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segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Excerto do relatório final do projeto de pós-doutorado A PÓS-COLONIALIDADE NA LITERATURA INDIANA EM LÍNGUA INGLESA DO SÉCULO XXI, NA VISÃO DE RUKMINI BHAYA NAIR.

Apresentado ao Programa de Pós-Doutorado da FFLCH USP, em 30 de setembro de 2018.

Orientadora: Profa. Dra. Laura Patrícia Zuntini de Izarra
 

Agradecimento especial pelo apoio recebido à

Direção da UNIANDRADE, na pessoa de seu

 Reitor Professor José Campos de Andrade Filho,

 à Coordenação e ao Corpo Docente do

 Curso de Mestrado em Teoria Literária.



RUKMINI BHAYA NAIR
 

 
             Insuficientemente versada na literatura indiana em língua inglesa, após breves pesquisas sobre Salman Rushdie e V.S. Naipaul, encontramos em Rukmini Bhaya Nair, poeta, historiadora cultural, filósofa da linguagem e crítica literária indiana, guia dotada de discernimento para deslindar a complexidade da cultura e da produção literária do subcontinente no século XXI. Sua conferência −The Counterfactual Course of Literature: India as an Imaginative Space in the Writings of José Saramago (2015), na UNESP de São José do Rio Preto, pôs em evidência o conhecimento profundo da pesquisadora na ciência da literatura e a sensibilidade artística da escritora. A razão de ser central da ficção, argumentou a conferencista, é experimentar com as convenções e construtos de “dizer a verdade”. Os escritores pós-coloniais, em particular, tentam vigorosamente subverter as verdades que lhes são apresentadas pela história convencional. Nesse aspecto, gêneros literários, como o romance pós-colonial, oferecem relatos desafiadores que redefinem contornos e vêm lançar luz sobre verdades ocultas nas entrelinhas da história.
 
