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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

CONVITE PARA LER E RELER VALÊNCIO XAVIER


Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs

 

              Na literatura contemporânea, a colagem, recurso amplamente utilizado na maioria dos movimentos de vanguarda do início do século XX, na pop arte e na poesia visual, empresta ao texto um efeito artesanal. Algumas partes do livro são componentes estranhos à literatura convencional e ao próprio significado de texto. Fotos, pedaços de jornal, bilhetes, manchetes e anúncios transformam o texto em produto de bricolagem e relativizam o conceito de autoria.

              A autoria, na colagem, é responsável pela seleção e pela organização dos materiais, de modo a propor um novo significado, pela recontextualização de elementos antes pouco utilizados no contexto da arte e pela articulação de elementos às vezes essencialmente diferentes no significado, na função que desempenham e no valor estético. No ready-made, técnica muito usada por Marcel Duchamp nas artes plásticas e por Oswald de Andrade na literatura, a criação dava-se a partir de coisas prontas. No entanto, o fazer da nova arte propunha novos modos de usar e ver determinados objetos, redimensionando-os e rompendo com a convenção artística.

              Ao fragmentar algo já pronto e escolher algumas peças para formar um novo conjunto, o artista descontextualiza para recontextualizar. Nesse processo é que ocorre a mudança que faz evoluir o conceito de arte e o significado do próprio objeto. Evidentemente, a transformação, que exige nova postura do leitor/espectador, é resultado da ação crítica do artista diante do objeto reutilizado. Valêncio Xavier utilizou a colagem em vários textos. Dentre inúmeros elementos que ajudam a compor as narrativas do autor, o jornnal é o mais utilizado. A mistura é inusitada, para muitos, porque rompe com a divisão feita pelo senso comum, segundo a qual a literatura é sinônimo de ficção e o jornal, de realidade. Ao emprestar notícias de jornais, Valêncio Xavier chama a atenção do leitor para a manipulação discursiva, demonstrando que o texto jornalístico, como qualquer outro, é mera construção sobre um fato.

              O autor, inclusive, age, na criação de seus livros, como um redator de jornal. Ele seleciona as palavras; escolhe como dar a notícia. O fato pode ser o mesmo, mas ele é, invariavelmente, apresentado com variações, nos diferentes jornais, que têm linhas editoriais distintas e, consequentemente, público e linguagem também divergentes. Desse modo, fica claro que as características do jornal e o estilo do autor influenciam na criação textual. É certo que o Jornalismo, assim como a História, são vinculados à realidade, mas Valêncio Xavier revela a simplificação grosseira que existe por trás dessa e de qualquer outra categorização.

              O principal objetivo da utilização de textos de jornal dentro do texto literário é a desmistificação do status da imprensa e dos discursos produzidos por ela. Neste artigo, serão analisados dois contos do autor, Um mistério no trem-fantasma e O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de Curitiba, e dois textos maiores, considerados novelas, O mez da grippe e Rremembranças da menina de rua morta nua. Em todos eles, a relação entre Jornalismo e Literatura é dupla. Para os leitores especializados, é fácil perceber que tudo é construção. É como se os fragmentos de textos jornalísticos emprestassem as características dos textos do universo ficcional, de que agora são parte. Em contrapartida, ao leitor mais ingênuo, a notícia de jornal se sobrepõe ao texto literário, que de verossímil passa a ser considerado real por muitos leitores, que não duvidam de nada veiculado nos meios de comunicação de massa. Sendo assim, essas pessoas também não encontram motivos para desconfiarem de uma história que é feita com recortes de jornais.

              Esse efeito paradoxal de afirmação da realidade do texto literário pelo jornal e de negação do vínculo do jornal com a realidade pela literatura é resultado da dissolução da fronteira que, antes, separava realidade e ficção. Atualmente, essa distinção não existe mais:

 

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado (...). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos mas nos sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. (HUTCHEON, 1991, p. 122)

 

              Valêncio Xavier, ao tirar as notícias de seu contexto de origem, dá espaço ao questionamento sobre os limites da realidade e da ficção, confirmando os postulados de Linda Hutcheon e de outros teóricos da pós-modernidade. As colagens que caracterizam os textos do autor escolhidos para análise podem ser um convite à reflexão ou uma armadilha que pode fazer o leitor desconsiderar a ficcionalidade da literatura. A escolha depende do perfil do leitor e, consequentemente, de sua predisposição ao jogo intelectual ou ao mero entretenimento.

 

(Introdução do artigo A literatura, o jornal e as verdades dos fatos, publicado na revista Miscelânea, vol. 8)

 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

NOTÍCIAS DO CENÁRIO NACIONAL DA PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS.


