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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O QUARTETO DE ALEXANDRIA, en passant

Brunilda T. Reichmann

No segundo volume da edição em inglês da tetralogia The Alexandria Quartet, publicado pela E. P. Dutton em 1961, Lawrence Durrell, o romancista, poeta e dramaturgo britânico, insere uma nota, dizendo: “Os três primeiros romances (...) foram organizados espacialmente (...) e não estão ligados de forma seriada. Eles se sobrepõem, se entrelaçam, numa relação puramente espacial. O tempo não muda. Apenas o quarto romance apresenta o passar do tempo e é uma verdadeira sequência” (minha tradução). Dos quatro romances que têm nomes de personagens como títulos: Justine, Balthazar, Mountolive e Clea, em Clea apenas o tempo flui para além do limite temporal dos três primeiros livros, que tratam do mesmo momento em Alexandria, mas sob prismas diferentes, numa narrativa multifacetada, complexa, instigando o leitor a uma negociação constante em busca de compreensão. As personagens dos títulos são protagonistas dos romances com seus nomes e permanecem importantes nos que seguem.
É sob o ponto de vista de Daley, um jovem escritor, que adentramos o universo ficcional de Durrell, onde são relatados inúmeros encontros e desencontros de um grupo de amigos na cidade de Alexandria em Justine. A “mesma” história é recontada, as personagens vivem o mesmo momento no mesmo lugar – Alexandria – no segundo volume, Balthazar. Mas a história é realmente outra, porque há informações adicionais e muitas vezes contraditórias, fornecidas pelo manuscrito que é enviado a Darley por Balthazar. Darley, o personagem escritor, vive um emaranhado de emoções, se envolve com duas mulheres, Justine e Melissa, e, juntamente com as outras personagens – amigos, amantes, maridos –, envolve-se numa trama surpreendente, repleta de mistério, sedução e erotismo, construída por Durrell.
Narrado em terceira pessoa, Mountolive, o terceiro volume, (re)apresenta os eventos dos dois primeiros sob uma nova perspectiva. Desta vez a trama gira em torno do diplomata Mountolive e tem início com a paixão dele por Leila, mulher casada com um homem inválido e mãe de dois filhos. Aspectos desconhecidos da vida de Darley, o narrador dos dois primeiros volumes, Justine, Melissa e das outras personagens são revelados e surpreendem o leitor a cada momento, enquanto a trama se intensifica. “É um caleidoscópio de imagens através do qual percebemos novos ângulos das histórias contadas em Justine e Baltazar.”
Em Clea, romance narrado em primeira pessoa, Darley, depois de passar anos isolado em uma ilha com a pequena filha de Nessim, marido de Justine, e Melissa, retorna para Alexandria, o local que lhe traz lembranças de um conturbado passado com seus antigos amigos, entre eles Clea. Esta lhe fornece informações cruciais para que ele e o leitor possam preencher algumas das lacunas que foram deixadas nos romances anteriores. Pursewarden, um dos personagens, parece esclarecer um dos propósitos de Durrell ao escrever O quarteto de Alexandria. Ele diz: “Preste atenção leitor, pois o artista é você, somos todos nós: a estátua que precisa libertar-se do monótono bloco de mármore que a aloja para então começar a viver” – em clara alusão a Michelangelo.
O estilo de Durrell também sofre alteração nos romances. No primeiro, ele sugere uma mente tentando encontrar um sentido no emaranhado de eventos caóticos ou pelo menos ininteligíveis em Alexandria. Estes são relatados de acordo com a ordem de importância na mente de Darley, e nós, leitores, nos vemos em busca de um sentido tal qual o narrador. Em Balthazar, temos um narrador mais relaxado, há passagens narrativas mais longas e o foco do romance se expande. A visão da “realidade” de Darley tem que se adaptar a novas descobertas, seu estilo não sugere mais a ansiedade de um narrador em busca sedenta por causas. O segundo volume também prenuncia a técnica tradicional que será usada no terceiro. Temos a sensação que o estilo de Durrell – sua linguagem e técnica narrativa – torna-se uma metáfora para mundo caótico em processo de organização na tetralogia. Caso essa sensação seja válida, temos que aceitar a noção de que, em Mountolive, Durrell sugere uma organização da experiência ou pelo menos uma progressão reconhecível em direção à organização da experiência de Darley. Mas, talvez possamos dizer que, se por uma lado, concordamos com o comentário do narrador sobre o fato de que ele apresenta a relatividade da “verdade” nos três primeiros volumes, por outro lado, temos que acrescentar que Justine, Balthazar e Mountolive, apesar de apresentarem diferentes aspectos da “verdade”, se predispõem em cada volume subsequente a negociar com a “verdade” oferecida no(s) anterior(es) e a modificá-la.
Em O quarteto de Alexandria, a escritura literária é também um dos temas do texto: “é o fio condutor de uma história estruturada numa linguagem sofisticada e intertextual, repleta de referências a outros livro e outros autores”.  Nós, leitores, ficamos cientes, ao ler a tetralogia, que estamos diante de uma das mais instigantes obras literárias da metade do século XX, onde “realidade” e literatura se entrelaçam para criar uma tessitura novelística densa, profunda e inusitada.