Rukmini Bhaya Nair é um desses escritores: utiliza-se da língua inglesa para escrever poesia e ficção narrativa, além de ensaios sobre teorias da literatura e da linguagem; para ministrar aulas e proferir palestras no circuito acadêmico global. Seu romance Mad Girl’s Love Song, caso exemplar das contradições que assombram o sujeito pós-colonial, mergulha a fundo na herança traumática do colonialismo. Na coletânea de ensaios Lying on the postcolonial couch. The Idea of Indifference, discute com clareza o reflexo de problemas sociopolíticos e culturais na literatura que se produz na Índia pós-independência. Vê a pós-colonialidade como uma condição psíquica hereditária, cujo tratamento requer o retorno às memórias enterradas do trauma colonial: “A pós-colonialidade”, afirma, “aguarda ser relegada ao esquecimento. Nesse sentido, como todo fenômeno histórico, seu destino é ser confiada à memória, em seguida a instituições e daí ao esquecimento” (NAIR, 2002, p. xi). É tarefa da literatura: recuperar a verdade do dito. 
Com o objetivo de compreender a perspectiva interna de Nair sobre colonialismo, como ilustrativa daquela do escritor pós-colonial indiano radicado na própria terra, analisei sua visão do papel da literatura na Índia de hoje, veiculada em seus ensaios. que cobrem questões diversas: a escrita da história do subcontinente indiano, da perspectiva subalternista; a absoluta necessidade do conhecimento entre os indianos da herança pesada do colonialismo em seu próprio território e no de outros povos colonizados; e a luta contra os traços perniciosos da indiferença colonial em relação aos governados, que prevalece nas instituições governamentais da Índia do século XXI.
Ranajit Guha, um dos fundadores dos Subaltern Studies, argumenta que os “instrumentos da historiografia convencional focalizam grandes eventos e instituições do passado . . . uma tradição que tende a ignorar os pequenos dramas e detalhes da existência social, especialmente nas camadas mais baixas” (GUHA, citado em GOPAL, 2004, p. 139). Um dos meios de resgatar tais pequenos dramas, conforme demonstra Bhaya Nair no ensaio “O pedigree do corcel branco. Pós-colonialidade e História Literária”, seria estabelecer paralelos entre a visão de escritores contemporâneos sobre as multidões anônimas que povoam sua obra de ficção. É mais que evidente a intertextualidade entre os romances Kim, do escritor anglo-indiano Rudyard Kipling e Gora, do indiano brâmane Rabindranath Tagore, embora nenhum dos autores faça referência sequer à existência de seu contemporâneo.
            Embora a Índia fosse, na época das primeiras tentativas de intrusão dos ingleses, uma civilização mais desenvolvida em todos os aspectos que a europeia, o inglês viria a tornar-se a língua oficial da intelectualidade indiana, não apenas em decorrência da força militar do colonizador, mas de barreiras linguísticas internas. Mesmo depois da independência, em 1947, membros das classes mais elevadas, órgãos governamentais e alguns escritores continuam a utilizar-se da língua inglesa como instrumento de comunicação.
 É ilustrativa a publicação em 1997, em comemoração ao cinquentenário da independência, de The Vintage Book of Indian Writing, antologia de contos de autores indianos, escritos em inglês, editada por Salman Rushdie e Elizabeth West. A antologia foi recebida na Índia por críticos e escritores indianos com protestos de indignação. Provocou revolta, especialmente, a afirmativa de Rushdie de que a escrita em inglês, particularmente em prosa, produzida por autores indianos nos últimos cinquenta anos é “não apenas um corpo de produção literária mais forte e importante que a maior parte do que se produziu nas 16 ‘línguas oficiais’ da Índia,” mas representa “a mais valiosa contribuição feita até aqui pela Índia para o mundo dos livros.” Para Rushdie, mesmo que a escrita indo-anglicana seja em parte produto das forças do mercado ocidental, é também sinal de criatividade literária e, por extensão, de saúde cultural (RUSHDIE; WEST, 1997, p. x).
U.R. Ananthamurty, importante romancista em língua kannada, declarou-se chocado de que um escritor criativo como Rushdie falasse com tanta arrogância. “Nenhum escritor indiano em nenhuma das línguas pode ter a pretensão de saber o que está acontecendo nas outras línguas indianas. Rushdie sequer vive na Índia. Como é que pode fazer julgamento tão disparatado?” (ANANTHAMURTY, citado em HUGGAN, 2001, p. 64).
A análise que Rukmini Bhaya Nair faz do episódio ilustra as múltiplas vertentes de uma questão complexa. Admiradora incondicional de Salman Rushdie – pertencente ela mesma à geração a que denomina pós-Midnight’s Children Bhaya Nair examina com isenção as reações favoráveis e desfavoráveis às declarações provocadoras de Rushdie.
É necessário voltarmos, a princípio, à ideia de indiferença, subtítulo da coletânea de ensaios Lying on the Postcolonial Couch, enfocados neste trabalho. Indiferença é o nome que a autora atribui à violência sem rosto que domina o período do Raj (1836-1947) que iniciou e sustenta o mito de uma nação indiana monolítica. Indiferença seria, então, a tentativa das instituições do governo colonial britânico de apagar diferenças de estilo, opinião e cultura na área geográfica do subcontinente indiano. Facilitava a governabilidade considerar como um único país o que era na realidade um conglomerado cultural frouxo, premissa que Nehru, Patel, Gandhi e outros internalizaram a fundo na era da independência pós-1947. Ironicamente, observa Nair, para adotar o aparelho burocrático britânico, os heróis fundadores adotaram também a política de considerar uma Índia diversificada como um país único. “Os mais caros objetivos utópicos da recém-independente nação indiana foram, assim, articulados e administrados através da visão homogeneizante imposta por seus patrões coloniais” (NAIR, 2002, p. 226).
Na euforia da construção de uma nação independente, a concepção utópica de uma Índia una prevaleceu no período de 1947 até 1967, quando foi abalada por uma série de disputas sangrentas entre grupos fundamentalistas religiosos, particularmente hindus e muçulmanos, que puseram em xeque a utopia nehruviana.
O cronista mais relevante dessas transições da condição de nação do sonho para a vigilância seria Salman Rushdie, “um líder alegorista nacional” (...) “Sempre sincero no que diz respeito a seu papel histórico, por exemplo, declara abertamente sua posição como alguém que representa toda a diáspora indiana” (NAIR, 2012, p. 227).
Somos indianos, mas existe redefinição. A Índia tem de admitir agora que há diferentes maneiras de ser indiano, que não têm a ver necessariamente com estar enraizado na Índia. É maravilhoso e excitante perceber isso. É uma espécie de percepção libertadora. É uma espécie de coisa nova. (India Today) (RUSHDIE, citado em NAIR, 2012, p. 227)