Mail Marques de Azevedo

A convite da coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, campus de São José do Rio Preto, participamos do IV Congresso Nacional de Pesquisa em Literatura e do XIII SEL Seminário de Estudos Literários, realizados simultaneamente, de 23 a 26 de outubro, centrados na temática VISÕES E REVISÕES DO BRASIL: NÓS E OS OUTROS.
  A participação em uma das seis mesas debatedoras de projetos de pesquisa, apresentados para discussão no XIII SEL, permitiu-nos observar algumas tendências dominantes na pesquisa para dissertações e teses, na subárea de Estudos Literários.
Os projetos que debatemos ilustram duas dessas tendências, que se repetem em outros dentre os vinte apresentados:
Comparativismo:
  1. Estudo de obras diversas de um mesmo autor, cujo  foco é determinado pela temática, a exemplo do projeto da mestranda Ana Carolina dos Santos Marques, que pretende discutir a desumanização do individuo no mundo pós-moderno, nos romances White Noise e Cosmopolis de Don DeLillo.
  2. Estudo de obras de autores contemporâneos que apresentam pontos em comum. Questões de gênero e o formato do Bildungsroman, ou romance de educação, constituem o núcleo da análise das obras Salto Alto, de Lygia Bojunga, e The Secret Life of Bees, de Sue Monk Kidd, proposta pela mestranda Juliane Camila Chatagnier.
 
História e discurso ficcional:
  1. A (re)criação da história na literatura pós-moderna é o tema da leitura que João Carlos Vani faz do impactante romance Extremely Loud and Incredibly Close, de Jonathan Safran Foer, cujo assunto é o ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. O trauma da morte pela violência e destruição, no contexto do bombardeio de Dresden, se repete 56 anos mais tarde com o único descendente da família, um menino de nove anos, que procura entender o desaparecimento do pai, na destruição das torres.
 
Ainda na tendência do comparativismo, pareceu-me particularmente original e pertinente a pesquisa SOR JUANA Y ANTONIO VIEIRA, EL HERMETISMO EM LOS ORÍGENES DE LA CIÊNCIA FICCIÓN LATINOAMERICANA (1650-17500).
Entre projetos de caráter intermidiático incluem-se uma leitura televisual de Guimarães Rosa e a narrativa visual de Lourenço Mitarelli, além de um estudo sobre O Guarani, de José de Alencar,” como produto cultural midiático.“ A pesquisa faz o levantamento da trajetória da obra de Alencar que nasce como romance folhetinesco, no rodapé da página do Diário do Rio de Janeiro, seria reunida em livro, transformada em ópera, atravessaria o século XX com sete versões cinematográficas e chegaria ao século XXI com mais de uma versão em HQ.
Este último projeto, por coincidência, faz exatamente o tipo de estudo realizado por uma de nossas orientandas com o romance Frankenstein, de Mary Shelley: as diversas re-edições; modificações na transposição para o teatro; a criação do mito de Frankenstein pela mídia cinematográfica de Hollywood; a transposição para revistas em quadrinhos e séries de televisão; a disseminação da temática do monstro em animações e séries televisivas, além do uso da imagem do “monstrinho Frankenstein” como commmodity da indústria cultural. (Disponível no site do Curso de Mestrado. Autora: Sônia Tognolli).
No cômputo geral, é possível concluir que as pesquisas desenvolvidas em nosso curso de mestrado em Teoria Literária (UNIANDRADE), que seguem algumas das tendências apontadas ─ comparativismo, intermidialidade, pós-modernismo, história, memória e discurso ficcional ─ mostram-se atuais e relevantes.
 
IV CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISA EM LITERATURA
 
De especial interesse para os cursos de pós-graduação stricto sensu foi a intervenção da professora Dra. Sandra Regina G. Almeida, da Diretoria de Avaliação (DAU) da CAPES , sobre A Avaliação de Programas na área de L&L: Recomendações e Perspectivas.
 
RECOMENDAÇÕES ESPECIAIS AOS PROGRAMAS:
 
Incentivar a interlocução com a educação básica
Discutir formas de interfaces pós-graduação-graduação.
Estimular a rede interna de intercâmbio entre programas.
Programas nível 3. Tomar todas as medidas para melhorar o nível. Lançar mão dos recursos possíveis: professores visitantes, intercâmbios entre pares, etc.
Avaliar a qualidade dos egressos.
 
PERSPECTIVAS da DAU
Monitorar os programas com dificuldades, realizando visitas estratégicas. É preocupante  que o programa se mantenha no nível 3 por mais de três avaliações.
Fortalecer os mestrados e incentivar a abertura de doutorados.
Incentivar a criação de Fóruns Regionais de Coordenadores.
Apoiar eventos organizados por discentes.
Atingir erro zero no Coleta Capes. Análise esmiuçada dos programas.
Responder a questões básicas: como a pós-graduação está atendendo às demandas da sociedade? Como está definindo suas diretrizes futuras?
 
