corpo do personagem e agarra a atenção do espectador. Não vemos o rosto de Johnny, encoberto pela sombra, ao longo de todo tempo que ele leva para subir a escada. O verdadeiro personagem da cena é o copo de leite, que encerra o plano em close.
Johnny é apenas uma sombra no chão e um vulto subindo a escada, enquanto o copo de leite é o ponto central da cena, em função da luz mas também pela distribuição dos objetos no plano médio que antecede o close final da cena. Depois de subir a escada, o copo branco aparece bem no centro do enquadramento. Sendo o elemento mais claro da cena, o copo aparece em contraste com o lado esquerdo completamente negro, em que o terno escuro do personagem se funde com a sombra do cenário, e os desenhos de sombras nas paredes do lado direito, em que esta toma também a parte superior da imagem. Johnny aparece apenas de corpo, a cabeça estando fora do enquadramento nesse momento. Toda atenção se volta para o copo que é trazido à proximidade do olhar pela posição da câmera.
Para filmar tal cena, Hitchcock iluminou o copo de leite de dentro para fora, usando uma lâmpada dentro do líquido. De modo que o copo é o ponto mais luminoso e é o ponto central, no enquadramento do momento final, e na narrativa, que, nesse trecho do filme, está concentrada na suspeita intensa da mulher a qual, na sua desconfiança, faz do copo de leite a arma do crime. O suspense está vinculado ao copo de leite: estará ou não envenenado? Johnny é ou não é um assassino? Toda tensão da cena Hitchcock lançou sobre o copo de leite. Se Johnny é assassino, o copo de leite antecede o momento do crime e significa a morte da personagem Linda. Assim, o copo de leite também está associado à violência, a crime, a assassinato.
Diferente do que ocorre em Kubrick e Tarantino, no entanto, a tensão em Hitchcock vem antes da suspeita, como diz o próprio título do filme, do que da violência em si. O suspense gira em torno da expectativa do crime e nisso o copo de leite é o elemento essencial. A cena do copo de leite em Hitchcock inicia no plano geral, com ângulo superior, e termina com um close do objeto, que é o ponto chave da narrativa nesse momento. O destino das personagens depende daquele copo de leite.
Em Kubrick, a câmera faz o caminho inverso: parte do close ao plano geral. O movimento de câmera na cena de Hitchcock põe o copo em evidência. Ao final da cena percebemos que a câmera acompanhava, na verdade, o copo e não o personagem Johnny. A câmera é posicionada justo em frente ao copo no momento final, ela encara o copo e faz o espectador não se furtar ao destaque que o objeto recebe. O movimento de câmera na abertura do filme de Kubrick parte do close e do plano fechado que combina o rosto de Alex e o copo de leite no mesmo enquadramento. No mesmo planos vemos a face ameaçadora de Alex e a parte superior do copo de leite logo abaixo de seu rosto. A cabeça do personagem e o copo aparecem no centro da imagem. O copo vai subindo e é levado à boca ao mesmo tempo em que o movimento de câmera continua. Vemos Alex bebendo leite ladeado pelos "drugues". A câmera se afasta mais e vemos que todos vestem as mesmas roupas e também bebem leite. Cada "drugue" tem um sinal que o diferencia dos outros: os cílios de Alex, por exemplo.
O branco do copo combina com o branco das roupas e objetos do cenário e o sentido de pureza ou de paz convencionado para a cor branca é contrariada pelos eventos subsequentes de violência. Depois, o travelling afasta a câmera do grupo dos "drugues" e vemos o cenário ao mesmo tempo em que ouvimos a voz de Alex explicando a função do leite. O leite está em perfeito acordo com o rosto do personagem no close de abertura, em que face e objeto são combinados no mesmo enquadramento: o copo de leite é ameaçador como a expressão de Alex. O copo de leite significa perigo como a violência dos atos do personagem. O objeto é uma extensão e ao mesmo tempo a origem, já que prepara para a "ultraviolência", da agressividade de Alex. O copo de leite é também uma arma, servindo como aditivo da ação violenta.
Se em Hitchcock o copo de leite é o elemento principal da cena, em Kubrick, o copo de leite é mais um elemento que compõem o repertório cultural do personagem. O movimento de câmera tem valor descritivo, revelando, junto com a narração, o contexto em que Alex vive. A cena parte do close na expressão e no copo, elementos da agressividade do personagem, até um plano geral que coloca tudo em relação: a relação do leite com a ação violenta da personagem, as relações entre os "drugues", as relações entre indivíduos naquela sociedade.

O movimento de câmera e o close participam, em Kubrick e Hitchcock, da construção do copo de leite como elemento de perigo. Na abertura de Kubrick há ainda a combinação do travelling com a trilha sonora e o aspecto bizarro do cenário. Na cena de Hitchcock, travelling e close dialogam com a iluminação para criar o suspense. Já na cena de Tarantino entre os personagens Landa e LaPaditte, a tensão reside na linguagem dos planos. Enquanto Hitchcock recorre à iluminação característica do gênero noir, Tarantino, entre as várias referências cinematográficas que fazem parte do seu estilo de colagem, faz referência ao gênero western. Em "Bastardos Inglórios", ele cita sobretudo o spaghetti western de Sergio Leone tanto na composição dos planos como no ritmo narrativo. A tensão da cena do interrogatório é construída a partir da linguagem do western, estabelecendo, na abertura do filme, o duelo inicial entre o algoz e suas vítimas, papéis que se invertem nos duelos seguintes do desenrolar da narrativa.  





*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.