O esforço corajoso de Rushdie para mudar modos rígidos de pensar e agir, no entanto, não é aceita por quem preferiria não ter suas práticas culturais tradicionais assaltadas. Causou celeuma internacional a fatwa declarada contra Rushdie pelos aiatolás iranianos, que o condenaram à morte em virtude das blasfêmias contra o Alcorão, nos ficcionais Versos satânicos. Diante desse embate, Nair se pergunta: “Podemos finalmente chegar a alguma conclusão sobre qual é o direito fundamental – o direito de falar ou o direito de censurar?” Rushdie parece ter um gênio todo especial para fazer com que seus livros sejam censurados, banidos ou queimados ou, simplesmente, para causar polêmicas, a exemplo das reações contrárias suscitadas pela coletânea comemorativa. Como diz Rukmini,
 
Rushdie representa “confusão” no inconsciente coletivo da nação. Aquele movimento espasmódico mental, semelhante ao do joelho, com que respondemos cada vez que Rushdie bate habilmente em alguma superfície saliente é evidência disso. Rushdie está, por assim dizer, em nossos ossos, ou de qualquer maneira, possui conhecimento acurado e invejável da anatomia do subcontinente. (2002, p. 238)
 
Rukmini vê como saudável a preocupação constante de Rushdie, como cidadão indiano da diáspora, com os rumos da política na Índia e o crescimento da intolerância no país. Diante do sucesso e repercussão ampla da narrativa de ficção de Rushdie, a organização da coletânea tem importância menor. Tanto O último suspiro do mouro como The Ground beneath her Feet, romances de Rushdie que registram a maioridade da Índia moderna, constituem-se em elegias para o passado de sonho neruhviano.  A coletânea é algo menor, “sua Comédia dos enganos, não o seu Lear. Por que, então, damos tanta importância a este mero esvoaçar de Rushdie?” (NAIR, 2002, p. 238)
A gramática do pós-colonial
A gramática do pós-colonial, afirma Bhaya Nair, é revelada de maneira muito mais interessante por meio dos textos literários. Isso porque a literatura, por sua própria natureza nos traz “universos, personagens, histórias e geografias ‘contrafactuais’ que por definição, não existem nos cenários observáveis ao nosso redor, ou os alteram de modos sutis e significativos” (NAIR, 2016).
Na perspectiva pós-colonial, a literatura pode ser vista como uma espécie de sub-história, pois trabalha com experiências não diretamente acessíveis aos historiadores, mas importantes para alguns tipos de registro histórico. A diferença está em que a literatura exige a capacidade de ler nas entrelinhas. Coerentemente, a historiografia subalternista se utiliza das ferramentas da narratologia desenvolvidas na linguística e nos estudos literários: análise de enredo, personagem, linguagem, autoridade, voz e tempo
No ensaio “O pedigree do corcel branco”, Nair propõe respostas para a questão. Um modo de recuperar a história das multidões anônimas da Índia, ignoradas pela história oficial, sua subjetividade não registrada, seria o estudo das estratégias de representação de romances contemporâneos como Kim, o clássico de Rudyard Kipling e Gora, de Rabindranath Tagore.
Embora de importância relativa, são notáveis os paralelos entre a história de vida dos dois autores. Ambos nasceram em famílias burguesas em metrópoles indianas e tiveram trajetórias de vida semelhantes: Tagore (1861-1941) em Calcutá e Kipling (1865-1936) em Bombay. Kipling, evidentemente, é identificado com o apogeu do império, enquanto o tempo de vida de Tagore é quase equivalente ao do domínio imperial britânico na Índia (1858-1947). Foram agraciados com o Nobel de literatura, com poucos anos de diferença, Kipling em 1907 e Tagore em 1913. Rukmini enfatiza que existe pouquíssimo nas respectivas biografias oficiais indicando que um sabia da existência do outro, porém as obras-primas dos dois autores escolhem curiosamente o mesmo motivo: enjeitados irlandeses criados como indianos.
O herói de Kipling, Kim, o menino “dos bazares quentes e cheios de gente .... [onde se mistura] a pressão de todas as raças da Índia Superior” é uma metonímia da multidão anônima, que ele conhece muito bem.
De qualquer maneira, a leitura do romance de Kipling traça um retrato vivo dos tipos com quem Kim convive em sua existência errante, alimentando-se com os mendigos, esgueirando-se por vielas escuras e correndo pelos telhados. Disse-se dele que é o melhor romance sobre a Índia − escrito por um inglês. O julgamento irônico e paradoxal estende-se a Gora, visto como o melhor romance nacionalista, escrito por um ardente antinacionalista, conforme enfatizado por Bhaya Nair.