CONFERÊNCIAS
 
Duas das conferências se encaixaram de modo especialmente apropriado na temática do IV Congresso, VISÕES E REVISÕES DO BRASIL: NÓS E OS OUTROS, ao trazer uma visão dos brasileiros que imigraram para os Estados Unidos, conhecidos como brazucas.
 Na conferência de abertura, o professor Dr. Antonio Luciano Tosta, professor assistente da University of Illinois at Urbana-Champaign , Estados Unidos, analisou alguns dos aspectos mais comuns dos gêneros literários praticados pelos brazucas, sua inclusão na comunidade latina  (sob protesto dos falantes do português, que se julgam um grupo à parte) e as percepções que essa literatura revela sobre a interação Brasil-Estados Unidos.
O professor Dr. Welson Tremura discutiu sua experiência com o aprendizado acadêmico da música brasileira, na universidade de Louisville, na Flórida. Seu projeto interdisciplinar “Instituto de Musica Brasileira” aposta na importância do programa, que integra alunos, professores e membros da comunidade local. O caráter interativo de seu offshoot mais importante, o grupo musical Jacaré Brazil, polariza o aprendizado da música brasileira e contribui para construir a presença permanente da cultura brasileira no exterior.
A mostra que nos foi dado assistir em vídeo documenta o elevado nível artístico do grupo de instrumentistas e cantores que inclui, em projetos eventuais de integração, artistas brasileiros de renome. O intercâmbio internacional entre programas abre múltiplas possibilidades para que NÓS conheçamos os OUTROS e para nos darmos a conhecer.
 
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Modos de ler Dom Quixote


Edna da Silva Polese *

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) foi responsável por escrever uma obra que cristalizou-se como verdadeiro marco para a composição do romance na Europa. Apesar de ser autor de outras obras importantes para o período, como Galatea, de 1585, Novelas exemplares, de 1616 e Os trabalhos de Persiles e Segismunda, de 1617, foi com O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, 1605, que Cervantes passou para a ala dos imortais na literatura ocidental. A obra foi reconhecida, como registra Otto Maria Carpeaux em História da Literatura Ocidental, como “o romance dos romances”. A segunda parte de Dom Quixote foi publicada em 1615, em meio ao atribulado problema de se confirmar como o verdadeiro Dom Quixote de Cervantes, já que o sucesso do primeiro livro fez surgir alguns falsos Dons Quixotes. Uma ironia que parece própria da narrativa cervantina.

O sucesso imediato de Dom Quixote está vinculado ao momento de sua escrita. As mudanças radicais vividas na Europa e o endurecimento da Igreja Católica na Ibéria, são panos de fundo para um enredo inspirado no passado: a impossibilidade de se viver como cavaleiro medieval quando não se estava mais nesse período. Daí o romance ser a grande paródia dos romances de cavalarias, verdadeiros best sellers de época. Desses, o Amadis de Gaula, publicado em 1508, foi, depois da Bíblia, o livro mais lido de todos os tempos, segundo Carpeaux.

Dom Quixote é um fidalgo de poucas posses que endoidece após ler muitos livros – os conhecidos romances de cavalaria. Sai pelo mundo para realizar sua missão como cavaleiro ao lado do escudeiro, o analfabeto e desajeitado Sancho Pança. O Cavaleiro da Triste Figura enxerga gigantes nos moinhos de vento, exércitos inimigos em ovelhas pastando, um elmo de guerreiro numa bacia de lavatório. O idealismo de Dom Quixote esbarra o tempo todo numa realidade que ele não quer enxergar. Realidade vista, interpretada o tempo todo pelo companheiro fiel que tenta, sem sucesso, chamar seu amo para a realidade.

Por conta desse idealismo e desse choque sofrido por Dom Quixote, a obra alcança uma outra forma de leitura no período do romantismo: o contraste entre as aparências e a realidade, presente na obra, será o cerne do romance realista. Dos títulos, podemos citar o Tom Jones, de Fielding e, em solos brasileiros, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

O Dom Quixote é ainda representante daquele grupo de obras cujo personagem se deixa levar pela ficção, como a Ema Bovary de Flaubert.

De acordo com Maria Augusta da Costa Vieira, em prefácio da edição da Editora 34, a obra, a partir da década de 1960, apresenta uma nova vertente interpretativa:

Um ponto fundamental dessa revisão crítica se apoia na ideia de que a obra é cômica. Essa comicidade, por sua vez, se estrutura a partir da criação do burlesco, ou seja, do desequilíbrio entre o nível estilístico e o tema. Desequilíbrio que tanto pode estar na utilização de um estilo elevado para referir-se a temas banais quanto na criação de um estilo tosco para referir-se a grandes temas.

Essa nova maneira de ler Dom Quixote está embasada, principalmente, na questão da linguagem, no modo como Cervantes uniu o erudito e o popular e, assim como Erasmo de Roterdã em O Elogio da Loucura, ridicularizou a erudição pedante. O burlesco, a paródia e a ironia estão de volta, mas sob outro tipo de análise: a da arte de colocar em mesmo nível de diálogo o fidalgo culto, Dom Quixote, e o analfabeto Sancho, o grande iluminador do caminho de Dom Quixote, pois conhecemos figura do Quixote através de Sancho.

Bakhtin com suas novas teorias sobre a linguagem e a literatura nos traz sangue novo com as ideias acerca da carnavalização, do riso e do grotesco, elementos encontrados na narrativa cervantina. O Dom Quixote segue sempre como uma nova faceta a se mostrar, amalgamando-se a cada tempo com sua incrível capacidade de se comunicar com novos leitores. Seu personagem, enlouquecido pela leitura, diverte, ensina e provoca.

 

* Edna da Silva Polese é professora de Teoria e Estudos Literários do  Curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.