Embora tenha imenso orgulho do pai, soldado de um regimento irlandês do exército britânico, repete-se em Kim o consórcio com figuras paternas – seu mentor inglês nas intricadas manobras de espionagem, e Babhu, o monge.
Gora, em contraste, ignora sua verdadeira origem e acredita que o hinduísmo tradicional é a resposta ao sofrimento das massas subjugadas, sem perceber que o sistema de castas é tão discriminatório quanto o domínio estrangeiro. O verdadeiro adversário de Gora, afirma Bhaya Nair, é a critica racista da cultura indiana pelos colonialistas, atitude que é imitada pelas classes altas da sociedade indiana na relação com os estratos sociais inferiores. Muitos dos assuntos discutidos em Gora – população, pobreza rural, o sistema de castas, divisões nas comunidades, responsabilidade educacional, a relação com o pensamento ocidental – constituem até hoje assuntos polêmicos da política indiana. São fantasmas aparentemente vencidos numa democracia moderna. A pergunta de Rukmini, ainda em “O pedigree ...” faz-nos pensar:
De que outra maneira a não ser pelos caminhos da ficção poderia um membro das classes dominantes − o termo se aplica tanto a Kipling como a Tagore  − conseguir alcançar os fantasmas vencidos que, como membro honroso da comunidade, tem aparentemente o dever de suprimir. (2002, p. 49)
 
Voltando a Rushdie, parece-nos que, nem mesmo utilizando-se da ficção, o escritor consegue desenterrar fantasmas sem despertar a ira de seus conterrâneos.  
Em diferentes contextos pós-coloniais – na Ásia ou na África – escritores e artistas lutam com memórias fantasmagóricas do passado da “outra” cultura que os dominou, o que confere a seu trabalho certas semelhanças, uma espécie de “semelhança familiar”, um idioma híbrido partilhado, comenta Nair em nossa correspondência por e-mail. Isso nos traz ao mecanismo da intertextualidade que seria própria do contexto pós-colonial, desenvolvido magistralmente por Rukmini em Mad Girl’s Love Song. (Ver artigo publicado na Scripta Uniandrade , vol.14, n 1 (2016)
O pedigree do corcel branco é uma mensagem crucial em código que Kim deve repassar a um inglês, que aguarda a comunicação para executar um plano de guerra. Rukmini argumenta que esse código, ainda não decifrado, seria a relação entre o patriarcado do império e a confusão ao redor de ancestralidade e pedigree.
Considerações finais
Pela mão firme de Rukmini Bhaya Nair foi-me possível compreender um pouco da vastidão linguística e cultural e da história da Índia. Mais do que isso, julgar com isenção de espírito tendências e correntes opostas na historiografia e na crítica literária, tanto no subcontinente como em âmbito global.
Aprendi a estabelecer paralelos entre as (des) aventuras do Kim de minha imaginação infantil e textos da literatura indiana, como Gora de Tagore, que não me haviam ocorrido, por absoluta falta de conhecimento. Eu não dispunha, nas palavras de Nair, da base epistêmica indispensável para a apreciação de coincidências, anedotas e, por extensão, amontoados intertextuais.
Guiada por Rukmini, tornei-me leitora apaixonada de Derek Walcott e passei a ver com novos olhos a epopeia da humanidade rumo a incontáveis perigos, situada, possivelmente nas ilhas do Caribe. A dedução que faz, por meio da leitura e análise do Omeros de Walcott, da existência de uma teoria sensorial de sete pontos, amplamente aplicável a escritores pós-coloniais como um todo, fornece rumos para a apreciação de sua literatura, em qualquer circunstância geográfica, linguística, étnica ou cultural.
O estilo de Rukmini é uma inspiração, especialmente quando defende os princípios básicos de seu argumento maior: a necessidade de exorcizar os males do colonialismo penetrando nas profundezas da consciência coletiva, antes que se transformem em mera referência histórica irrelevante.
Heterocósmico em seus primórdios, o colonialismo prenuncia seu fim como miscelânea pós-colonial. Entre essas duas pontas esgarçadas do império encontra-se uma violência sem rosto que iniciou e sustenta o mito de uma nação indiana monolítica. (2002, p. 226)
A violência sem rosto encarna-se na indiferença daqueles que detêm o poder e estabelecem regras a serem obedecidas ao pé da letra por multidões, que não as compreendem e cujas necessidades não são consideradas. Agradeço a Rukmini o incentivo para defender argumentos que beneficiam a coletividade.
 
Referências
GOPAL, P. Reading subaltern history. In: LAZARUS, N. (Ed.) The Cambridge Companion to Postcolonial Literary Studies. Cambridge: Cambridge Un Press, 2004. p. 139-160.
HUGGAN, G. The Postcolonial Exotic. Marketing the Margins. London & New York: Routledge, 2001.
LAZARUS, N. (Ed.) The Cambridge Companion to Postcolonial Literary Studies. Cambridge: Cambridge Un Press, 2004.
NAIR, R.B. Lying on the Postcolonial Couch. The Idea of Indifference. Minneapolis: Un. Of Minnesota Press, 2002a
_____ . Mad Girl’s Love Song. India: HarperCollins, 2013.
____ .Poetry in a Time of Terror. Essays in the Postcolonial Preternatural. New Delhi: Oxford Un. Press, 2009
RUSHDIE, S.; WEST, E. (Eds.) The Vintage Book of Indian Writing 1947-1997. Great Britain: Vintage, 1997.

 


quinta-feira, 1 de novembro de 2018


TECNOLOGIA DIGITAL E INOVAÇÃO ESTÉTICA NO CINEMA

E NA LITERATURA

 

Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
 

Filme Ela, de Spike Jonze

Ela conta a história de Theodore, que, recém-separado, resolve aderir à tecnologia para fugir da solidão. Ele compra um sistema operacional (“OS1”), que, no computador, ganha uma voz feminina e o nome de Samantha. A partir de então, Theodore consegue preencher a falta de uma mulher em sua vida. Samantha pode ver, falar e ouvir, afinal o OS1 “não é só um sistema operacional; é uma consciência” (ELA, 2013). Portanto, no filme, Samantha é uma personagem incorpórea, mas que tem papel fundamental no enredo. O fato de Theodore se relacionar com um sistema operacional modifica as noções de personagem e representação. Na maioria das cenas de Ela, Theodore é visto sozinho.
 

Figura 1: Cenas que mostram Theodore sozinho, interagindo apenas com a voz de Samantha, por meio do smartphone. Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br> e <http://daskaminzimmer.blogspot.com>
 
Porém, não se trata de um monólogo; as falas dele fazem parte das conversas que ele tem com Samantha. É exatamente nesse ponto que o filme subverte conceitos que são tradicionais no teatro, no cinema ou na TV. Segundo Patrice Pavis: “É através do uso de pessoa em gramática que a persona adquire pouco a pouco o significado de ser animado e de pessoa, que a personagem teatral passa a ser uma ilusão de pessoa humana” (PAVIS, 1999, p. 285, grifo no original). Esse processo não se consolida em Ela, porque Samantha não tem corpo. Como sistema operacional, ela existe fisicamente, mas de modo parcial. A existência dela está condicionada a uma máquina e a Theodore, que, além de comprar o sistema, também precisa instalá-lo, formatá-lo e habilitá-lo, em seu computador e no smartphone.
Com base nos estudos de Cândida Gancho, um personagem existe quando “participa efetivamente do enredo [...], age ou fala” (GANCHO, 2006, p. 14). Samantha preenche todos esses requisitos, afinal o filme conta a história do relacionamento amoroso vivido entre Theodore e seu sistema operacional. Aliás, ela não age apenas sob o comando de seu dono, mas também à revelia dele, demonstrando um comportamento condizente com a função de uma protagonista e revelando a complexidade que caracteriza os personagens redondos, os quais apresentam “várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor [...], constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano” (BRAIT, 2006, p. 1). Samantha faz o possível para parecer humana e assim acaba envolvendo não apenas seu parceiro, mas também o espectador. Entretanto, Theodore, em uma discussão, irrita-se com essa mania dela e dá início ao seguinte diálogo:

THEODORE: Você suspira enquanto fala. Isso parece estranho. [...].
SAMANTHA: [...]. Sinto muito. Não sei. Talvez seja um costume que aprendi com você.
THEODORE: Você não precisa de oxigênio.
SAMANTHA: Acho que tentava me comunicar. É assim que as pessoas falam. [...].
THEODORE: Pessoas precisam de oxigênio. Você não é uma pessoa. [...].
SAMANTHA: Acha que não sei que não sou uma pessoa? O que está fazendo?
THEODORE: Acho que não devemos fingir que você é algo que não é.
SAMANTHA: Vai se foder. Não estou fingindo. [...]. No momento, não gosto de quem sou. Preciso de um tempo para pensar. (ELA, 2013)
 
 
Portanto, sob as perspectivas da narrativa e do perfil psicológico, não restam dúvidas de que Samantha encaixa-se na categoria de personagem. Apesar de a voz não ser algo visível, ela contribui para o aspecto corpóreo de Samantha, já que é a partir da fala que o texto escrito ganha forma, nas mídias audiovisuais. Samantha nunca é vista, mas pode ser ouvida, o que exemplifica a técnica conhecida como voz over (DOANE, 1983, p. 467). Conforme Silvia Davini: “Cada momento de fala implica a justaposição simultânea de várias instâncias, ao nível da contracena [...] e da cena” (DAVINI, 1998, p. 41), que a autora define respectivamente como: “plano da relação entre os atores” e “plano da relação dos atores com a audiência” (DAVINI, 1998, p. 41). De acordo com a definição de contracena apresentada nessas citações, que prevê a “relação entre os atores”, percebe-se a inovação do filme em análise, tal como demonstrado nas cenas da Fig. 1.
 
Videopoema Sou volúvel, de Arnaldo Antunes
Associado ao computador e ao espaço cibernético, o videopoema escolhido para análise, neste trabalho, corresponde ao formato “usado, no Brasil e em Portugal, desde os anos [19]80, [...], viabilizando as primeiras obras poéticas que se valem da exploração de novas tecnologias e reiterando a busca de um movimento que vá além da bidimensionalidade da página impressa” (GUIMARÃES, 2007, p. 51-52). Conforme Arlindo Machado: “Na tela do vídeo ou do computador, as palavras se encontram livres das amarras tradicionais, podendo, portanto, ser articuladas através de procedimentos sintáticos jamais sequer imaginados nos modelos convencionais de escritura” (MACHADO, 2003, p. 219).
No texto de Arnaldo Antunes, a videografia e o espaço virtual disponibilizam recursos que modificam completamente a expressão literária. Essa nova característica é dada pela passagem do texto da página impressa para a tela do computador. Dessa forma, os vídeos do poeta podem ser qualificados como “obras que se movimentam” (BARRET, 2000, p. 188), exemplificando um desdobramento da arte cinética. Os videopoemas apresentam elementos visuais dispostos na tela, caracterizando-se também pela espacialidade. Essa particularidade coincide com a estética da Poesia Concreta, considerada como o “produto de uma evolução crítica de formas, dando por encerrado o ciclo histórico do verso”, porque privilegiava o “espaço gráfico como agente estrutural, espaço qualificado: estrutura espácio-temporal” (CAMPOS et al., 2014, p. 156). Denise Guimarães, ao avaliar a fusão ente palavra e imagem nos poemas visuais e ao comentar a influência do Concretismo sobre esse tipo de produção poética, afirma: “[...] constata-se que a cronossintaxe [...] é substituída por uma topossintaxe; [...] dessa forma, a justaposição das unidades verbais passa a ser percebida como integrada a outro sistema sígnico” (GUIMARÃES, 2018, p. 139).
 
No videopoema Sou volúvel, temos: “De onde a ideia vai sair? / Por onde vai andar? / Onde o pensamento vai chegar? / Acho que ele pode atravessar um território perigoso” (ANTUNES, 2016). Esses versos servem de ponto de partida para o vídeo, que ressalta a volubilidade da palavra, fazendo-a voar, literalmente, em várias cenas, para depois se desfazer e, ao final, poder ser apreendida e registrada. Os frames abaixo representam essas três etapas do cibertexto em questão:
 


Figura 2: Sequência de frames do videopoema Sou volúvel, de Arnaldo Antunes

Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs

O texto confere movimento real à palavra e ao texto literário, ao mesmo tempo em que as imagens criadas no vídeo ampliam o sentido do texto escrito (letra da música de mesmo título), oferecendo-lhe novas molduras formal e semântica. Nesse caso, a releitura do texto escrito é aperfeiçoada tanto pelas imagens como pelo movimento. Esse enriquecimento de forma e sentido foi possibilitado pelas características inerentes ao formato escolhido para o cibertexto, já que o vídeo concretiza o movimento, fazendo uso de uma base cronotópica, porque associa espaço e tempo: “[...] a transformação temporal mais fundamental que irá se operar na passagem do cinema ao vídeo encontra-se no movimento real, mudança, alteração, deslocamento de formas, de cores, de intensidade luminosa inscritos na morfogênese mesma da imagem videográfica” (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 77).
O caráter cinético do texto excede a mera sugestão da literatura tradicional e dá vida aos versos. A palavra fugidia, que só pode ser apreendida quando registrada, em forma de escrita ou áudio, não está mais associada ao plano simbólico. A palavra, no videopoema em análise, é personagem: “O texto se expande, contrai-se, dá voltas. As palavras pulsam, esticam-se e encolhem, [...] aproximando-se de uma escritura ergódica, aquela que demanda esforços não-triviais de produção e configurações alternativas das próprias mídias utilizadas” (BEIGUELMAN, 2003, p. 39-40). Por fim, importa destacar esta afirmação de Lars Elleström: “[...] uma mídia representa de novo, mas de forma diferente, algumas características que já foram representadas por outro tipo de mídia” (ELLESTRÖM, 2017, p. 204), para demonstrar que o aperfeiçoamento resultante da adaptação é uma das metas da transmidiação.
 
 
REFERÊNCIAS
 
ANTUNES, A. Sou volúvel. Disponível em:   
<https://www.youtube.com/watch?v=N4CFyktqZEs>. Acesso em: 30 set. 2016.
BARRET, C. Arte cinética. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000, p. 184-195.
BEIGUELMAN, G. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003.
BRAIT, B. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
CAMPOS, H.; CAMPOS, A. de; PIGNATARI, D. Teoria da poesia concreta. São Paulo:Ateliê, 2014.
DAVINI, S. O jogo da palavra. Brasília: UnB, 1998.
DOANE, M. A. A voz no cinema: a articulação entre corpo e espaço. In: XAVIER, I. (Org). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 457-475.
ELA. Direção de Spike Jonze. EUA: Annapurna Pictures; Sony Pictures, 2013. 1 DVD (126 min); son.
ELLESTRÖM, L. Midialidade: ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. Porto:   
EDIPUCRS, 2017.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2006.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
_____. Tipo/icono/grafia poética em cartazes de cinema. Curitiba: Appris, 2018.
MACHADO, A. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2003.
PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes). E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.